A história abaixo, assim como muitas outras extraídas da Legenda Áurea, não constitui um “artigo de fé católica”. É preciso saber colher, em meio aos floreios do autor medieval, as lições espirituais que também os católicos de gerações passadas colheram ao ler linhas como essas. É válido notar, de qualquer modo, que o livro chama-se “legenda” não por ser uma coleção de mitos ou contos de fantasia; a expressão vem do verbo latino lego, “ler”, e significa simplesmente “coisas a serem lidas”.
E porque é para serem lidas que as divulgamos, convencidos de que não é justo sonegar aos católicos de agora esses piedosos relatos da vida dos santos, só porque não se adequam aos critérios atuais de historiografia. É claro, ninguém precisa crer com fé católica que São Cristóvão tinha 5m de altura nem que as flechas lançadas contra ele se voltavam contra os seus algozes. Mas não nos esqueçamos também que o primeiro a realizar milagres foi Jesus de Nazaré; os Evangelhos, que contam inúmeros de seus prodígios, foram escritos muito tempo antes da Legenda Áurea; e nenhum dos seus milagres têm algo a temer ante a moderna “crítica científica”. Além do mais, Ele mesmo disse, de seus discípulos, que fariam obras muito maiores que as que Ele realizou (cf. Jo 14, 12).
Por isso, ao mesmo tempo que não parece razoável dar crédito a tudo o que abaixo vai escrito, não é atitude sadia descartar tudo como se fosse lenda. Se o Padre Pio, em nossa época cética, realizou tantos milagres, para perplexidade de todos, por que não poderiam ter feito o mesmo, em seu tempo, S. Antônio de Pádua, S. Francisco de Paula e, com eles, S. Cristóvão?
Cristóvão, antes do batismo, chamava-se Réprobo, mas depois passou a ser “Cristóvão”, que quer dizer Christum ferens, “aquele que carrega Cristo”, pois o carregou de quatro maneiras: sobre as costas para transportá-lo; em seu corpo, por meio dos tormentos; em sua mente, por meio da devoção; em sua boca, por meio da confissão ou da pregação.
Cristóvão, cananeu de berço, gigante em estatura e terrível de aspecto, tinha mais de cinco metros de altura. O qual, como se lê em seus feitos, ao se apresentar um dia ao rei dos cananeus, teve a ideia de procurar o maior rei do mundo, com ânimo de o servir. Apresentou-se pois a um certo rei, do qual corria a fama de não haver no mundo outro maior. O rei, vendo Cristóvão, recebeu-o de bom grado em sua corte.
Certa feita, um jogral cantava diante dele uma canção em que frequentemente mencionava o diabo. O rei, como fosse cristão, sempre que ouvia alguém falar do diabo, benzia-se logo com o sinal da cruz. Admirado com o gesto, perguntou-se Cristóvão o que significaria aquele sinal. O rei, porém, negou-se a responder. Cristóvão atalhou: “Se não mo disseres, não permanecerei mais em tua corte”. Assim pressionado, disse-lhe o rei: “Traço este sinal sempre que ouço alguém mencionar o diabo, com medo de que ele se apodere de mim e me faça mal”. Cristóvão disse: “Ora, se temes que te faça mal o diabo, é porque ele, por quem mostras ter tanto medo, é maior e mais forte do que tu. Enganei-me, portanto, julgando ter encontrado em ti o maior e mais poderoso senhor do mundo. Adeus! Quero agora encontrar o diabo, para tê-lo como senhor e tornar-me seu escravo”.
Cristóvão deixou o rei com o fito de achar o quanto antes o diabo. Como passasse por um ermo, viu uma grande multidão de soldados, um dos quais, feroz e terrível, lhe veio ao encalço e perguntou aonde se dirigia. Respondeu-lhe Cristóvão: “Procuro o diabo, para tê-lo como meu senhor”. Respondeu o soldado: “Eu sou aquele a quem procuras”. Satisfeito, Cristóvão entregou-se-lhe como servo perpétuo, tomando-o como seu senhor.
Andando juntos pelo mesmo caminho, toparam com uma cruz erguida na estrada. O diabo, assim que a viu, fugiu aterrorizado e, desviando-se do caminho, conduziu Cristóvão por um atalho acidentado, antes de voltar com ele para a estrada. Admirado de ver aquilo, Cristóvão perguntou ao diabo por que tivera tanto medo, a ponto de deixar uma estrada plana para seguir um desvio tão desolado. Como o diabo se recusasse a responder, disse-lhe Cristóvão: “Se não mo disseres, deixar-te-ei agora mesmo”. O diabo, pressionado, respondeu: “Um homem chamado Cristo foi pregado a uma cruz, cujo sinal, sempre que o vejo, causa-me pavor, e fujo aterrorizado”. Cristóvão disse: “Então este Cristo, cujo sinal tanto temes, é maior e mais poderoso do que tu! Em vão trabalhei, sem ter encontrado até agora o maior rei do mundo. Adeus! Quero deixar-te agora e procurar este Cristo”.
