Os primeiros filósofos da modernidade tentaram construir uma Filosofia que explicasse o real com base em certezas matemáticas. Obviamente, tomando a peito uma missão tão insensata, acabaram fracassando. E o fracasso deles abriu caminho para a negação de toda e qualquer ordem na realidade.

Afastando-se desses dois extremos, precisamos reconhecer que:

1. existe, sim, uma Razão absoluta;

2. ela se manifesta na própria estrutura da realidade;

3. a realidade não é produto do acaso, mas do Criador que, de forma livre e sábia, ordenou todas as coisas.

Eis o ponto de partida deste 11.º episódio do programa Studiositas, nosso encontro semanal cujo foco, mais do que simplesmente apresentar um conteúdo ou levantar uma bandeira, é realizar, na prática, o ato da busca pela verdade, colocando-nos, assim, no caminho da virtude e da santidade.

Recapitulação

Em nossas últimas reflexões, utilizamos como interlocutor Max Horkheimer e seu livro Eclipse of Reason (“Eclipse da Razão”). Na obra, o autor detalha dois tipos de razão: a subjetiva e a objetiva.

Por várias aulas e sob diversos aspectos, abordamos o tema da razão subjetiva, criticando sua loucura; e iniciamos, ainda que de forma superficial, a falar sobre razão objetiva. Agora, vamos tratar especialmente desse assunto, e sem ficarmos reféns do ponto de vista de Horkheimer.

Pudemos perceber que Horkheimer não é exatamente um interlocutor honesto, alguém que esteja realmente buscando a verdade. O foco dos autores da Escola de Frankfurt, como já dissemos, é a dialética negativa; eles querem apenas destruir. Aproveitemos, porém, essa capacidade destrutiva e usemos esses argumentos de forma honesta. Pois, estamos aqui nos esforçando por conversar, ainda que com interlocutores desonestos, para, desse processo dialético, extrair algo positivo.

Vamos, portanto, verificar o que Horkheimer falou de razão objetiva ou absoluta. Mas, antes de entrar no assunto principal, contemos uma pequena história.

Os racionalistas e as certezas matemáticas

Teoricamente, podemos dizer que a Filosofia moderna — e, portanto, o mundo moderno — começou um pouco antes da Revolução Francesa. Para utilizarmos a linguagem do Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, o marco inicial da “modernidade moderna” são as Regulæ ad directionem ingenii (“Regras para a direção do espírito”), escritas no século XVII por um rapaz, “teoricamente católico”, que havia sido aluno de jesuítas: René Descartes.

Lembramos que Descartes era um matemático. Foi criador, por exemplo, do plano cartesiano (as duas retas perpendiculares com um ponto em comum, formando os eixos x e y, usado para sistematizar localizações no plano). Por conta disso, ele tinha como objetivo trazer também à Filosofia um fundamento sólido, concreto, tal qual a Matemática, a fim de que se pudesse caminhar a passos firmes no saber filosófico.

Essa busca de se alcançar na Filosofia certezas absolutas, como “dois mais dois é igual a quatro”, tornou-se uma verdadeira obsessão. Note que, na época, todos os grandes filósofos eram também matemáticos.

O precursor mesmo desse movimento foi Galileu Galileu, que viveu no período de São Roberto Belarmino (entre os séculos XVI e XVII). Foi esse italiano quem primeiro disse que Deus escreveu o universo “em língua matemática, cujos caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas”. O que é uma absurda estupidez.

Qualquer pessoa que entende de Geometria, sabe que ela é composta de abstrações, cujos objetos não existem no mundo real. Por exemplo, um ponto não existe de fato; é um ente de razão, que determina uma posição no espaço, não possuindo medida ou extensão (convém recordarmos que um ponto feito numa folha de papel é apenas a representação desse conceito geométrico). Já a reta é definida com a menor distância entre dois pontos. A reta, portanto, também é um ente de razão, e também não existe no mundo real, tal qual triângulos, sejam retângulos, equiláteros ou isósceles. São coisas que funcionam como cálculo. Mas não é nisso que consiste o mundo. O método matemático é utilíssimo, mas não é adequado para descrever a realidade.

No entanto, essa era a moda nos idos dos séculos XVII. Desde então, Galileu entrou para a narrativa ideológica como um “homem iluminado, científico, defensor da verdade e da razão” contra a Igreja “obscurantista e ignorante que punia os livres pensadores com as chamas da inquisição”. Essa propaganda — pois não passa disso — é ainda amplamente difundida e largamente aceita.

Na esteira de Galileu, vieram Descartes e Pascal — que, recentemente, recebeu uma boa homenagem em carta do Papa Francisco.

Diga-se que eu, particularmente, gosto bastante do Pascal, mesmo sabendo que ele estava ligado a um movimento jansenista — ainda que alegasse não ser de Port-Royal. No entanto, interessa em Pascal que, embora fosse um matemático, ele era mais inteligente do que isso. Ele percebeu que, se razão era aquela coisa estritamente matemática, conforme diziam os filósofos da moda, então, com certeza, havia algo no mundo para além da Matemática. É dele a frase: “Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point.” (“O coração tem razões que a razão não conhece.”) [1].

Houve também Spinoza, que pretendia continuar o que Descartes havia iniciado: a ideia de partir do “grau zero” do saber, duvidando de tudo — ainda que o seu filósofo modelo, por impossível, não tenha cumprido semelhante tarefa. Por exemplo: Descartes, percebendo que não seria possível construir uma ética “partindo do zero”, alcançando “certezas matemáticas”, admite, no próprio Discurso do Método, que seria necessário adotar uma “morale par provision” (“moral provisória”).

