Quando a atriz Maria Schneider saiu de casa para o estúdio, a fim de gravar uma cena do filme Último tango em Paris, de 1972, tudo indicava que seria só mais um dia comum... Mas não foi. Por trás das câmeras, o diretor Bernardo Bertolucci e o ator Marlon Brando haviam tramado algo terrível. Maria Schneider não faria apenas uma simulação de estupro, como previsto no roteiro, mas sofreria o crime propriamente dito. Insanidade, sem dúvida; mas, no vale tudo da arte, qualquer coisa seria possível. “Queria sua reação como menina, não como atriz”, alegou Bertolucci numa entrevista.
A atriz tinha apenas 19 anos na época, e nem por isso escapou da “experiência” de Brando, então com 48. Depois do episódio, ela nunca mais se recuperaria da violência, caindo nas drogas e inclusive tentando o suicídio. Veria ainda sua carreira declinar, enquanto Brando e Bertolucci ostentavam prêmios da Academia de cinema.
Maria Schneider morreu vítima de um câncer em 2011. História trágica, é verdade, mas tristemente compartilhada por tantas outras atrizes que, para sobreviverem em Hollywood, tiveram de ceder a humilhações parecidas. Recentemente, o ator Silvester Stallone confessou que embebedou a atriz Sharon Stone, sua companheira de set em O Especialista, de 1994, a fim de fazê-la gravar uma cena de sexo [1]. Denúncias graves também surgiram contra o diretor Harvey Weinstein, que acabou condenado a 23 anos de prisão por assédio e estupro.
Tudo uma grande vergonha para a indústria cinematográfica, cujo histórico de atrocidades não é de hoje e faria inveja a qualquer filme de terror. É sabido, por exemplo, que atrizes como Bette Davis e Joan Crawford, estrelas da década 1940, foram obrigadas a abortar para poderem cumprir seus contratos. Afinal de contas, “para conseguir algo é preciso ser completamente livre”, outra declaração insana de Bertolucci, que, todavia, define bem a mentalidade hollywoodiana. Ainda mais se milhões em bilheteria estiverem em jogo.
A bem da verdade, nada disso seria possível — ao menos não em grande escala — se não houvesse uma plateia embrutecida pelos vícios para aplaudir. Com a velha política do “pão e circo”, os cineastas não têm dúvida do que fazer para conquistar mentes desocupadas pela ignorância e gerar montanhas de dólares. Apesar de grotescos, filmes como Último tango em Paris foram aclamados pela crítica e ainda mais celebrados pelos espectadores. E a coisa só piorou de 1972 para cá, com indecências do tipo Cinquenta tons de cinza e Ninfomaníaca, verdadeiras lástimas, que nem todos os prêmios “Framboesas de Ouro” no mundo seriam capazes de expressar.
Na encíclica Vigilanti Cura, à qual voltaremos adiante, o Papa Pio XI fazia notar como a arte poderia ser rebaixada ao vil se levasse em conta apenas o interesse econômico; porque “enquanto a produção de figuras realmente artísticas, de cenas humanas e ao mesmo tempo virtuosas exige um esforço intelectual, trabalho, habilidade e também uma despesa grande” (n. 14), a baixaria não requer nada disso. Ao contrário, dizia o então Sumo Pontífice, “é relativamente fácil provocar certa categoria de pessoas e de classes sociais com representações que excitam as paixões e despertam os instintos inferiores, latentes no coração humano” (n. 14). E a história do cinema só mostra como o Papa estava certo.
A “época de ouro” e a Igreja Católica
As décadas de 1930 a 1960 são conhecidas como a “época de ouro” de Hollywood. Isso porque, nesse período, foram lançados grandes clássicos do cinema, que arrebataram o público não pela vulgaridade e o cinismo, mas pela beleza de uma arte realmente virtuosa, de alto nível e digna de todos os prêmios. É desse período filmes como Ben-Hur, O homem que não vendeu a sua alma, A canção de Bernadette e Os sinos de Santa Maria, todos vencedores do Oscar em uma ou mais categorias [2]. O que poucos sabem, porém, é que essa “época de ouro” esteve intimamente associada à Igreja Católica, que empreendeu uma “cruzada” para manter a sétima arte dentro dos trilhos da decência e da honestidade.
Nos primeiros anos da década de 1920, os filmes norte-americanos começaram a preocupar uma parcela da população por conta do excesso de bandidos, monstros e sensualidade em cena. Para enfrentar o problema, o sr. Martin Quigley, um leigo católico, e o padre jesuíta Daniel Lord se juntaram a outras lideranças de protestantes e judeus, com quem publicaram, em 1929, o Motion Picture Production Code, que proibia cenas de nudez, blasfêmias, danças indecentes, entre outras coisas, nos filmes. O código também previa a promoção de valores religiosos, o triunfo do bem sobre o mal e a punição para comportamentos imorais etc [3].