Cristóvão buscou por muito tempo quem o informasse sobre Cristo, até que finalmente encontrou um eremita, que lhe pregou Cristo e o instruiu na fé cristã. Disse o eremita a Cristóvão: “Este rei a quem desejas servir pede este obséquio: que jejues com frequência”. Atalhou Cristóvão: “Peça-me Ele outra coisa, porque esta, nunca serei capaz de a cumprir”. Prosseguiu o eremita: “Será necessário que ores muito”. Disse Cristóvão: “Não sei o que isso quer dizer nem sou capaz de o fazer”. O eremita: “Conheces o rio em que muitos transeuntes se arriscam e morrem?” Cristóvão: “Conheço”. E o eremita: “Como és homem forte e de grande estatura, se fizeres casa perto deste rio, ajudando todos a atravessá-lo, estou certo de que agradarás a Cristo, a quem desejas servir como rei, e espero que ali mesmo Ele se há de manifestar a ti”. Respondeu Cristóvão: “Isso, sim, sou capaz de fazer, e prometo dedicar-me a tal serviço”. Cristóvão foi até o rio, ergueu ali uma choupana e, utilizando como báculo um tronco de pinheiro, com o qual se mantinha em pé dentro d’água, não se cansava de passar todos de um lado para o outro.
Passados muitos dias, enquanto repousava em sua cabana, pareceu-lhe ouvir a voz de uma criança, que o chamava dizendo: “Cristóvão, vem cá fora! Leva-me para o outro lado!” Cristóvão saiu sem demora, mas não viu ninguém. De volta à choupana, ouviu novamente a voz que o chamava. Correu outra vez para fora, mas sem encontrar ninguém. Chamou-o a voz pela terceira vez, e Cristóvão saiu, encontrando às margens do rio uma criança a pedir insistentemente que lhe fizesse a travessia. Cristóvão a pôs sobre os ombros, pegou do báculo e entrou no rio para atravessá-lo. A água, porém, ia subindo a pouco e pouco, enquanto a criança pesava como se fôra chumbo. Quanto mais avançava, mais a água subia e mais a criança oprimia, com peso intolerável, os ombros de Cristóvão, que se assustou a ponto de temer afogar-se. Mas com grande esforço escapou, atravessou o rio, colocou a criança na margem e disse-lhe: “Pequeno, tu me puseste em grandes apuros! Pesaste-me tanto que, mesmo que tivera sobre mim o mundo inteiro, não poderia carregar peso maior”. “Não te espantes”, atalhou a criança, “tu tiveste sobre os ombros não só o mundo inteiro, mas também o Criador do mundo. Eu sou Cristo, teu Rei, a quem tens servido nesta obra. E para mostrar que digo a verdade, quando voltares, enfies na terra o teu bastão ao lado de teu casebre, e pela manhã o verás florescido e prenhe de frutos”. Dito isso, desapareceu. Ao retornar, Cristóvão meteu o bastão na terra e, ao levantar-se de manhã, o encontrou carregado de folhas e tâmaras, como se fôra uma palmeira.
Em seguida, partiu rumo a Samos, cidade da Lícia, cuja língua ignorava. Rezou por isso ao Senhor, pedindo lhe concedesse compreender aquele idioma. Obtida a graça, dirigiu-se Cristóvão ao lugar em que os cristãos costumavam ser torturados, para os confortar em nome do Senhor. Um dos juízes daquela terra, que o vira pouco antes em oração, julgando-o fora de si, feriu-lhe o rosto. Mas Cristóvão respondeu: “Se eu não fôra cristão, vingaria já esta afronta”. Cristóvão meteu o bastão na terra e rogou ao Senhor que o fizesse verdejar, a fim de converter aquele povo. Atendida a prece, converteram-se na mesma hora cerca de oito mil homens.
O rei mandou duzentos soldados trazerem Cristóvão diante de si. Como o surpreendessem em oração, tiveram medo de o intimar. O rei porém enviou outros soldados, que, encontrando-o na mesma posição, juntaram-se às suas preces. Ao se levantar, Cristóvão perguntou: “Que procurais?”, ao que responderam: “O rei nos enviou para levar-te preso à sua presença”. Cristóvão disse: “Se eu quisesse, não poderíeis levar-me nem solto nem amarrado”. Eles então replicaram: “Se não queres acompanhar-nos, segue teu caminho. Quanto a nós, diremos ao rei que não te pudemos achar”. Cristóvão respondeu: “Não. Eu irei convosco”. Ele então os converteu à fé, mas insistiu que lhe atassem as mãos às costas e o levassem preso.
