Às vezes a Providência nos conduz por caminhos inesperados. Há algum tempo, quando fui a Wuhan, na China, para realizar uma pesquisa sobre os santos mártires da região, eu tinha certeza de que quase nenhuma pessoa da minha terra natal, os EUA, tinha ouvido falar desse lugar. Também pensei que jamais viriam a saber da existência dele. Eu estava errado. Hoje, “Wuhan” faz parte do vocabulário habitual de quase todos os habitantes da terra.

Quero apresentar hoje alguns comentários sobre dois missionários católicos — ambos vicentinos, isto é, membros da congregação de sacerdotes fundada por São Vicente de Paulo (1581–1660) — que foram martirizados num distrito de Wuhan: São Francisco Regis Clet (1748–1820) e São João Gabriel Perboyre (1802–1840). Todos estamos muito apreensivos com a expansão do coronavírus pelo planeta, e a forma como esses dois mártires católicos sofreram e morreram parecerá bastante familiar àqueles que sabem como a COVID-19 aflige os contagiados. Santos Clet e Perboyre viveram com medo por causa do caos e da turbulência que os cercava; eles foram isolados e morreram estrangulados. Estão entre os poucos santos católicos que morreram por não poderem respirar.

Esses santos da China foram canonizados não apenas por causa do modo como sofreram e morreram, mas também por seu testemunho heroico de fé e caridade. A famosa religiosa carmelita Santa Teresa de Lisieux (1873–1897) ficou tão impressionada com os dois mártires de Wuhan, que guardava em seu devocionário um santinho de São Perboyre. Minhas notas estão organizadas em quatro breves seções: primeiro, darei alguns detalhes sobre a vida de São Clet e São Perboyre; segundo, descreverei o medo que experimentaram antes da morte; terceiro, falarei sobre seu isolamento; e, quarto, falarei sobre a santidade e a coragem que demonstraram durante seu sofrimento final e morte em Wuhan.

Nós, católicos, sabemos que só depois da morte é que as pessoas se tornam santas; antes disso, elas estão simplesmente a caminho. Ainda assim, como diz Nosso Senhor, a luz não pode esconder-se debaixo do alqueire (cf. Mt 5, 15), de modo que, ainda em vida, são notáveis os sinais de perfeição que acompanham os verdadeiros discípulos de Cristo.

Com Clet e Perboyre não foi diferente. 

Santa Teresinha do Menino Jesus trazia em seu devocionário este santinho de São Perboyre.

Francisco Regis Clet foi o décimo filho de uma família de quinze, e com vinte e um anos entrou para os vicentinos, admirado com o amor de São Vicente de Paulo pelos pobres e aflitos. Ele estava em Paris quando teve início a violenta perseguição aos católicos durante a Revolução Francesa (1789–1799), e quando os sacerdotes começaram a ser expulsos do país ele se prontificou a ir para a China, onde certamente enfrentaria o mesmo tipo de perseguição.

Francisco Regis Clet sabia que a vida humana vem de Deus e existe para servir a Ele. Por isso, estava determinado a sair de um lugar que parecia estar se afastando de Deus a fim de servir aos pobres num lugar onde Deus ainda não era conhecido. Antes de embarcar para a China, o despretensioso filho de São Vicente escreveu uma carta à irmã Maria Teresa: “Quis a divina Providência que eu saísse daqui para trabalhar pela salvação das almas [na China]”. Ele começou a vida como missionário na China em 1789, e três décadas depois foi amarrado a um poste de madeira em Wuhan; enrolaram-lhe uma corda no pescoço, asfixiando-o até a morte.

Como seu confrade, João Gabriel Perboyre nasceu no seio de uma família numerosa francesa. Ele e mais quatro irmãos se tornaram vicentinos pelo desejo de servir ao próximo como Jesus havia feito, e de seguir os passos de São Vicente. João Gabriel entrou para os vicentinos com apenas dezesseis anos. Ainda seminarista, tornou-se conhecido por sua devoção intensa a Jesus Sacramentado, pois passava várias horas diante do tabernáculo, ajoelhado e rezando em ação de graças após receber a Comunhão. É fácil imaginar a angústia que sentia ao ser impedido de celebrar a Santa Missa nas diversas prisões chinesas em que ficou detido.