Os estúdios convenientemente aceitaram o código, a fim de fugirem da censura do governo, uma vez que o cinema não era protegido pela Primeira Emenda da Constituição Americana. Desse modo, as produções passaram a cultivar mais as virtudes e dar menos espaço a imoralidades... Até que veio a Grande Depressão, provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque.
O cinema também foi afetado pela crise, vendo seus rendimentos cair vertiginosamente. Qual foi a solução dos estúdios? Isso mesmo, as produções voltaram a apelar para o grotesco, a violência e a perversão, com conteúdos cada vez mais ousados. Entre os gêneros mais polêmicos, chamavam a atenção os filmes policiais, sobretudo pela glamourização de bandidos que aludiam à figura de Al Capone, o mais famoso gângster da história dos Estados Unidos.
Era, sem dúvida, um meio eficaz e rápido de gerar lucro. Mas o lucro está para a imoralidade como o fogo está para o combustível. Portanto, a resposta da Igreja Católica não tardaria. Em 1933, alguns bispos americanos se reuniram e, com a ajuda de vários leigos, fundaram a Legião da Decência [4].
A princípio, a iniciativa foi vista com incredulidade, como podemos ler neste editorial da revista Time, de 1934: “Suas conferências anuais aprovaram resoluções. Seus clérigos defenderam leis de censura. Seus jornais protestaram. Mas nem com todo esse zelo a Igreja conseguiu fazer muita coisa”. O que parecia estar fadado ao fracasso, todavia, logo se converteu no instrumento mais poderoso de regulação do cinema.
A preocupação maior de Hollywood era com a ameaça de boicote. Todos os anos, no dia 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, 20 milhões de católicos faziam um juramento durante a Missa de não assistirem aos filmes condenados pela Legião:
Eu condeno todos os filmes imorais e indecentes, como aqueles que glorificam o crime ou criminosos. Eu prometo fazer tudo que puder para fortalecer a opinião pública contra a produção de filmes imorais e indecentes e unir-me a todos aqueles que protestam por isso também. Eu reconheço minha obrigação de formar uma consciência reta acerca de filmes que são perigosos para a minha vida moral. E juro por mim mesmo manter-me longe deles (grifos nossos).
Os estúdios instituíram a Production Code Administration (PCA), pondo o jornalista católico Joseph Breen como seu diretor. E a dinâmica passou a ser mais ou menos esta: Breen recebia o roteiro dos filmes e, com base nas indicações da Legião da Decência, fazia os cortes e as sugestões. Havia uma classificação dos filmes segundo o código A, B e C. Uma produção recebia A, quando era livre de objeções, ou B, para filmes com objeções. C, obviamente, era dado a produções condenáveis. A Legião ainda publicava mensalmente uma revista com a classificação dos filmes. Era um trabalho de gigante.
Tal pressão submeteu Hollywood à moral católica, de modo que todos os filmes, de 1934 a 1954, não saíam sem o selo da PCA. Os estúdios sabiam que não tinham a menor chance de emplacar de outro modo. Se é verdade que o resultado nem sempre foi o esperado, e que muitas das decisões de Joseph Breen podem ser questionadas, o fato é que a produção cinematográfica daqueles anos despontou pela qualidade e a valorização das virtudes, como reconhece o especialista em cinema Thomas Doherty, da Universidade Brandeis, em Massachusetts.
Contrariando os que haviam predito “que o valor artístico do cinema sofreria pelas exigências da ‘Legião da Decência’”, o que se deu, na verdade, foi justamente o oposto: “Esta Legião deu forte impulso aos esforços feitos para elevar cada vez mais o cinema à grande nobreza de nível artístico, impelindo-o à produção de obras clássicas e a criações originais de valor pouco comum”, frisou Pio XI na encíclica Vigilanti Cura (n. 12). O Papa ficou tão satisfeito com o trabalho que incentivou os bispos do mundo todo a adotarem o mesmo modelo da Legião.
Seja como for, a Igreja não pretendia cercear a criatividade artística, mas justamente preveni-la contra a autodestruição. Para mentes dominadas pelo liberalismo, isso parece estranho, porque, em nosso tempo, a liberdade foi alçada a valor absoluto. Mas qualquer pessoa minimamente responsável consegue perceber o perigo de uma liberdade doentia. Se ela não é regulada, se ela não obedece às leis da natureza, essa liberdade se converte numa máquina de destruição, como um carro desgovernado no trânsito. As pessoas podem andar livremente nas ruas porque existem leis. Do contrário, estariam todas ameaçadas.
A liberdade humana também pode se deteriorar por um exercício vicioso. Em razão disso, Pio XI advertia na mesma encíclica contra a possibilidade de que o cinema “injuriasse e desacreditasse a moral cristã, ou simplesmente a moral humana e natural, a regra suprema que deve reger e regulamentar o grande dom da arte” (n. 4). Foi em afastar essa possibilidade do horizonte do cinema que a Legião da Decência se aplicou.