Spinoza, no entanto, assumiu para si esse empreendimento e pretendeu erigir uma “ethica more geometrico” — uma ética metódica construída ao modo dos geômetras.

Havia também Leibniz que, mais do que matemático, era um impressionante polímata. Descobriu, por exemplo, o cálculo diferencial (ainda que dispute esse pioneirismo com Newton).

De qualquer forma, interessa-nos agora, mais do que os nomes, perceber como, no início desta “modernidade moderna”, todos os pensadores influentes eram matemáticos, e como todos, em alguma medida, queriam que a moral, a Filosofia e as outras áreas do conhecimento progredissem, obrigatoriamente, aos moldes dessa disciplina.

Surge então a ideologia cientificista.

Ora, na Idade Média havia uma única cristandade e uma única Igreja. Havia uma só ordem para toda a cristandade, organizando todo o corpo social. Eis o princípio ordenador: Deus, Criador do céu e da terra, estabeleceu o próprio cosmos de forma ordenada; e a Igreja, há séculos, era estudiosa e professora dessa ordem.

De repente, junto com o Protestantismo, surge uma crise de autoridade: o mundo cristão, antes coeso, divide-se: protestantes de um lado, católicos do outro. Como resultado, um século depois de Lutero estoura a continental Guerra dos Trinta Anos — que pode ser considerada a “verdadeira” primeira guerra mundial. O que começou como uma guerra religiosa entre católicos e protestantes terminou como um conflito entre as potências mundiais (por exemplo, a França, que era católica, terminou aliando-se a nações protestantes e mesmo ao Império Otomano).

Resultado da Guerra dos Trinta Anos foi a certeza, quase Matemática, de que a religião não poderia mais organizar a sociedade e urgia encontrar o substituto. Os pensadores modernos, compondo um clero secular, veem-se finalmente chamados a guiar os povos e nações; e sempre como base num racionalismo duvidoso escorado na premissa faz-de-conta: “vamos raciocinar etsi deus non daretur; como se Deus não existisse”.

A Matemática, ciência em franco progresso, tornou-se o mote desse esforço ordenador. Houve, portanto, essa ilusão temporária de que se poderia organizar a Filosofia e explicar qualquer coisa matematicamente. Porém, há um pequeno detalhe: é matematicamente impossível explicar o mundo apenas por meio da Matemática.

A contraposição de Chesterton

Essa lacuna que o pensamento lógico-matemático não é capaz de preencher foi muito bem expressada por Gilbert Keith Chesterton — literato, ensaísta, jornalista, apologista e, podemos dizer convictos, filósofo. Uma de suas obras mais conhecidas, Ortodoxia, ele a escreveu no processo de sua conversão ao catolicismo. O capítulo três do volume chama-se The Ethics of Elfland (“A ética do país das fadas”, na edição brasileira da editora Ecclesiæ), e faz um excelente contraste, já pelo nome, com o more geometrico de Spinoza.

Chesterton não fala especificamente de Spinoza ou de qualquer outro filósofo moderno. Mas sua reflexão vai no seguinte sentido: há algo que adultos sérios e excessivamente racionalistas não entendem; algo que ele, Chesterton, quando era criança, compreendia perfeitamente. Ao escutar um conto de fadas, o pequeno Gilbert jamais caía na estupidez de pensar que todas as coisas contidas naquelas narrativas eram totalmente fantasiosas e arbitrárias. Estava claro que no mundo das fadas misturavam-se as mais esvoaçantes fantasias com a mais fria e sensata razão. Diz o autor:

Por exemplo, se as irmãs feiosas são mais velhas que Cinderela, é (num sentido férreo e terrível) necessário que Cinderela seja mais nova que as irmãs feiosas. Não há como escapar disso [...] Se João é o filho de um moleiro, um moleiro é o pai de João. A fria razão o decreta de seu horrível trono: e nós, habitantes do país das fadas, nos submetemos. Se todos os três irmãos cavalgam cavalos, há seis animais e dezoito pernas na estória: isso é o verdadeiro racionalismo, de que o país das fadas está cheio [2].

Há, portanto, no país das fadas, coisas que são propriamente cold reason (“fria razão”). Mas Chesterton lembra-se ainda de que ouvia, quando menino:

Os doutos homens de óculos a falar dos eventos reais [no original, actual things, coisas factuais] — a alvorada e a morte, e tudo mais — como se fossem racionais e inevitáveis. Falam como se o fato de que árvores dão frutos fosse tão necessário quanto o fato de que uma árvore mais duas árvores são três árvores. Mas não é [3].

Uma árvore mais duas árvores são, claramente, três árvores, e nos contos de fadas isso não muda, pois faz parte da estrutura do real. Porém, o fato de a árvore dar ou não frutos não é próprio dessa mesma estrutura: é uma realidade “arbitrária”, que, portanto, pode ser alterada no mundo do conto de fadas. Continua o autor:

Há uma grande diferença de acordo com o teste do país das fadas, o teste da imaginação. Não é possível imaginar dois mais um e não chegar a três. Mas é fácil imaginar que as árvores possam não dar frutos, e sim candelabros de ouro ou tigres pendurados pelos rabos [4].

