Falecida em 2022, Alice von Hildebrand, Ph.D., foi uma famosa palestrante e autora de muitos livros sobre diversos temas relacionados à fé católica. Era viúva do famoso filósofo católico Dietrich von Hildebrand, chamado pelo Papa Pio XII “doutor da Igreja do século XX”.

Nascida na Bélgica em 1923 (daí seu sotaque francês), a Dra. Alice fez doutorado na Fordham University e foi professora de filosofia na Hunter College durante 35 anos. 

Tivemos uma conversa na qual ela falou sobre dois tópicos comuns em seus estudos — a perda do senso do sobrenatural e o feminismo. 

O que a senhora quer dizer quando lamenta a “perda do senso do sobrenatural”?

Santo Agostinho destacou com beleza e profundidade a diferença entre o natural e o sobrenatural. Quando Deus criou o homem, deu-lhe uma natureza humana. Ele tinha todas as características da condição de criatura, totalmente subordinada a Deus.

Alice von Hildebrand.

Mas, em seu amor e bondade infinitos, Deus deu ao homem um dom adicional: a sobrenaturalidade, a participação na natureza divina. Quando somos fiéis à graça de Deus, de algum modo nos tornamos semelhantes a Ele. Trata-se de um dom que a natureza humana jamais pode alcançar por si, e pressupõe uma colaboração plena entre o dom de Deus e a liberdade humana.

Porém, esse dom exige muito de nós. No Antigo Testamento, os judeus tiveram uma posição singular no mundo como povo eleito por Deus. Mas eles se rebelaram constantemente contra esse dom. Seu chamado especial exigia-lhes certas obrigações das quais não gostavam e que não eram exigidas dos pagãos.

O mesmo se aplica aos católicos. Estou plenamente convicta, pela graça de Deus, de que somente a Igreja Católica possui a plenitude da Revelação divina… Mas muitos católicos parecem lamentar isso! Os católicos devem não apenas obedecer à lei natural, mas também à Revelação divina e à doutrina da Igreja. Isso põe um fardo sobre seus ombros, e muitos não gostam disso. 

Pensemos, por exemplo, no âmbito sexual. Os pagãos vivem do jeito que bem entendem. Os católicos aprendem certas coisas sobre a relação entre homem e mulher, o mistério do sexo, obrigações a respeito do não uso da contracepção artificial, a proibição do aborto etc., e se ressentem delas!

[Ao longo dos anos, tentei] mostrar que o homem moderno tem perdido cada vez mais o senso da grandeza e singularidade do sobrenatural. Para receber a pérola preciosa da qual Cristo fala, deveríamos estar dispostos a vender tudo. Mas, na prática, muitas vezes estamos dispostos a vender a pérola preciosa por um prato de lentilhas

É um risco para nós. Eu mesma percebo que, tão logo a dimensão sobrenatural começa a exigir coisas das quais não gosto, “minha esperteza profana” busca meios de escapar.

Imagine que eu aja de forma claramente indelicada. Em seguida, tenho uma sensação ruim, mas começo a racionalizar, dizendo: “Afinal de contas, a outra pessoa foi muito rude comigo; naturalmente, não fui muito gentil, mas fulano teria sido muito mais indelicado do que eu”. Finalmente, minha consciência não me incomoda mais.

Tudo se resume a anestesiar a própria consciência, que acaba cedendo. A maioria de nós tem uma consciência mal orientada. É verdade que temos de segui-la; mas, ao mesmo tempo, temos a obrigação moral de formar nossa consciência de acordo com a doutrina da Igreja. Uma consciência é algo tão maleável e flexível, que, se soubermos como lidar com ela, sempre poderemos manipulá-la para servir a algum objetivo nosso.

Portanto, temos de rezar diariamente para pedir aquilo que meu marido chama “pureza de coração”. Isso quer dizer que o nosso amor pela verdade deve ser tal, que prefiramos sofrer ou fazer um sacrifício a nos equivocarmos e rejeitarmos a verdade que vem de Deus.

Dietrich e Alice von Hildebrand, na década de 1960.

Há um duelo entre Satanás e o homem. Ele está ganhando, porque é inteligente, e nós, estúpidos. Sem dúvida alguma, o homem tem inteligência. Porém, ela é limitada e não é utilizada. 

Relacione essa “perda do senso do sobrenatural” à sua crítica ao feminismo radical.

Sim. Tenho combatido por muitos anos as ideias fundamentais do feminismo, o qual, creio, está intimamente ligado à questão da perda do senso do sobrenatural.

Comparemos homens e mulheres de um ponto de vista exclusivamente secular. Quem são os líderes? Quem tem autoridade? Quem está liderando a Igreja? Quem são os grandes teólogos, filósofos, escultores, pintores, músicos, escritores etc.? Homens, homens, homens.

Vejamos um livro de história. Quem moldou nosso mundo do ponto de vista político e histórico? Os homens! Em outras palavras, os homens estão sempre na vanguarda e as mulheres nos bastidores.

Voltemo-nos para algo mais específico: a dimensão sexual. Um homem não precisa ser um herói para reproduzir. Não é necessário nenhum esforço ou sacrifício — apenas um breve momento de êxtase e ponto final!

Comparemos isso com a situação de uma mulher. Ela engravida. Primeiro, sentirá enjoo durante várias semanas, uma sensação muito desagradável. Em seguida, seu corpo é “invadido” por uma nova, misteriosa e pequena criatura. A mulher engorda cada vez mais. Do ponto de vista da vaidade, não é algo muito atraente… 

Depois, chegam as dores excruciantes do parto — nesse momento, o marido pode estar em outro lugar tomando café e tendo um momento prazeroso, enquanto ela está na sala de parto sentindo uma dor torturante.