Ao vê-lo, o rei, muito perturbado, caiu do trono. Uma vez recomposto com a ajuda de seus escravos, perguntou pelo nome e a terra do recém-chegado. Cristóvão respondeu: “Antes de ser batizado, conheciam-me como Réprobo; mas, desde então, sou chamado de Cristóvão”. Disse-lhe o rei: “Por que te dás o nome deste Cristo crucificado, que não salvou nem a si mesmo nem pode salvar-te a ti? Maldito cananeu! Por que não sacrificas aos nossos deuses?” Cristóvão: “Com muita razão te chamas Dagnus [1], pois és a morte do mundo, o sócio do diabo. Teus deuses são obra de mãos humanas”. O rei: “Porque foste educado entre as feras, por isso não te portas senão como selvagem, ignorante da linguagem dos homens. No entanto, se sacrificares, receberás de mim grandes honrarias; do contrário, hás de morrer com suplícios!” Como Cristóvão se recusasse a sacrificar, Dagnus mandou lançá-lo no cárcere e arrancar a cabeça aos soldados que aceitaram o nome de Cristo.
Ato contínuo, mandou à prisão duas belas moças, uma chamada Nicéia e outra, Aquilínia, prometendo-lhes muitos presentes se lograssem fazer Cristóvão pecar com elas. Assim que as viu, Cristóvão pôs-se em oração. Como porém as moças o perseguissem com afagos e abraços, levantou-se e disse: “Que quereis e por que motivo fostes introduzidas aqui?” Espantadas com o brilho de seu rosto, disseram-lhe: “Tem piedade de nós, santo de Deus, pois queremos crer no Deus que tu pregas!” Ao saber disso, o rei as trouxe de volta e disse: “Acaso vos deixastes seduzir? Juro pelos deuses que, se não sacrificáreis a eles, haveis de morrer uma péssima morte!” Elas responderam: “Se queres que sacrifiquemos, manda limpar as praças e reunir todos no templo”. Feito isso, as duas entraram no templo, desataram os cintos, puseram-nos em volta do pescoço dos deuses, que caíram despedaçados, enquanto diziam elas aos assistentes: “Chamai agora os médicos para curar os vossos deuses!” Então, por ordem do rei, Aquilínia foi suspensa e a seus pés, atada uma pedra enorme, deslocando-lhe todos os membros. Depois de Aquilínia partir para o Senhor, foi a vez de sua irmã, Nicéia, ser lançada no fogo. Como porém dele saísse ilesa, foi prontamente decapitada.
Depois disso, Cristóvão foi levado à presença do rei, que mandou açoitá-lo com varas de ferro e lhe meter na cabeça um elmo incandescente. Em seguida, amarraram-no a um banco de ferro, sob o qual se acendeu um fogo alimentado por piche. O banco porém derreteu como cera, e Cristóvão saiu ileso. Depois, o rei mandou que o amarrassem a um poste, para servir de alvo às flechas dos soldados. Todas elas porém ficaram suspensas no ar, perto dele, sem o atingir. Ora, julgando o rei que Cristóvão fôra atingido pelas flechas, começou a insultá-lo quando, de repente, uma delas se voltou contra o próprio rei, acertando-lhe bem no olho. Cristóvão então disse: “Amanhã estarei morto, tirano. Tu porém faz lama com o meu sangue e esfrega com ele o teu olho. Assim hás de recuperar a luz”. O rei mandou decapitá-lo. Cristóvão perdeu a cabeça enquanto se mantinha em profunda oração. O rei, como ordenado, pegou um pouco de sangue e esfregou o olho com ele, dizendo: “Em nome de Deus e de São Cristóvão”, e ficou curado no mesmo instante. O rei converteu-se e publicou um édito pelo qual todo o que blasfemasse contra Deus e São Cristóvão seria imediatamente punido pela espada.
Ambrósio, em seu prefácio, refere-se a este mártir nos seguintes termos:
O Senhor cumulou Cristóvão de tanta virtude e graça na doutrina, que ele afastou 48 mil homens do erro do paganismo, trazendo-os para o dogma cristão, por meio de milagres que abalaram o culto anterior. Nicéia e Aquilínia, por muito tempo praticantes do meretrício em lupanar público, foram levadas da imundície à castidade por Cristóvão, que lhes ensinou ainda a receber a coroa do martírio. Mesmo amarrado a um banco de ferro no meio de uma fogueira, ele não sofreu com o calor e, mesmo alvejado por guerreiros durante um dia inteiro, não foi atingido pelas flechas. Depois que uma delas perfurou o olho de seu torturador, o sangue do bem-aventurado mártir, misturado à terra, devolveu-lhe a luz e, além de curar a cegueira corporal, iluminou a sua mente. Foi de vós, Senhor, que ele recebeu a graça de defender contra doenças e enfermidades os que suplicarem a ele.
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