Na última terça-feira, dia 31 de maio de 2016, a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados em Brasília convocou um Seminário sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
Um dos debatedores foi o Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva, Professor de Teologia Moral e estudioso dos temas de educação.
Em entrevista à ZENIT, o sacerdote explicou com mais detalhes a tentativa de implantar um "sistema único de educação", que eliminaria totalmente a liberdade das escolas e daria o poder ilimitado ao MEC de ensinar, na prática, qualquer ideologia para todas as crianças do Brasil.
ZENIT: Temos acompanhado com preocupação todo o debate acerca da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), de autoria do Ministério da Educação. De onde saiu a ideia de se impor a todas as escolas do Brasil uma mesma base curricular?
Pe. José Eduardo: A ideia surgiu a partir de uma Emenda à Constituição, a PEC 59/2009. O texto afirma que "a lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração... que conduza ao estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto". Como se vê, o texto é de uma "lei orçamentária", na qual foi inserido uma espécie de "cavalo de Tróia", que seria este "sistema nacional de educação", inexistente na legislação brasileira até então.
ZENIT: Mas em que consiste este "Sistema Nacional de Educação"?
Pe. José Eduardo: Na verdade, a lei não o define, apenas o enuncia. Por isso, precisamos interpretá-lo de acordo com a Constituição Federal.
ZENIT: Por quê? Existe um outro modo de interpretar esse "Sistema Nacional de Educação", em desacordo com a Constituição?
Pe. José Eduardo: Sim. Já em 1988, o Dep. Octávio Elísio apresentou um Projeto de Lei, quase idêntico a um modelo apresentado pelo Prof. Dermeval Saviani (UNICAMP), em que se anunciava um Sistema Nacional de Educação. Dizia o PL 1.258/1988: "haverá no país um sistema nacional de educação, constituído pelos vários serviços educacionais desenvolvidos no território nacional" (p. 7). O que se propunha é que todos os sistemas educacionais brasileiros fossem transformados em serviços de um único sistema. Quando os deputados perceberam que eles iriam tirar a autonomia das escolas, dos Municípios e dos Estados, reagiram imediatamente e rejeitaram o projeto de lei, assumindo-se o substitutivo do Dep. Jorge Hage, de agosto de 1989.
ZENIT: Então, essa ideia não é nova no Brasil.
Pe. José Eduardo: De modo algum. Na verdade, o primeiro a querer implementar um sistema federal fortemente centralizado foi o Presidente Getúlio Vargas. Ele criou o Ministério da Educação, cujo segundo ministro foi o conhecido Gustavo Capanema. Depois da queda da ditadura, o então Ministro da Educação Clemente Mariani, em 1949, apresentou o ante-projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que o então Dep. Gustavo Capanema rejeitou, por considerar o PL pouco centralizador.
Na época, levantou-se contra ele, nada mais, nada menos que, Anísio Teixeira, um dos maiores ícones da educação brasileira, alegando que aquele desejo de centralismo era absurdo! Foi isto que Anísio escreveu sobre as ideias educacionais de Capanema: "Ora, francamente, o sr. Capanema está a brincar. Fortalecer os poderes federais nunca significa transferir poderes locais para o centro, mas simplesmente fortalecer os poderes que devem pertencer ao centro. Do contrário, seria extrapolar e raciocinar à doida, pois nada, absolutamente nada no mundo resistiria a esse tipo de lógica. Na cabeça do sr. Capanema só é nacional o que nascer da cabeça de uma autoridade federal, o município, o estado, as regiões são antinacionais, quando, na realidade, o nacional é o país todo e, queira ou não queira, a substância nacional está nos municípios, nos estados e nas regiões" (p. 94).
Anísio, aliás, já tinha escrito, com outros educadores, o famoso "Manifesto dos pioneiros da educação nova", em 1932, em que rejeitava fortemente a ideia de uma educação centralizada. O Manifesto dizia: "Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade. Não é, pois, na centralização, mas na aplicação da doutrina federativa e descentralizadora, que teremos de buscar o meio de levar a cabo, em toda a República, uma obra metódica e coordenada, de completa eficiência, tanto em intensidade como em extensão" (p. 8). No final das contas, Capanema, como relator do Projeto, conseguiu arquivá-lo.
No entanto, perceba: mesmo com todo este centralismo intolerante, quase ditatorial, do Gustavo Capanema, nunca lhe passou pela cabeça, nem a Vargas ou aos ditadores posteriores, criar uma base curricular centralizada, detalhada e uniforme para todas as escolas. Repito: as maiores ditaduras do Brasil nunca cogitaram essa ideia.
ZENIT: Mas, e então?, como ficaram as reivindicações dos educadores brasileiros?
Pe. José Eduardo: Em 1952, o Projeto da LDB foi desarquivado e, após uma década de profundos debates, foi aprovado e sancionado em 1961. Após a Constituição de 1988, resolveu-se criar uma nova LDB, atualizando-a de acordo com as novas configurações Constitucionais. Rejeitou-se o Projeto de Elísio-Saviani, que era pelo Sistema Nacional, e aprovou-se a nova LDB de 1996, vigente até hoje, que representa uma das maiores conquistas dos educadores do Brasil!