Usando, portanto, o “teste da imaginação”, podemos conceber que as árvores, por exemplo, poderiam ter folhas violetas e lilases ao invés de verdes. O que impede? Por que as pessoas não brotam da grama como os cogumelos, ao invés de nascer de mulheres? São possibilidades que, apesar de parecerem absurdas, são imagináveis, ao contrário de “dois mais dois” dar resultado diferente de “quatro”. No mundo do conto de fadas, ninguém vê problema algum em que as crianças nasçam de cegonhas e não de mulheres — porque isso não é algo indispensável na estrutura da realidade.

Em resumo: no mundo real, no mundo das actual things, há coisas inalteráveis e outras facultativas. Daí que seja impossível explicar tudo por lógica matemática. Daí que o more geometrico seja uma redonda ilusão.

Pensemos, por exemplo, na hoje contestada ética sexual. Nunca será possível deduzir uma ética sexual more geometrico, porque o fato de que crianças nasçam de uma relação sexual é absolutamente arbitrário: Deus decidiu que fosse assim.

As crianças, se Deus quisesse, poderiam nascer quando dez pessoas entrassem em um acordo e digitassem suas senhas num computador. Fosse desse modo, o sexo teria ligação nenhuma com o ato reprodutivo. Fosse, mas não é. Sabemos que não é assim a partir da observação da natureza, das coisas que existem factualmente, no mundo real.

Temos, portanto, duas formas (complementares) de conhecer a realidade: posso acessar a estrutura por assim dizer lógico-matemática, inalterável; posso pensar as coisas enquanto observo sua substância e natureza. Desse modo, por método verdadeiramente filosófico, vou entendendo o que é determinado ser e como ele está naquele momento — se de acordo ou contra sua própria natureza. Lembrando sempre que essa natureza das coisas, muito de acordo com o mundo das fadas, tem em regra um misto de estrutura fixa e divinas arbitrariedades.

A Matemática, desse modo, é “forçosa”, estrutural e estruturante, lógica, apodítica — uma conclusão matemática é fatal, inescapável. Mas os entes reais, as actual things como diria Chesterton, não têm necessariamente essa qualidade. Tem coisas que tem, e outras que não tem.

Uma árvore mais duas árvores são três árvores, e nem Deus pode mudar isso. Deus não é capaz de fazer com que dois mais um não seja três. Mas Deus consegue fazer com que árvores deem tigres pendurados pelo rabo.

Sabemos que dois mais um é três porque isso está na estrutura do ser. Sabemos que as árvores não dão tigres por observação e reflexão. Vê-se claramente que são dois métodos de conhecimento diferentes e necessários. Eis porque a Matemática jamais dará conta do todo; resolverá sempre apenas pequenas frações.

Estrutura da Realidade e Princípio Ordenador

O racionalismo matemático, certamente, não é afeito às incessantes confusões e discussões da busca filosófica. É compreensível que tenham buscado transformar a Filosofia em algo que levasse às mesmas certezas firmes da tabuada. Todavia, depois de muitas e engenhosas tentativas, percebeu-se que a matematização do conhecimento era impossível. Resultado: do alto dessas certezas clarividentes caímos no poço fundo da mais obscura dúvida.

Surge a era do subjetivismo, do relativismo, do pragmatismo e do utilitarismo. Já que não existe nenhuma razão férrea, matemática, para que um homem seja homem, então que seja mulher de manhã, barata de tarde e leopardo de noite.

Afinal, para o homem moderno, quem lhe pode obrigar a fazer algo que não esteja dentro da lógica do “dois mais dois igual a quatro”?

O problema é que o novo paradigma descarta o velho princípio ordenador. Mas, qual é mesmo o princípio ordenador?

Para aqueles que gostam de Filosofia, vale a leitura do livro Deus, Sua Existência e Sua Natureza: Solução Tomista das Antinomias Agnósticas, do frade dominicano Réginald Garrigou-Lagrange [5]. O primeiro volume é sobre a questão da existência de Deus e suas provas. No segundo volume, o autor analisa a natureza de Deus, seus atributos e, falando da Sabedoria divina, fala sobre aquilo que, para Horkheimer, é a razão absoluta:

A Sabedoria divina, enquanto tem por objeto a essência divina e todos os possíveis virtualmente contidos nela, chama-se ciência de simples inteligência; enquanto tem por objeto as coisas criadas passadas, presentes ou futuras, ela supõe a vontade de criar e se chama ciência de visão [6].

Existem, portanto, dois tipos de ciência em Deus: a de simples inteligência e a de visão. Quer dizer que Deus, fonte de todo ser e que tem todas as perfeições, conhece a si mesmo desde toda a eternidade. Se nós temos a perfeição da inteligência, Deus a tem muito mais! Então é evidente que Deus é um Ser inteligente, não uma força cósmica. Deus se conhece e se ama, e o próprio ato de ser de Deus é o ato de se conhecer — não são dois atos diferentes. O autoconhecimento faz parte da estrutura divina.

Por outro lado, quando Deus conhece as árvores, que Ele mesmo criou, trata-se de um outro tipo de conhecimento, porque o objeto é algo que Ele fez, mas poderia não ter feito. Desse modo, Deus conhece todas as coisas. Deus é Aquele que se conhece com ciência de simples inteligência, e conhece todas as coisas, todos os possíveis.