Luís, irmão de João Gabriel, também foi vicentino e foi enviado à China antes dele. Os dois irmãos — de sangue e religião — eram muito próximos um do outro. Foi, portanto, um golpe doloroso para João Gabriel receber a notícia de que Luís falecera por causa de uma doença quando estava a caminho da China. Em seu leito de morte, o Pe. Luís Perboyre, CM († 1831), escreveu o seguinte, em carta dirigida ao irmão João Gabriel: “Morrerei antes de completar o meu objetivo. Espero que o meu irmão sacerdote possa assumir o meu lugar”. João Gabriel de fato o assumiu. Ele deixou a França cinco anos após a morte de Luís, e em 1835 deu os seus primeiros passos como missionário em território chinês. Foi breve o período que Perboyre passou na China. Apenas cinco anos depois de sua chegada, assim como Clet, ele foi atado a um poste e estrangulado.

Sófocles, o antigo tragediógrafo grego (497 a.C.), escreveu o seguinte sobre o medo: “Para aquele que sente medo, tudo ao seu redor parece crepitar”. Em épocas terríveis, uma pessoa pode facilmente sentir medo daquilo que não perceberia em períodos normais. Quando Clet e Perboyre serviram como missionários na China, o império estava mergulhado em turbulências. Quando Clet viveu na China, ocorreu uma revolta liderada por uma seita milenarista chamada “Ordem da Lótus Branca”, e as autoridades locais pensaram que os cristãos faziam parte do grupo. O resultado foi terrível tanto para os missionários como para os fiéis chineses; os cristãos eram odiados e atacados por membros da seita e pelo governo.

Túmulos onde primeiro foram enterrados os corpos dos santos mártires de Wuhan, antes de seu translado a Paris.

Francisco Regis Clet escreveu o seguinte numa carta: “Eles destroem tudo o que está em seu caminho, queimam casas e levam tudo o que podem carregar; em seguida, matam todos os que não podem escapar a tempo”. Perboyre passou por uma turbulência interna e outra externa — nem todos os santos enfrentam o medo com um sentimento de paz e resignação. Quando o panorama se tornou mais violento e aterrador, João Gabriel — de acordo com uma fonte — “experimentou uma intensa angústia na alma” e “foi atormentado por uma violenta tentação de ceder ao desespero”. Foi a reflexão sobre a descrença do apóstolo São Tomé que tirou a dúvida e o medo de Perboyre: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não sejas incrédulo, mas homem de fé” (Jo 20, 27). Mais do que o medo, porém, o que atormentou sobremaneira Clet e Perboyre, antes de eles serem finalmente executados no distrito de Wuchang, em Wuhan, foi a solidão provocada pelo isolamento.

Uma intriga anticristã ocorrida em 1818 obrigou Francisco Regis Clet a se esconder. No dia 25 de maio, o palácio imperial em Pequim foi subitamente coberto por “fortes ventos e chuvas torrenciais, enquanto o céu se avermelhava e se ouviam estrondos de trovões na cidade”. Os conselheiros do imperador sugeriram que o estranho evento fora causado pela interferência espiritual dos missionários cristãos. Assim, a polícia foi enviada para prender o Pe. Clet. Obrigado a permanecer isolado, Clet se escondeu em pequenas cavernas e lugares remotos nos bosques, vindo a encontrar refúgio no lar de uma família católica, onde se isolou por seis meses.

A localização de Clet foi finalmente revelada por um apóstata. Entregue a um tribunal local, Clet foi obrigado a ajoelhar-se sobre correntes enquanto lhe golpeavam o rosto com uma cinta de couro, por ele ter-se negado a denunciar a sua fé cristã. De acordo com uma testemunha, mais tarde, uma vez transferido para a prisão de Wuhan, “as roupas dele estavam manchadas com sangue dos cortes e feridas provocados pelos golpes […] que ele suportou em sua jornada até lá”. Condenado à morte por asfixia lenta em 17 de fevereiro de 1820, Clet foi levado ao campo de execução, onde “suportou com tranquilidade o estrangulamento (uma corda foi enrolada em seu pescoço em três etapas)”. Seus restos mortais, coletados com afeição por católicos chineses devotos, foram enviados a Paris, onde se encontram ainda hoje, na casa geral dos vicentinos.

