Um dos muitos benefícios de estudar história da Igreja é que, em tempos difíceis, isto pode nos proporcionar modelos inspiradores e motivos para manter viva a esperança.

Antes de Leão XIII (Gioacchino Vincenzo Raffaele Luigi Pecci, 1810-1903, que reinou de 1878 a 1903), a Igreja Católica no séc. XIX estava sitiada e na defensiva. Ela era marginalizada e desprezada de muitas maneiras; os liberais “ilustrados” que estavam à frente da Europa (tal como hoje) menosprezavam-lhe as palavras e atitudes “medievais” e previam-lhe o desaparecimento como coisa mais do que certa. Ao líder supremo da Igreja, aparentemente, não cabia outra coisa a fazer senão protestar e lançar anátemas contra um mundo que já não lhe dava ouvidos. Os laicistas de então não podiam sequer imaginar que a Igreja conseguiria responder corajosamente aos desafios da época, conquistando um grande prestígio moral onde ela havia perdido territórios e apoio político.

E no entanto foi justamente isso que aconteceu, graças ao surpreendente pontificado de Leão XIII, que durou 25 anos e meio, um dos mais longos da história, perdendo apenas para o pontificado de Pio IX (que durou 31 anos e meio) e de João Paulo II (que durou 26 anos e meio).

As principais intervenções de Leão XIII em matéria política e econômica deram origem a um corpo completo, consistente e muito bem articulado de doutrina social, unindo, em uma ética social consistente, o que dizem as Escrituras, os Padres e Doutores da Igreja, além das intervenções anteriores do Magistério. Se levarmos em conta que Leão XIII escreveu quase 100 encíclicas, endereçadas a diferentes públicos e abordando uma variedade enorme de assuntos, pode ser um pouco intimidador recomendar um número, modesto que seja, de “leituras obrigatórias”. Mas, felizmente, não se trata de uma tarefa nada difícil, porque ninguém menos do que o próprio Leão XIII declarou, no fim do seu pontificado, em sua carta retrospectiva Annum Ingressi Sumus, de 1902, quais de suas tantas encíclicas sociais eram para ele as mais importantes.

São cinco as encíclicas que, tomadas em conjunto, compõem como que um “minicurso” sobre os fundamentos da Doutrina Social Católica: 

  1. Diuturnum Illud, de 1881, sobre a origem da autoridade civil; 
  2. Immortale Dei, de 1885, sobre a constituição cristã dos Estados;
  3. Libertas Praestantissimum, de 1888, sobre a verdadeira e a falsa noção de liberdade;
  4. Sapientiae Christianae, de 1890, sobre os deveres dos cidadãos cristãos para com os seus Estados; e 
  5. Rerum Novarum, de 1891, sobre o trabalho e o capital, isto é, os direitos e deveres de empresários e trabalhadores.

1) Em Diuturnum Illud, Leão XIII demonstra por que Deus é e deve ser a fonte de toda sociedade política, assim como de todas as formas de autoridade que os governantes exercem. De fato, os homens que são eleitos para o governo não são a fonte de seus próprios poderes, nem estão sujeitos ao povo do mesmo modo como o estão a Deus, que os irá julgar a todos mais severamente, por causa do peso da responsabilidade que assumiram. Corrigindo incontáveis erros de origem iluminista sobre a origem e a finalidade do poder político, típicos dos ocidentais modernos, esta encíclica apresenta também uma excelente explicação sobre o que se costuma chamar “desobediência civil”, mas que, em verdade, nada mais é do que uma obediência firme às leis supremas de Deus.

2) Em Immortale Dei, Leão XIII esmiúça em detalhes como seria a constituição cristã ideal para um Estado e explica por que é impossível sustentar que um Estado não tem obrigação alguma para com Deus e a Igreja nem o dever de formar seus cidadãos na virtude moral. Como já fizera antes, Leão XIII argumenta contra “os princípios e fundamentos de uma nova concepção de lei”. O que ele tem em mente é a teoria do “contrato social”, que, em aberta contradição com a lei tanto divina como natural, compromete a estabilidade do Estado, que depende em grande medida da profissão eficaz da religião, quer dizer, do cumprimento dos deveres primários de cada cidadão para com Deus. Esta encíclica contém ainda uma das melhores explicações já feitas sobre as semelhanças e diferenças entre a sociedade civil e a sociedade constituída pela Igreja Católica: ela ilustra com clareza excepcional quais são as esferas de autoridade próprias de cada uma e como elas podem, ocasionalmente, sobrepor-se ou entrar em conflito.