Possível é aquilo que pode ser, porque está, como possibilidade, na estrutura do real — embora muitos desses possíveis nunca venham a ser. Por exemplo: Eu, Padre Paulo Ricardo, tenho filhos biológicos possíveis, mas, como minha vocação é o celibato, espero que eles nunca sejam.

Deus poderia criar outros mundos; mundos melhores do que este. Desculpe-nos o senhor Leibniz, mas não estamos “no melhor de todos os mundos possíveis”. Este é um conceito deísta, próprio dos filósofos modernos. Diziam estes que Deus criou o melhor dos mundos possíveis e apenas lhe “deu corda”, um “impulso inicial”; agora, o universo, como um relógio, funciona sem qualquer interferência divina.

Nesse sentido, tanto a existência do bem quanto a do mal teriam nada a ver com Deus. Essa é a questão levantada na Teodiceia de Leibniz, numa tentativa de “salvar” Deus da acusação de que Ele seja a fonte do mal — acusação que deve, sim, ser respondida, mas de outra forma, que não cabe aqui explicar.

Não podemos limitar a potência divina. Deus poderia, sim, criar um mundo melhor do que este. Deus conhece tudo aquilo que é, que foi e que será, mas também conhece tudo aquilo que nunca será, mas poderia ter sido.

Dessa forma, os dois conhecimentos de Deus, o de simples inteligência e o conhecimento de visão, ambos eternos, possuem claras distinções.

Deus é simplicíssimo; mas nós, seres humanos, precisamos decompor em aspectos essa simplicidade para a compreendermos. É assim que funciona a nossa limitada inteligência.

Deus é a estrutura do real. É a isso que chamamos Logos — Deus é a razão de todas as coisas e as conhece todas, mesmo as que jamais serão. Ele, em sua bondade e sabedoria infinitas, escolheu tudo aquilo que foi, que é e que será. Eis a lição de Chesterton com o seu mundo das fadas.

No capítulo 5 da mesma obra, intitulado Os paradoxos do cristianismo, diz Chesterton:

Suponham que algum matemático, habitante da lua, buscasse entender o corpo humano; imediatamente veria que o essencial está em seu aspecto duplicado. Um homem é dois homens, o da direita sendo exatamente simétrico ao da esquerda. Depois de notar que há um braço na direita e outro na esquerda, uma perna na direita e outra na esquerda, ele poderia continuar e ainda assim encontrar em cada lado o mesmo número de dedos dos pés e das mãos, olhos, orelhas, narinas e até mesmo lóbulos cerebrais gêmeos. Finalmente ele aceitaria isso como uma lei; e, então, deduziria, depois de encontrar um coração em um lado, que encontraria um coração no outro lado. E no momento triunfante em que se considerasse dono da verdade é que mais erraria [7].

Ou seja, o matemático vindo da lua deduziu a realidade das coisas more geometrico. Por isso fracassou.

Chesterton então arremata, mostrando que essa é a questão a respeito de Deus e sua criação — Ele faz as coisas de forma lógica, but not quite (“mas não exatamente”). Só para nos desconcertar, Ele decide que há um coração de um lado, mas não do outro. Tem fígado, pâncreas e vesícula biliar de um lado; do outro, não. Chesterton quer nos ensinar que as coisas são assim por livre deliberação divina.

“Por que Jesus nasceu de uma virgem?” Embora escandalize alguns, Ratzinger, em sua Introdução ao Cristianismo, diz que Deus não precisaria vir ao mundo através de uma virgem [8]. Cristo poderia, tranquilamente, escolher vir ao mundo por uma relação sexual entre Maria e José. É heresia? Não. Ele não está afirmando que Jesus veio assim. A Encarnação, sabemos, ocorreu por meio da concepção virginal. Mas, eis o ponto: se Deus quisesse, poderia ser de outro jeito.

No entanto, os teólogos vindos da lua, vendo, com razão, que não havia a obrigatoriedade de uma concepção virginal, pensam poderem desmoralizar o dogma: Lunáticos, não compreendem a simples realidade poderia não ser, mas é.

Existe uma parte da realidade que precisa, necessariamente, ser como é, e outra parte da realidade que não precisa, mas é — porque Deus escolheu que fosse.

Para não ficarmos restritos ao pensamento de Chesterton — e antes que venham os autointitulados inquisidores acusar esse autor de ser modernista ou anglicano — façamos uma consulta a Santo Tomás de Aquino.

Na primeira parte da Suma Teológica, questão 25, Santo Tomás discorre a respeito da onipotência divina. No artigo 4º, ele responde a esta pergunta: “Deus pode fazer com que coisas passadas não tenham existido?” [9]. Ou seja, se Deus é onipotente, Ele não poderia fazer com que o passado não exista mais?

A resposta do Doutor Angélico é um contundente “não”: “Como foi dito acima, o que implica contradição não está sob a onipotência de Deus. Ora, que as coisas passadas não tenham existido implica contradição” [10].

Vejam que, de fato, Deus pode tudo. E o que é o tudo? A estrutura da realidade. De modo que aquilo que está fora da estrutura da realidade não pertence ao âmbito da onipotência divina. Deus não pode anular o princípio de não-contradição, que diz que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Deus não pode anular o princípio de identidade e dizer que A é diferente de A. Deus não pode dizer que uma coisa que é, não é — a não ser que a coisa seja e não seja sob aspectos diferentes: a batina do padre é preta e é branca, em diferentes aspectos: o colarinho é branco, o restante da batina é preta. Não dá para ser preta e branca ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.