Alguns dizem que a morte e o sofrimento de Perboyre foram ainda mais cruéis. Surgiu em 1839 um movimento anticristão que obrigou João Gabriel a viver em isolamento, e durante esse período ele foi protegido por cristãos chineses que lhe deram abrigo, mesmo pondo suas próprias vidas em risco. Em 16 de setembro de 1839, depois de celebrar a Santa Missa, um cristão local informou o Pe. Perboyre de que dois oficiais e uma grande tropa se aproximavam rapidamente da igreja. Perboyre se negou a fugir do perigo antes de consumir o Santíssimo Sacramento e reuniu os vasos sagrados para protegê-los da profanação. Ele fugiu apenas alguns momentos antes de a igreja ser sitiada e sobreviveu escondendo-se em florestas e cômodos ocultos em lares de cristãos chineses.

Finalmente, foi descoberto e capturado por patrulheiros, que o levaram aos tribunais arrastado pelo cabelo, a fim de ser interrogado. Foi torturado, forçado a se ajoelhar sobre correntes e pendurado em vigas pelos polegares, antes de ser levado para Wuhan junto com muitos outros cristãos chineses que se negaram a abandonar o seu pastor. Em sua cela, João Gabriel Perboyre foi acorrentado à parede — as correntes estavam tão apertadas, que ele perdeu parte de um dos pés e uma das mãos

Um dos cristãos que acompanharam Perboyre, batizado com o nome de Estanislau, foi torturado junto com ele. Estanislau foi levado a um monte de estrume, onde recebeu a ordem de pisar num crucifixo e a negar a sua fé cristã — e foi condenado à morte por ter-se recusado a obedecer. O Pe. Perboyre escutou a última confissão de Estanislau antes que ele rastejasse até a sua execução, pois os seus membros inferiores foram tão surrados, que ele não conseguia caminhar de pé. O que Perboyre sofreu foi tão cruel quanto o que haviam sofrido seus amigos próximos. Forçado a se ajoelhar sobre vidro estilhaçado, o sacerdote teve o rosto marcado com a acusação: “Professor de falsa religião”. Ele foi obrigado a vestir os seus paramentos enquanto desfilava e era humilhado.   

Por fim, em 11 de setembro de 1840, João Gabriel Perboyre, carregando uma placa que anunciava sua sentença, foi levado da sua cela até o local da execução. É difícil ler o registro dos vicentinos sobre esses momentos finais, mas contarei aqui a parte que descreve a forma como ele foi executado em Wuchang, distrito de Wuhan:

Em seguida, o carrasco pôs-lhe uma corda em volta do pescoço e inseriu um pedaço de bambu no laço. Com um forte giro, apertou a corda em torno do pescoço do condenado; logo depois, afrouxou a corda para dar ao pobre sofredor um momento de fôlego. Então, apertou a corda uma segunda vez e a soltou de novo. Somente na terceira vez ele deixou a corda apertada até a morte da vítima.

Por coincidência, consta nos registros oficiais da execução que Perboyre morreu na tarde de uma sexta-feira às 15h, dia e horário em que, segundo a tradição, Cristo deu seu último suspiro na cruz. Para conseguir a corda e as roupas de Perboyre depois do estrangulamento, os cristãos da região subornaram as autoridades. O corpo dele foi cuidadosamente enterrado ao lado do túmulo de Francisco Regis num lugar chamado Montanha Hong, próximo a Wuhan. Guardo alguns fragmentos das roupas de Clet e Perboyre em meu escritório, perto de minha mesa de trabalho. Uma das coisas que mais comoveram as testemunhas dos interrogatórios de Perboyre foi o fato de ele simplesmente ter beijado o crucifixo (como se estivesse recebendo os últimos sacramentos da Igreja), após o magistrado ter ordenado que o santo o pisasse

Gosto muito da forma como G. K. Chesterton (1874-1936) descreve a coragem cristã. Escreve ele: “A coragem é praticamente uma contradição em termos. É um forte desejo de viver que assume a forma de uma disposição para morrer”. Clet e Perboyre tinham a esperança de viver para dar continuidade ao seu serviço à Igreja na China, mas estavam preparados para a morte, caso a Providência os chamasse.