Da decadência aos dias de hoje
Na década de 1960, porém, as coisas saíram do trilho novamente. Em primeiro lugar, a Suprema Corte americana já havia julgado, em 1948, o processo U.S. vs. Paramount Picture, que pôs fim ao monopólio dos estúdios sobre as salas de cinema. Depois, em 1959, a mesma Corte decidiu que o filme francês Os Amantes poderia ser exibido sem cortes, de modo que as cenas de nudez passaram a ser mais frequentes. Os Estados Unidos logo se viram invadidos por produções independentes e estrangeiras, que abusavam da sensualidade e da violência, por não estarem submetidas à PCA. Consequentemente, Hollywood começou a ceder às pressões econômicas e ao apelo dos tempos pós-guerra.
Em 1963, o The New York Times publicava a seguinte notícia: “A Legião da Decência pediu ontem a Hollywood para produzir mais filmes dedicados à família”. Dos 270 filmes revisados naquele ano, apenas 51 haviam recebido a classificação A, um resultado bastante alarmante. De fato, a última grande batalha da Legião da Decência deu-se contra o filme Boneca de carne, de 1956, que acabou banido de várias salas, depois dos protestos da Igreja. Depois disso, a própria hierarquia passou a arrefecer o tom, crendo que os católicos deveriam, de agora em diante, preferir o remédio da misericórdia ao da severidade [5].
Com o lançamento de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, de 1966, Hollywood definitivamente abandonou a “época de ouro” para mergulhar de cabeça nos novos tempos. Recheado de palavrões e vulgaridades, o filme fazia um ataque aos épicos das décadas de 1940 a 1950. A produção também marcou a decadência da Legião, que já havia adotado um novo sistema de classificação e, inclusive, outro nome [6]. Para sugerir uma abordagem mais positiva, o grupo passou a avaliar também a atuação dos atores e outros quesitos artísticos, além da questão moral. Era o início do fim.
Atualmente, o cinema vive um marasmo de ideias desconcertante. As grandes produções se resumem a filmes de super-heróis, com roteiros previsíveis e atuações tão convincentes quanto um poste. Mais grave ainda: Hollywood chafurda na lama dos escândalos, com casos de assédios, subornos, traições e até estupros. E, infelizmente, a coisa deve se manter assim, enquanto não surgir um movimento verdadeiro de purificação do cinema, como foi a iniciativa da Legião da Decência. As atrizes que nos desculpem, mas, para enfrentar o problema, não basta fazer discurso político no Oscar e campanhas nas redes sociais, enquanto elas mesmas e (os demais) estiverem envenenados pela ilusão do sucesso e do dinheiro.
Toda essa ruína tem sua causa em algo muito mais profundo: a concupiscência. O pecado sempre é “agradável aos olhos” e “desejável por dar entendimento” (Gn 3, 6). O rei Davi caiu em desgraça justamente depois de ter visto e desejado o corpo de Betsabé. Do mesmo modo, quantos já não caíram em desgraça depois de terem assistido a algum filme imoral, seduzidos pelo prazer do som e, sobretudo, da imagem. Era o que ajuizava Pio XI já naquela época:
As variadíssimas cenas no cinema são representadas por homens e mulheres escolhidos sob o critério da arte e de um conjunto de qualidades naturais, e que se exibem num aparato tão deslumbrante a se tornarem às vezes uma causa de sedução, principalmente para a mocidade. O cinema ainda tem a seu serviço a música, as salas luxuosas, o realismo vigoroso, todas as formas do capricho na extravagância. E por isso seu encanto se exerce com um atrativo particular sobre as crianças e os adolescentes. Justamente na idade, na qual o senso moral está em formação, quando se desenvolvem as noções e os sentimentos de justiça e de retidão, dos deveres e das obrigações, do ideal da vida, é que o cinema toma uma posição preponderante. E, infelizmente, no atual estado de coisas, é geralmente para o mal que o cinema exerce sua influência (grifos nossos; Id., n. 25-26).
Na “época de ouro” do cinema, o que mantinha os católicos longe de qualquer filme indecente era o risco dum “pecado mortal”. A Legião da Decência sempre deixou claro esse risco e, com essa pedagogia, impediu que muitas cenas como a de Maria Schneider e Marlon Brando fossem rodadas. Não seria saudosismo extemporâneo desejar que iniciativas como esta, que tão bons frutos deram no passado, ressurgissem para o bem não só do cinema, mas sobretudo das almas. Como público católico, temos o direito e o dever de expressar o nosso ponto de vista e reclamar, tanto de produtores quanto das autoridades públicas, aquele respeito mínimo à pessoa humana, à família e à integridade física e moral de todo ser humano, que todas as formas sadias de entretenimento deveriam transmitir [7].
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