Alguém, em oposição, pode dizer que o cinza é branco e preto ao mesmo tempo. No entanto, estamos falando de contradições, não apenas de contrários. O branco é o contrário do preto, mas o seu contraditório. Veja: uma pessoa não pode existir e não existir ao mesmo tempo. Isso é contraditório. Uma coisa pode ser cinza, porque o branco não é o contraditório do preto; é o seu contrário. O contrário, diferentemente do contraditório, permite graduações. Se eu digo que “Fulano está quase chegando”, significa então que ainda não chegou. Se constato: “Ele acabou de sair”, então não está mais. Entre o ser e o não ser, non datur tertium quid (“não há uma terceira alternativa”). Não é concebível uma graduação em que algo é nada, depois é quase nada, depois é um pouco menos que quase nada e, de repente, é.

Deus, que é a própria estrutura do real, o Ens realissimum, não é capaz de mudar essa estrutura porque a contradição não faz parte de sua natureza. Para demonstrar isso, Santo Tomás de Aquino dá o seguinte exemplo:

Assim como há contradição em dizer que Sócrates está e não está sentado, também há em dizer que esteve e não esteve sentado. Ora, dizer que ele esteve sentado é declarar uma coisa passada; dizer que não esteve é dizer que essa coisa passada não existiu [11].

Em outras palavras, Deus não pode fazer com que Sócrates esteja sentado e de pé ao mesmo tempo. Deus não pode fazer com que o número quatro seja mais do que quatro. Não obstante, Deus pode fazer unicórnios e cavalos alados; mas não o fez, porque não quis.

Reforçando: quando falamos de conhecimento da realidade, precisamos distinguir essas duas coisas — as que são por necessidade lógica e as que são por querer de Deus.

Por não aceitarem esses dois aspectos da realidade, os filósofos modernos, como vimos, tentaram construir uma Filosofia baseada na Matemática. Quando essa empreitada se mostrou impossível, partiu-se para o subjetivismo mais desesperado: “as coisas são aquilo que quisermos que sejam”.

Tendo em mente essa trágica história para a qual nos levou a negação da razão objetiva, precisamos entender, finalmente, o que significa a razão absoluta, algo que, como vimos, escapou ao entendimento do Horkheimer.

Liberdade e o problema da filosofia moderna

Para os filósofos modernos, já que Deus não passava de uma “mitologia criada pelos padres” para fins de dominação, a tal Razão absoluta só existe na cabeça das pessoas.

Horkheimer elenca, em Eclipse da Razão, alguns filósofos para os quais existia a Razão absoluta: Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, e, segundo ele, até mesmo Hegel!

Quanto ao Hegel, é necessária uma distinção: enquanto os filósofos antigos e os cristãos viam a Razão absoluta em Deus, ou seja, fora de nossas capacidades, Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito, diz que era preciso tirar a filosofia desse estado meramente complementativo, dessa busca amorosa da sabedoria, ainda que nunca a alcance plenamente. Sua pretensão era que o homem alcançasse a capacidade de compreender a razão íntima e a lógica de todas as coisas.

Ainda que eu esteja fazendo, de certo modo, uma “caricatura” de Hegel, é importante entendermos que Horkheimer e esse filósofos modernos, inclusive o próprio Hegel, Kant e Descartes, não conheciam de forma verdadeira e profunda os filósofos antigos.

Os filósofos antigos e medievais não tinham um sistema, mas uma busca. Mas essa eterna busca não é uma forma de relativismo. Não podemos cair na armadilha moderna, nessas cordas que nos puxam simultaneamente para os extremos até, como quer o Diabo, rasgar-nos ao meio: “ou tenho a certeza de que tenho a razão absoluta ou não há verdade, tudo é relativo.”

A verdade absoluta existe. Nós somente não somos capazes, aqui neste mundo, de alcançá-la em sua plenitude. Por outro lado, se buscamos sinceramente a verdade, não somos capazes de estar totalmente fora dela. Ao contrário, podemos aumentar e aperfeiçoar, ainda neste mundo, nossa experiência com a verdade, o que nos torna de fato livres.

Nosso Senhor disse: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Conhecer a realidade vai nos dando liberdade. Ora, mas o que é liberdade? Para Deus, é o fato de que Ele, sendo o próprio Ser e a fonte de todo ser, possui o atributo divino da asseidade — significa que Deus não depende de nada fora dele: não precisaria criar tudo que existe, mas o fez por liberalidade. Essa é a liberdade divina.

A liberdade da criatura não pode ser a mesma. Não podemos viver como quem não dependa de absolutamente nada. Como criaturas, estamos a todo momento recebendo o ser do Criador. Deus está nos sustentando na existência. Deus, diferente do que pensam os deístas, não deu corda no mecanismo universal e o abandonou à própria sorte. O verdadeiro ato criador não foi feito no passado: Deus o está realizando exatamente agora. Deus está agora pensando em cada um de nós, sustentando-nos no ser. Sempre damos esse exemplo absurdo, mas que deixa esse ato criador bastante claro: se Deus fosse capaz de dormir, se Ele “cochilasse”, nós (e todo o universo) deixaríamos de existir.

Voltando à liberdade

Esclarecidas as circunstâncias, voltemos à questão: o que é a liberdade humana? Não é e nem pode ser a independência de Deus — porque isso significaria cair no não ser. A liberdade humana consiste em não nos submetermos a realidades inferiores à nossa natureza. Mas, ao contrário, quando nos submetemos a realidades ontologicamente superiores, somos verdadeiramente livres.

