Quando exaltamos os méritos da oração pelos mortos, de modo algum inferimos que outras boas obras devam ser omitidas; porque todos as outras obras se devem praticar de acordo com o tempo, o lugar e as circunstâncias. A única intenção que tínhamos em vista era dar uma ideia correta da misericórdia para com os mortos e inspirar aos outros o desejo de praticá-la.

Além disso, as obras de misericórdia espiritual, que têm por objeto a salvação das almas, são todas de igual excelência, e é somente em certos aspectos que podemos colocar a assistência dos mortos acima do zelo pela conversão dos pecadores.

Relata-se nas Crônicas dos Frades Pregadores que surgiu uma controvérsia entre dois religiosos daquela Ordem, os irmãos Bento e Bertrand, cujo tema eram os sufrágios pelos defuntos. Foi ocasionada pelo seguinte: o irmão Bertrand celebrava frequentemente a Santa Missa pelos pecadores e orava continuamente por sua conversão, impondo-se as mais severas penitências; mas raramente era visto celebrando a Missa com as vestes pretas em favor dos mortos. O irmão Bento, que tinha grande devoção pelas almas do Purgatório, tendo observado essa conduta, perguntou-lhe por que ele agia assim.

“Porque”, respondeu Bertrand, “as almas do Purgatório têm certeza de sua salvação, enquanto os pecadores estão continuamente expostos ao perigo de cair no inferno. Pode haver condição mais deplorável que a de uma alma em estado de pecado mortal? Ela está em inimizade com Deus e presa nas correntes do diabo, suspensa sobre o abismo do inferno pelo frágil fio da vida, que se pode romper a qualquer momento. O pecador anda no caminho da perdição; se ele continuar avançando, cairá no abismo eterno. Devemos, portanto, vir em seu auxílio e preservá-lo desta que é a maior das desgraças, trabalhando pela sua conversão. Além disso, não foi para salvar os pecadores que o Filho de Deus veio à Terra e morreu na cruz? São Dênis também nos assegura que a mais divina de todas as coisas divinas é trabalhar com Deus para a salvação das almas.”

“Quanto às almas no Purgatório”, continuou o irmão Bertrand, “elas estão seguras, sua salvação eterna é certa. Elas sofrem, presas a grandes tormentos, mas nada têm a temer do inferno, e os seus sofrimentos terão um fim. As dívidas contraídas diminuem a cada dia, e logo desfrutarão da luz eterna, ao passo que os pecadores são continuamente ameaçados pela condenação, a desgraça mais terrível que pode acontecer a uma criatura de Deus.”

“Tudo o que você disse é verdade”, respondeu o irmão Bento, “mas há outra consideração a ser feita. Os pecadores são escravos de Satanás por livre e espontânea vontade. Seu jugo é de sua própria escolha, e eles poderiam quebrar suas correntes se assim quisessem, enquanto as pobres almas do Purgatório só o que fazem é suspirar e implorar a ajuda dos vivos. É impossível que elas quebrem os grilhões que as mantêm presas nas chamas penais. Suponha que você tenha encontrado dois mendigos, um doente, mutilado e indefeso, absolutamente incapaz de sustentar-se sozinho; o outro, pelo contrário, embora em grande angústia, jovem e vigoroso; qual dos dois mereceria a maior parte de sua esmola?”

“O inválido, certamente”, respondeu Bertrand.

“Bem, meu querido pai”, continuou Bento, “esse é o caso dos pecadores e das santas almas do Purgatório. Estas não podem mais se ajudar. O tempo de oração, confissão e boas obras passou para elas; nós, porém, somos capazes de aliviá-las. É verdade que elas mereceram esses sofrimentos em punição de seus pecados, mas agora elas os choram e detestam. Elas estão na graça e amizade de Deus, enquanto os pecadores são inimigos dele. Certamente devemos orar pela conversão destes, mas sem prejuízo do que devemos às almas sofredoras, tão caras ao Coração de Jesus.”

“Vamos compadecer-nos dos pecadores, mas não nos esqueçamos”, rematou o irmão Bento, “que eles têm à sua disposição todos os meios de salvação; eles devem quebrar os laços do pecado e fugir ao perigo da condenação que os ameaça. Não parece evidente que as almas sofredoras têm mais necessidade e merecem uma participação maior em nossa caridade?”

Apesar da força desses argumentos, o irmão Bertrand persistiu em sua primeira opinião.

Na noite seguinte, porém, apareceu-lhe uma alma do Purgatório que o fez experimentar por uns breves instantes a dor que ela mesma suportava. O sofrimento foi tão atroz que pareceu impossível suportá-lo. E, como diz o profeta Isaías, vexatio intellectum dabit, quer dizer, “só a aflição faz entender a lição” (Is 28, 19), Bertrand finalmente se convenceu de que deveria fazer mais pelas almas sofredoras. Na manhã seguinte, cheio de compaixão, subiu os degraus do altar revestido de preto e ofereceu o Santo Sacrifício pelos mortos.

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