ZENIT: Até que se inserisse esse, como o sr. diz, "cavalo de Tróia": o novo conceito de sistema nacional de educação... Mas o sr. dizia que era possível interpretá-lo de modo correto, em harmonia com a Constituição. Como é isso?
Pe. José Eduardo: A Constituição afirma, no art. 211, que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino"; a LDB afirma, em seu art. 8, que "a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino" e, no § 1, que "caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais". Mais adiante, continua a LDB, no art. 15: "os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa".
ZENIT: Então, embora a Constituição não previsse um Sistema Nacional de Educação, a introdução sorrateira dessa terminologia forçosamente deve ser entendida como coordenação, e não substituição dos outros sistemas (municipais, estaduais etc), e deve ademais garantir progressivos graus de autonomia até às escolas… Então, por que querem agora criar essas Bases Curriculares Comuns?
Pe. José Eduardo: Na verdade, eles não estão "criando" as bases curriculares. O Ministério da Educação já tinha fornecido outras bases, anteriormente. O Parecer 15/98 do Conselho Nacional de Educação ofereceu a "base comum para as escolas de ensino médio", em duas páginas (vide as páginas 48 e 49). Agora, o MEC está apresentando uma BNCC que, na primeira versão, tinha 302 páginas e, nesta última, 676 páginas, em que se determinam os conteúdos, ano por ano, matéria por matéria, detalhadamente.
ZENIT: Impressionante! Mas, se eles deveriam garantir uma progressiva autonomia, para que querem controlar, assim, o ensino das escolas?
Pe. José Eduardo: Exatamente para criarem um sistema único de educação. Essa expressão, "sistema único", não é minha, mas de um grande parceiro do Prof. Saviani, que fez a Conferência de abertura do CONAE 2010, o Prof. Jamil Cury. Ele disse textualmente: "é evidente que o desafio de um sistema único de educação se radica no próprio desafio de uma superação do próprio capitalismo" (p. 10). Em outras palavras, o que eles querem, mesmo, é estabelecer um sistema único e, para isso, criaram essas bases curriculares tão detalhadas.
ZENIT: Mas, no texto que o sr. citou, ele fala claramente de "superar o próprio capitalismo". Então, essa reforma tem um sentido claramente ideológico?
Pe. José Eduardo: Na verdade, é pior que isso. Não se trata de uma questão de conteúdo, apenas; trata-se da transformação da arquitetura da educação do Brasil. A primeira versão das BNCC era claramente de inspiração marxista. A segunda está mais diluída. Contudo, isso não importa muito. A partir do momento em que puderem definir o ensino em todas as escolas, poderão ensinar a ideologia que quiserem, porque eles não pararão na BNCC. Ela é o primeiro passo de uma verdadeira revolução educacional.
ZENIT: Como assim? Eles não estão limitados pela LDB?
Pe. José Eduardo: Deveria ser assim. Essa é a minha interpretação. Mas o que se está claramente fazendo é lacear a legislação para que a mesma seja alterada. Num documento do MEC intitulado "Instituir um Sistema Nacional de Educação: agenda obrigatória para o país", afirma-se claramente: "hoje a falta de uma Base Nacional Comum inviabiliza, por um lado, orientações claras e potentes para a composição dos currículos das licenciaturas e, por outro, a regulação mais enérgica do setor privado" (p. 4) e, ainda mais, que "será imprescindível uma releitura da LDB à luz do Sistema Nacional de Educação a ser configurado" (p. 3). Está claro? Por um lado o MEC está dizendo que falta uma Base Nacional Comum, quando foi ele mesmo que já homologou várias Bases Nacionais Comuns, enquanto que, por outro lado, querem aproveitar-se desta falsa informação para redesenhar a LDB segundo a nova Base Nacional Curricular Comum!!!
ZENIT: Isso é muito grave! O que deveríamos fazer? Deveríamos lutar para que não houvesse a BNCC e o Sistema Nacional de Educação?
Pe. José Eduardo: A meu ver deveríamos apenas fazer as pessoas compreenderem, de um lado, que não é necessário uma BNCC detalhada, bastariam, como se tem feito até o momento, as definições de objetivos e métodos que garantissem a "progressiva autonomia" dos sistemas e unidades de ensino, ou, conforme já prescrevia o famoso Parecer 15/98 do Conselho Nacional de Educação, descrevendo principalmente as metas que deverão ser atingidas, "os pontos de chegada", deixando o detalhamento de seu conteúdo, "os pontos de partida", às instâncias mais próximas do alunado.
Por outro lado, o tal Sistema Nacional de Educação não pode se comportar como um sistema único, mas como um órgão de coordenação, que respeitasse a autonomia dos diversos sistemas. Parece-me que esta seria a posição mais sensata, e mais de acordo com nossos princípios democráticos. Quando temos um currículo que determina com exatidão o que e como deverá ser ensinado uniformemente em todo o território nacional, e inclusive quando se quer utilizar este mesmo currículo para poder avaliar de modo uniforme o desempenho das escolas em todo o país, como se o governo federal fosse o diretor e proprietário de cada uma destas escolas, as escolas, na prática, passaram a fazer parte do Sistema Nacional Único do governo federal, ainda que no papel se diga outra coisa.
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