Para melhor ilustrar esse fato, que a liberdade de uma criatura não significa total insubordinação, imagine o seguinte: quando nos submetemos aos nossos sentimentos ou às nossas paixões desordenadas, inferiores à nossa inteligência e vontade, deixamos de ser livres. Pelo contrário, quando obedecemos aos mandamentos do Senhor e submetemo-nos às suas moções interiores, dadas pelo Anjo da Guarda, aí alcançamos a plena liberdade.

Uma última reflexão

Já que a liberdade consiste em se submeter às coisas superiores, é preciso um esforço para conhecer essas realidades libertadoras. Essa é a nossa missão com o programa Studiositas.

Para ficarmos no tema de hoje, precisamos, caso queiramos ser livres, refletir sobre o mundo real, que é, como vimos, constituído das estruturas necessárias; das coisas, por assim dizer, desnecessárias, criadas conforme a livre vontade de Deus; daquilo, enfim, que Deus permite, mesmo que tenha aparência de mal, para dali tirar um bem.

Insistimos, como fazemos toda semana, na necessidade de se refletir, de observar na realidade, meditativamente, aquilo que aprendemos nas aulas. Façam a experiência: vejam se é imaginável que dois mais dois seja cinco; vejam se é imaginável uma árvore fazendo brotar tigres de bengala. Não sejam meros repetidores daquilo que “o Padre Paulo falou”. Essa libertação, que se alcança pelo conhecimento da realidade — sejam as inferiores, que devem ser dominadas, sejam as superiores, que devem ser obedecidas — essa libertação só se alcança individualmente.

1.ª Pergunta:

“Será que esses limites da contradição da estrutura do real não existem somente para nós, criaturas, e na verdade Deus não estaria submetido a eles? Por exemplo: será que Deus não está acima do princípio de não contradição, ou acima da estrutura do real? Afinal, Deus é Trindade, Deus é três mas é um: isso não quebra o limite? Ou então coisas que Deus faz por meio dos milagres, ou de realidades extraordinárias, como a concepção virginal de Nossa Senhora?”

Importante surgir essa dúvida, exatamente porque a resposta já foi dada na aula. Isso mostra que precisamos refletir um pouco mais para enxergá-la.

Deus realmente pode tudo — mas Ele não pode o que não está dentro do possível. Ora, possível é tudo aquilo que pode ser.

Então, poderíamos questionar: porque dizemos que Deus pode o impossível se, por definição, impossível é o que não pode ser?

Vejamos que não há nesses exemplos qualquer contradição.

Tomemos, por exemplo, a Trindade: se Deus é três e Deus é um, uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo? Sim, mas não sob o mesmo aspecto.

Imagine que eu lhe mostre aqui um objeto quadrado. Um quadrado pode ser um círculo? Existe o círculo quadrado? Sim e não. Se eu colocar um eixo nesse quadrado e girá-lo, você enxergará, a partir desse movimento, um círculo. É aquilo que chamamos de cilindro. Uma caneca de forma cilíndrica é, de certa forma, um “quadrado redondo”. Se você colocar um foco de luz de um lado da caneca, ela vai projetar uma sombra retangular na parede. O mesmo foco, colocado depois acima da caneca, irá projetar, abaixo dela, uma sombra redonda. É um “quadrado redondo”, mas não sob o mesmo aspecto.

Deus é um no aspecto da natureza, mas é três no aspecto das pessoas. A pergunta, então, deveria ser: o que é pessoa e o que é natureza [12]? Para nos aprofundarmos na questão trinitária, precisaríamos meditar teologicamente a fim de entender o que pessoa e natureza são em Deus. A Filosofia nos ajuda, mas, como é um mistério teológico, fruto da Revelação, temos de usar um pouco mais de nossa inteligência.

De qualquer forma, importa-nos agora que não há contradição alguma na Trindade. Deus não pode ser três e um sob o mesmo aspecto. Apesar de Deus ser “simplicíssimo”, Ele se revelou como Trindade, portanto há algo em Deus que é esse subsistente relacional, que são as pessoas divinas.

Quanto aos milagres, está claro que, com eles, Deus não contradiz nada da estrutura da realidade. Partamos do seguinte princípio: Deus pode tudo. Quando dizemos que Ele “não pode” fazer determinada coisa, mais preciso seria dizer que isso não existe na dimensão dos possíveis.

Essa distinção é fundamental: Deus pode todos os possíveis; o que não é possível, Ele “não pode” por não fazer parte da existência.

São Gabriel, na Anunciação, diz a Maria Santíssima que a estéril Isabel concebeu um filho na velhice, “pois para Deus nada é impossível” (cf. Lc 1,37). No original grego, essa expressão equivale a: para Deus não é impossível omne verbum (“toda palavra”). Ou seja: o Anjo está dizendo que, para Deus, tudo aquilo que tem ser, que é verbum, é possível. Para Deus, tudo aquilo que está dentro da estrutura do inteligível é possível.

Não se trata, de modo algum, de um limite do poder divino. Deus é capaz de criar outro mundo? Sim. Pode criar milhares de universos diferentes, com bilhões e bilhões de novos tipos de criaturas inteligentes? Sim; na verdade, isso já foi feito, porque, diferentemente de nós, do gênero humano, cada anjo é de um gênero diverso.

