Todos os três Evangelhos sinóticos nomeiam São Filipe e São Bartolomeu como o quinto e sexto no grupo dos doze Apóstolos, e depois nada mais se diz a seu respeito. Este último [porém] é tradicionalmente identificado com Natanael, que o Evangelho de São João põe em relevo no final de seu primeiro capítulo (cf. 1, 45ss) e menciona no início do último (cf. 21, 2ss) entre os que viram o Senhor Ressuscitado no mar de Tiberíades. Isso ocorre em parte porque, em João 1, é Filipe — a quem ele está sempre associado nos sinóticos — que o leva a Cristo; e em parte porque Bartolomeu é um patronímico, que significa “filho de Tolmai” — sendo “Natanael” o seu primeiro nome. A tradição da Igreja aceita essa identificação, mas, na liturgia, sempre usa o nome Bartolomeu.
Não obstante isso, o Evangelho [do rito] romano [tradicional] para a sua festa não é o do seu diálogo com Cristo registrado em São João (cf. Jo 1, 44-51) [como no Novus Ordo], mas, sim, a lista dos doze Apóstolos por São Lucas e o início do Sermão da Planície (6, 12-19):
Naqueles dias Jesus retirou-se para o monte a orar, e passou toda a noite em oração a Deus. Quando se fez dia, chamou os seus discípulos, e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos: Simão, a quem deu o sobrenome de Pedro, André, seu irmão, Tiago, João, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Simão, chamado o Zelote, Judas, irmão de Tiago, e Judas Iscariotes, que foi o traidor. Descendo com eles, parou numa planície. Estava lá um grande número dos seus discípulos, e uma grande multidão de povo de toda a Judeia, de Jerusalém, do litoral de Tiro e de Sidônia, que tinham vindo para o ouvir, e para ser curados das suas doenças. Os que eram vexados pelos espíritos imundos ficavam também sãos. Todo o povo procurava tocá-lo, porque saía dele uma virtude que os curava a todos.
A escolha tem a ver com as palavras finais, relativas à cura de enfermos e possessos, já que, em seus vários atos apócrifos, Bartolomeu realiza muitas curas de ambos os tipos. Muitos breviários anteriores a Trento apresentam um relato bastante completo dessas histórias, que se assemelham em linhas gerais aos atos apócrifos de outros Apóstolos, principalmente São Mateus. Bartolomeu vai para a Índia e cala um demônio em um templo onde as pessoas costumavam buscar curas. Depois, cura a filha possessa de um rei, que abraça o cristianismo e ajuda o Apóstolo a converter muitas pessoas, inclusive um bom número de sacerdotes pagãos. Muitas curas e milagres impressionantes acompanham essa pregação, mas também despertam a inveja de alguns sacerdotes pagãos, que não se convertem e convencem o irmão do rei a se revoltar contra ele. Este último mata o Apóstolo, mas tem um fim trágico: é assassinado por um demônio, assim como os sacerdotes pagãos que o instigaram. A fé floresce [então] na região.
Já no início do século XIII o Ordinale do Papa Inocêncio III [i], ancestral do Breviário de São Pio V, havia reduzido essa história a uma única lição, um esboço bastante básico com pouco mais de 100 palavras — sinal claro de que, mesmo numa época que tinha (e de muitos modos merecia) a reputação de aceitar indiscriminadamente todos os tipos de narrativa, havia uma consciência de que o conto não era historicamente confiável. Todavia, essa lição aceita a tradição comum (que remonta a Eusébio de Cesareia e São Jerônimo, ambos do século IV) de que Bartolomeu pregou na Licônia, uma região central da Ásia Menor; depois foi para a Índia; e encerrou seus dias na Armênia. Segundo a versão mais antiga de seus atos, ele foi espancado com bastões e decapitado em seguida; [mas] na Alta Idade Média era comumente aceita a tradição de que ele fôra esfolado vivo antes de ser decapitado.
Portanto, assim como muitos outros santos são representados com os instrumentos de sua paixão, São Bartolomeu pode ser visto com frequência tendo nas mãos a faca com que foi esfolado.
Os artistas também aproveitaram a oportunidade para demonstrar seu conhecimento de anatomia, representando-o esfolado de fato. Um exemplo particularmente bom se encontra na Catedral de Milão: uma escultura de Marco Ferreri d’Agrate, concluída em 1562. Na inscrição da base, o artista astutamente finge temer ser confundido com Praxíteles, o escultor mais famoso da Grécia antiga: Non me Praxiteles, sed Marcus finxit Agrates — “Não foi Praxíteles quem me fez, mas Marco d’Agrate”.
A imagem mais conhecida de São Bartolomeu, no entanto, é certamente a do Juízo Final de Michelangelo, na Capela Sistina, principalmente devido à crença popular, mas equivocada, de que o artista pôs seu próprio rosto na pele [arrancada].
Há também uma tradição muito complexa sobre a frequente transladação de suas relíquias, as quais são veneradas em muitos lugares diferentes. Em seu livro sobre a glória dos mártires (De gloria martyrum), c. 34, São Gregório de Tours escreve o seguinte:
Passados muitos anos de seu martírio, quando os cristãos voltaram a ser perseguidos, vendo os pagãos que todo o povo corria para o seu sepulcro e lhe oferecia assiduamente orações e incenso, cegos pela inveja, roubaram o seu corpo e, pondo-o em um sarcófago de chumbo, lançaram-no ao mar, dizendo: “Não mais seduzirás o nosso povo”. Mas, com a cooperação misteriosa de Deus, o sarcófago de chumbo foi levado daquele lugar, trazido à tona pelas ondas e depositado numa ilha de nome “Lípara”. Tendo recebido os cristãos a revelação de que o deviam levar, levaram-no, sepultaram-no e construíram sobre ele um grande templo — no qual fica patente o quanto Bartolomeu auxilia as pessoas com virtudes e benefícios, sempre que é invocado.
Essa tradição é conhecida também no rito bizantino, que celebra uma festa dessa transladação em 25 de agosto, e canta nas Vésperas estes dois hinos:
Viram-se tuas jornadas no mar, ó Apóstolo, que ultrapassaram o entendimento dos homens; pois, lançado ao mar num caixão, mudaste teu curso para o Ocidente, enquanto mártires de renome seguiram-te do Oriente por ambos os lados, prestando-te homenagem, ó Bartolomeu Apóstolo, por ordem do Mestre de todos.
Com tuas ascensões maravilhosas tu santificaste a água, e chegaste à ilha de Lipari, ó glorioso, derramando mirra e curando doenças incuráveis, tornando-te para os fiéis daquele lugar salvador e refúgio, intercessor e libertador ante o Rei e Salvador de todos, ó Bartolomeu Apóstolo.
Parte dessas relíquias foi então transferida de Lipari para Benevento, e de lá para uma igreja na Ilha Tiberina, em Roma, onde permanece até o dia de hoje.
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