Concluirei com alguns comentários sobre o que aconteceu com a comunidade católica nas últimas décadas, relacionando isso aos exemplos históricos de São Clet e São Perboyre. Quando viajei para Wuhan, tinha dois objetivos principais: descobrir como os cristãos daquela região ainda enxergam os mártires vicentinos e encontrar o exato local em que foram executados por estrangulamento. Naturalmente, os vicentinos foram muito úteis. Deram-me acesso privilegiado aos seus arquivos e financiaram minha viagem à China.

Retrato do martírio de São João Gabriel Perboyre.

Descobri algo surpreendente: os católicos da região ainda recordam e celebram o exemplo de Clet e Perboyre. Na verdade, seminaristas que agora se preparam para o sacerdócio no seminário de Wuhan cuidam com muito carinho das duas lápides que outrora adornavam os túmulos de Clet e Perboyre; os monumentos de pedra costumam ser enfeitados com flores frescas e se veem seminaristas pedindo diante deles a intercessão dos santos. As lápides foram transferidas para a casa de um católico da região, onde ficaram escondidas durante os anos nefastos da Revolução Cultural (1966–1976). O bispo de Wuhan, Bernardino Dong Guangqing, OFM (1917–2007), fez uma pesquisa sobre as lápides depois do fim da Revolução Cultural e as levou de volta ao seminário Huayuanshan. Com a ajuda do reitor da catedral de Wuhan, eu também pude encontrar a localização exata dos martírios dos dois vicentinos, que ocorrem em 1820 e 1840.

Nos últimos meses, o seminário, as igrejas e os locais sagrados de Wuhan se tornaram lugares de oração fervorosa, pois muitos membros da comunidade cristã sofreram e morreram por causa da COVID-19. Muitos provaram do mesmo sofrimento que afligiu São Clet e São Perboyre, pois também tiveram dificuldades para respirar. A garantia de que os santos mártires de Wuhan esperam por eles no céu tem servido de consolo para os católicos chineses da região. Talvez alguns dos falecidos estejam agora respirando livremente com eles na luz da visão beatífica, onde não se conhece mais doença.

Tudo o que disse aqui sobre São Clet e São Perboyre pode parecer-se com o que os acadêmicos qualificam de “hagiografia piedosa”, mas apenas transmiti relatos que se podem encontrar nos arquivos da Igreja e em documentos oficiais imperiais, disponíveis nos arquivos do Estado. A palavra mártir significa “testemunha”, e sem dúvida eles deram testemunho não apenas da convicção de sua fé e amor a Deus, mas também do que podem ser o sofrimento e a dor para os cristãos quando compreendem o que está à espera dos que sofrem e morrem unidos a Deus. Clet e Perboyre foram mártires, e não pode haver martírio sem sofrimento ou morte. Tomás de Kempis (1380–1471), o famoso autor da Imitação de Cristo, disse: “Aquele que sabe sofrer terá mais tarde muita paz; essa pessoa é […] amiga de Cristo e herdeira do céu”.

Terminarei com as palavras de São Perboyre que estavam escritas no já mencionado santinho que Santa Teresinha guardava com a imagem dele; elas apresentam o conselho de Perboyre sobre como cada um de nós deveria enfrentar o sofrimento e a morte: “Puisque Dieu a voulu mourir pour nous, nous ne devons pas craindre de mourir pour LuiAssim como Deus quis morrer por nós, jamais deveríamos ter medo de morrer por Ele”.

São Francisco Regis Clet e São João Gabriel Perboyre, rogai por nós!

Notas

  • Esse relato dos santos mártires católicos que morreram no distrito de Wuchang, em Wuhan (China), foi apresentado no dia 19 de abril de 2020, Domingo da Divina Misericórdia, após Missa celebrada por D. Thomas Daly na catedral de Nossa Senhora de Lourdes, em Spokane (EUA). As fontes usadas para a conferência vêm, em grande parte, de materiais consultados pelo autor para a publicação de seu livro China’s Saints: Catholic Martyrdom during the Qing [1644-1911] (sem tradução no Brasil), dentre os quais os mais valiosos são os que se encontram hoje no arquivo principal da Congregação da Missão, em Paris. Na ocasião, o autor foi gentilmente auxiliado pelo Pe. Claude Lautissier, CM, arquivista da casa geral dos vicentinos. A matéria original, em inglês, foi levemente adaptada para esta publicação em português.

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