Estamos extrapolando para mostrar quão grandiosa é a dimensão das possibilidades divinas. Por exemplo: Deus criou a humanidade: fez-se homem e resgatou-nos. Em um outro universo possível, como seria o relacionamento de Deus com outras possíveis criaturas inteligentes? Teria Ele se encarnado? Não sabemos se esse universo existe, mas pode ser que exista e que a economia da salvação ali seja muito diferente. Agora, o que é impossível, em todos os universos criados por Deus, é que “dois mais dois seja cinco”. Porque isso não existe.

Desse modo, é inadequado usarmos a expressão “Deus não pode”. A frase “Deus não pode fazer que dois mais dois seja cinco” é imprecisa. Podemos reformulá-la dizendo simplesmente que: “Deus pode tudo e, porque ‘dois mais dois é igual a cinco’, não está dentro do tudo — consiste em um não ser, uma contradição”.

Não existe inteligência que consiga conceber “dois mais dois é cinco”, pois isso não é inteligível; e faz parte das propriedades do ser o fato de que tudo que existe é inteligível.

É importante fazermos essas distinções, assim como esses exercícios de imaginação: “Deus poderia fazer com que houvesse três sexos ao invés de dois?” Sim. Mas fez? Não. E já que não fez isso, a duplicidade dos sexos constitui um dado da realidade a que devemos obedecer da mesma forma que obedecemos à regra de que “dois mais dois é igual a quatro”, ainda que as duas coisas estejam em níveis diferentes de ontologia: esta é estruturante, aquela é dispositiva.

Os unicórnios não existem, mas poderiam existir; “dois mais dois é igual a cinco” não existe e nem poderia existir. É preciso meditar a respeito disso e captar a diferença entre as duas coisas.

Vejamos o seguinte milagre: um índio, lá no México, teve sua perna amputada, e o membro foi enterrado. No meio da noite, porém, Nossa Senhora de Guadalupe aparece e, quando o índio acorda, a perna está de volta, sem defeito ou ferimento. Então aqueles que haviam enterrado a perna correm até o local, cavam e veem que ela não está mais lá. Isso é um milagre? Sim. Isso é impossível? Enquanto estrutura do ser, não! As pernas podem voltar ao lugar delas; é algo perfeitamente concebível. Não temos o poder de fazer isso, mas o Criador tem.

Não podemos fazer unicórnios, não podemos fazer sequer com que brote cabelo em nossa cabeça (veja a minha situação…) Mas Deus é Deus. Deus pode fazer um Padre Paulo cabeludo de novo? Sim. Mas tem coisas que não fazem parte da existência. Deus, por exemplo, “não pode fazer” os pecados que cometemos deixarem de existir. Porque eles existem e por toda eternidade estarão em nosso “currículo”. O que Deus pode fazer e faz é perdoá-los.

O pecado é uma deficiência na ação. Deus não pode pecar porque, sendo o ato perfeitíssimo, não pode ter qualquer deficiência em suas ações. Nós, porém, podemos e agimos de forma deficiente. Pecamos, portanto. O que Deus pode nos dar, com o perdão, é evitar que as consequências do nosso agir deficiente sejam levadas a cabo; e Ele supre isso por uma ação que Lhe é própria: o nosso agir deficiente é suprido pelo agir perfeitíssimo de Deus — isso é a misericórdia.

Alguém que diz: “se Deus não pode pecar, então Ele não é livre” possui uma concepção absurda de liberdade. Por isso precisamos parar para meditar!

Precisamos parar com essa verborreia de quem usa palavras sem saber o que elas realmente significam. O que é liberdade no Ser perfeitíssimo, fonte de todo ser? E o que é liberdade para nós?

É justamente para refletirmos e conversarmos sobre essas coisas que nos reunimos aqui, toda semana. É por isso que sempre recomendo que essas aulas sejam ouvidas mais de uma vez. É preciso parar, refletir, pesquisar a respeito do que está sendo dito e assim por diante. Senão ficamos apenas com a “cultura”.

A função pedagógica da matemática

Usamos exemplos numéricos, como “dois mais dois é igual a quatro”, para entender a estrutura do real, porque eles são mais acessíveis no sentido intuitivo. Mas é evidente que os números são uma abstração.

Como os filósofos antigos tratavam a matemática? Qual era a diferença para os filósofos modernos, de Descartes e Galileu em diante? Podemos entender no que consiste essa diferença em A República, de Platão: depois que uma pessoa estuda bastante, é importante que ela se dedique à Matemática porque, no processo educacional, essa matéria é capaz de disciplinar o pensamento — ainda que não seja um instrumento de descrição do real (e não era essa a pretensão de Platão).

Resumindo o processo pedagógico de A República: o homem que pretende ser filósofo estuda Matemática por volta dos trinta anos, e depois continua seguindo com uma série de atividades — até que em torno dos cinquenta terá finalmente alcançado a maturidade e poderá ser chamado filósofo. A Matemática, então, seria uma espécie de estágio pedagógico.

A mesma coisa se dá na Analítica, a lógica de Aristóteles, estudada por todos que se dedicam à Filosofia: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”. Esses silogismos são de uma lógica férrea e apodítica — como uma “matemática do raciocínio”, que cria uma disciplina do pensamento.

O “problema” está apenas no fato de que não é assim que conhecemos o real. Mas não é essa sequer a pretensão da Matemática em Platão ou da lógica aristotélica.