Além disso, lembremos que a mulher tem um desejo instintivo de cobrir seu corpo. Para dar à luz, ela precisa expor a parte mais íntima de seu corpo a médicos, enfermeiras e pessoas que são totalmente indiferentes ao seu drama.

Portanto, onde está a justiça? Parece algo tão injusto que, tão logo deixamos de lado a perspectiva sobrenatural, surgem a revolta e a rebelião — os homens são os mestres, os chefes, os abusadores… Assim nasce o feminismo.

Símbolo do movimento feminista.

Mas, antes de criticar o feminismo, tenho de reconhecer que alguns homens abusam de mulheres. Fui muito agraciada em minha vida — conheci tantos homens por quem tenho o mais profundo respeito, admiração e gratidão, que não passei por essa experiência. Mas sei de inúmeros casos de mulheres que foram maltratadas por homens que abusaram da própria autoridade… 

Não há como questionar a existência do estupro, do abuso físico, da autoridade abusiva ou do tratamento de mulheres como pessoas inferiores... 

Se eu conhecesse uma feminista radical hoje, tentaria descobrir quais foram as experiências trágicas pelas quais ela passou e que não foram superadas de forma adequada. Esse tipo de ferida só poderá ser assimilado corretamente se ela receber uma graça tão abundante, a ponto de fazer dela uma nova pessoa.

Isso é verdade em relação a todas as feministas radicais, como Donna Steichen explicou no livro Ungodly Rage [“Ira Impiedosa”, sem tradução portuguesa]. Elas oferecem uma resposta má e catastrófica a alguns fatos tristes… 

Deveríamos rezar e ter compaixão dessas mulheres. Perderam completamente o senso do sobrenatural.

Mas comparemos agora homens e mulheres do ponto de vista sobrenatural. Graças ao cristianismo, a posição das mulheres tornou-se tão privilegiada, que às vezes sentimos pena dos homens! Parecem ocupar tanto os bastidores, que dizemos: “Obrigada, Deus! Sois infinitamente justo e, portanto, destes aos homens o sacerdócio”. Precisa sobrar alguma coisa para eles, afinal de contas!

E não é piada. Olhemos para a Bíblia. No Gênesis, há uma linha ascendente que parte da matéria inanimada, passa pelas plantas, animais inferiores, animais superiores, homem e chega à mulher. Portanto, afirmar que ela foi criada por último não indica, como as feministas radicais afirmam muitas vezes, que a Bíblia ensina que a mulher é inferior ou uma ideia tardia. Na verdade, podemos interpretar isso como um indicativo de que ela ocupa uma posição especial no cosmos.

O corpo de Adão foi moldado do pó da terra. De fato, é algo bem modesto. Eva foi tomada da costela de Adão. Ora, ele era uma pessoa feita à imagem e semelhança de Deus. Portanto, desde o início foi dada à mulher uma dignidade especial.

Pode-se retrucar que a mulher recebeu como castigo a dor torturante sofrida no trabalho de parto. [Mas], de um ponto de vista sobrenatural — e aludo aqui a Santa Teresinha do Menino Jesus —, a mulher é convidada a participar do sofrimento como expressão de amor e meio de redenção. Como Cristo nos salvou? Aceitando a humilhação e o sofrimento. As mulheres são chamadas a participar disso de um modo singular. É uma dignidade especial. 

Pensemos na Anunciação. Estavam lá o anjo e Maria. São José está nos bastidores e nem sequer é mencionado! E só mais tarde descobre que ela está grávida.

Oitava estação da Via Sacra: Jesus consola as mulheres de Jerusalém. Pintura de Vicente Masip.

Pensemos na Crucificação. Cristo teve doze Apóstolos. Um deles o traiu. Outro, que lhe disse: “Morrerei contigo”, negou-o três vezes por estar com medo de uma criada. Todos eles fugiram. Apenas um voltou e permaneceu ao pé da Cruz. Quem seguiu Cristo até o Calvário? As mulheres! 

Fazemos a Via Sacra. Na quarta estação, encontramos Maria; na quinta, Simão de Cirene é forçado a carregar a cruz. Ele não se ofereceu para fazê-lo… 

Verônica põe um véu no rosto de Cristo. As mulheres de Jerusalém choram por Ele. Mulheres, mulheres, mulheres, mulheres. Só na última estação descobrimos que São João retornou.

Cristo ressuscitou dos mortos. A quem ele aparece? A Maria Madalena. Ela é a apóstola dos Apóstolos, porque coube a ela informar que Cristo ressuscitara gloriosamente e vencera a morte. E os Apóstolos respondem: “Conversa de mulher”. Mas ela estava certa!

Pensemos no Apocalipse. Há o duelo entre a serpente e a Mulher. É uma mulher que esmaga a cabeça da serpente. Em termos sobrenaturais, é surpreendente como as mulheres estão em primeiro plano.

O demônio é esperto, e nós, estúpidos. Ele sabe muito bem que, se conseguir destruir a feminilidade, conseguirá destruir a Igreja, o matrimônio e a família. Está tudo nas mãos de uma mulher!

Quando Maria disse “sim” ao anjo, tornou-se Corredentora, aquela que salva com Jesus. Se a resposta tivesse sido negativa, não sabemos o que poderia ter acontecido. Quando perdemos isso de vista, a situação das mulheres parece triste e séria.

A única forma de superar o feminismo é recuperando o senso do sobrenatural, que faz da feminilidade um privilégio e um sinal de grandeza. 

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