O processo de conhecimento em Platão e Aristóteles provém muito mais da dialética, daquela maiêutica socrática, que possibilita “dar à luz” o conhecimento. Por isso Platão escreveu os diálogos. Muitos estudam os diálogos platônicos como um manual escolar: “Qual era a doutrina de Platão a respeito de tal coisa?” Na verdade, é muito difícil saber qual era a doutrina de Platão a respeito de qualquer assunto. Afinal, os seus escritos são um processo dialógico de busca da verdade. O que faz Sócrates — personagem principal nos diálogos platônicos — é mais um mapeamento de sua própria ignorância do que um catálogo de conclusões.

Investigando como são as coisas, os diálogos não terminam com uma doutrina — embora ele chegue a certas conclusões — , mas com uma experiência da busca: isso é o mais importante.

Muitos não notam que a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino também recorre ao expediente dialógico. É um diálogo resumido, mas ainda é um diálogo. O Doutor Angélico, ainda que de forma um pouco abstrata, está sempre respondendo às questões de algum adversário — e são adversários bem escolhidos, porque é importante dialogarmos com as ideias contrárias, para realmente enxergarmos as coisas como são.

Podemos fazer o exercício de imaginar esses diálogos implícitos na Suma, para também conseguirmos alcançar a intuição da verdade que está sendo buscada.

É esse então o papel principal da Matemática: criar disciplina mental. Também é importante a sua utilidade prática: afinal, o que seria da Engenharia sem o Cálculo? No entanto, precisamos estar cientes de que a Matemática, sozinha, não dá conta de descrever a realidade. Não há equação que explique ter o índio mexicano recebido de volta a sua perna.

2.ª Pergunta:

“Qual é a função da imaginação na busca da verdade?”

A imaginação é o caminho pelo qual a inteligência humana é capaz de conhecer as coisas, visto que o nosso intelecto está relacionado a um corpo.

Para abrirmos os olhos de nosso intelecto, precisamos ter diante deles esses “fantasmas”, essas imagens, de modo que possamos fazer ou refazer a experiência da presença dos seres e de seus aspectos.

É evidente, porém, que ao subirmos para níveis mais altos de abstração — por exemplo: Deus, sua natureza e seus atributos — a imaginação também tem uma finalidade, ainda que diversa. Se por um lado Deus é simplicíssimo, nós somente conseguiremos enxergá-lo, em sua simplicidade, quando estivermos com Ele no Céu, face a face. Aqui, enquanto nosso intelecto funciona desta maneira, precisamos da imaginação: usamos as criaturas a quem temos acesso e, imaginando-as, podemos, por analogia, contrapor ou derivar as qualidades e perfeições divinas.

Importa lembrar o seguinte: o verbo mental, produzido no processo imaginativo, não tem uma imagem em si. Por isso, se todas as vezes que quisermos nos lembrar do objeto imaginado utilizarmos uma palavra — por exemplo, anjo —, precisaremos, também, recordar qual é a realidade que essa palavra indica: se já tivermos estudado o conceito e experimentado intelectualmente o que é um anjo, essa palavra fará reavivar, em nossa memória, aquilo que vislumbramos após o estudo e a experiência; caso, porém, ainda não tenhamos feito nem o estudo nem a experiência, precisaremos, pela imaginação, ir compondo intelectualmente o conceito do ser que a palavra evoca.

“Mas como conceber o que é um anjo, se anjos não têm corpo?” Vamos entendendo a natureza de um anjo por contraposição com as coisas das quais temos experiência. No Tratado dos Anjos, Santo Tomás de Aquino faz exatamente isso: explica os anjos por meio de comparações com aquilo que é humano. Justamente porque não temos experiência concreta do que é um anjo, entendemos o que é angélico em contraposição com o humano.

A imaginação, portanto, faz parte do processo de cognição, mas não é o ponto final desse processo. Há realidades que estão em tal nível de abstração que, para elas, não se pode conceber uma imagem; concebe-se um verbo mental.

Não quer dizer que, tendo sedimentado o verbo mental, descartamos a imagem. De certa forma, sempre que quisermos recordar aquilo que um dia concebemos, recorreremos à imaginação, acessando a nossa memória. O processo, portanto, fica mais curto, será feito um “reconhecimento”, e não um conhecimento.

3.ª Pergunta:

“Como foi que entrou na história essa alienação da matemática?”

É uma longa história! Para explicar como a Matemática entrou nessa equação precisaria contar como surgiu a ciência moderna. Uma história de séculos, iniciada nas universidades, por intercorrência daquilo que foi chamado de “Renascimento”; história toda perpassada, pasmem, por um mundo de influências esotéricas. Sim, poucos sabem disso, é algo pouquíssimo estudado, mas a ciência moderna, ironicamente, está muito ligada a temas como feitiçaria, alquimia e magia. O próprio fetiche pela Matemática tem muito a ver com a Cabala, por exemplo.

É, em todo caso, uma realidade bastante complexa, um relato comprido, influenciado por diversos fatores. Não somos capazes de contá-lo todo, e o pouco que somos competentes para narrar já ocuparia todo um longo curso.

Sem cair nos extremos do racionalismo ou do niilismo, precisamos reconhecer que existe, sim, uma “Razão absoluta”, manifestada na própria estrutura da realidade, cuja existência não se deve ao acaso, mas ao próprio Criador, que, de forma livre e sábia, ordenou todas as coisas.

Junte-se a nós!