3) Intimamente relacionada com tudo isso, temos a encíclica Libertas Praestantissimum, que é até hoje a análise mais compreensiva e aguda sobre o sentido da liberdade humana que já nos foi presenteada pela cátedra de Pedro. Isso explica por que ela é um dos documentos citados com mais frequência pelos sucessores de Leão XIII. Esta encíclica fala sobre a dependência da vontade humana da lei, da verdade e da graça; sobre a escravidão a que conduz a liberdade, quando usada de forma abusiva; sobre a interconexão entre as leis eterna, natural e humana; sobre a corrupção universal a que nos leva o liberalismo político, entendendo por esse nome a doutrina de filósofos do séc. XVIII como John Locke; sobre o evidente absurdo que é a separação entre Igreja e Estado [1]; e sobre os casos em que pode ser permitido tolerar falsas religiões, a fim de evitar assim maiores males.

4) Dando um passo a mais, Leão XIII publicou a encíclica Sapientiae Christianae, acerca dos direitos e responsabilidade dos cristãos como membros das sociedades modernas. Como era de se esperar, o Papa fala com sabedoria e prudência sobre o mar de dúvidas que tem o cidadão católico: o que é o verdadeiro patriotismo ou piedade nacional, e como ele se relaciona com a devoção à Igreja? Qual é a missão dos leigos e da família católica no mundo, quais são as regras que hão-de guiar as escolhas políticas de um católico e que tipo de comportamento em âmbito público pode ser considerado uma ofensa a Deus? Como a Providência divina quer que a Igreja e o Estado trabalhem juntos para que os cidadãos possam alcançar sua perfeição natural e sobrenatural? Além disso, Leão XIII aborda uma série de outras questões como, por exemplo, a atitude que deve ter um leigo diante dos erros de um Bispo e por que os cristãos que fracassam em viver a fé são culpados de um pecado mais grave que o dos judeus que rejeitaram o Messias.

O Papa também fala, com uma clareza muito maior que a dos líderes dos movimentos dos direitos civis que surgiram anos depois, sobre os porquês de seguir a própria consciência contra os ditames imorais de um governo.

5) Rerum Novarum, por fim, é a encíclica mais conhecida de Leão XIII. Infelizmente, muitos caíram na tentação de buscar nela um sumário completo da Doutrina Social Católica, algo que ela obviamente não contém nem pretende oferecer. O Papa fez questão de salientar, no próprio documento, que ele já havia escrito outras encíclicas (como as mencionadas acima) que deveriam ser lidas antes, a fim de compreender de forma adequada o contexto das considerações predominantemente econômicas de Rerum Novarum. Tais considerações incluem, entre outras coisas, 

  • o porquê de o socialismo ser totalmente injusto e estar fadado a tornar piores as situações que ele promete melhorar
  • o porquê de a instituição da propriedade privada (ou seja, a posse individual de bens próprios) ser benéfica ao indivíduo, à família e ao Estado; 
  • o porquê de a família ser, em certo sentido, anterior ao mesmo Estado; o porquê de ser útil e necessário o dever do Estado de promover o bem comum do maior número possível de pessoas; e, enfim, 
  • o porquê de o Estado ter a obrigação de proteger e fazer cumprir os direitos e responsabilidades das várias classes sociais. 

Fala-se também claramente dos deveres tanto de patrões como de empregados; explica-se qual é a regra principal e mais perfeita para o uso correto do dinheiro (isso por si só não nos deveria dar vontade de ler o documento todo?); define-se e defende-se contra possíveis objeções a ideia de “salário justo” e de “salário familiar”; e defendem-se com vigor as uniões ou “guildas” de trabalhadores e, portanto, o “direito de associação”. Sempre que leio esta encíclica, fico maravilhado ao ver como os grandes problemas e sofrimentos econômicos do séc. XX (e, certamente, do séc. XXI) já tinham sido previstos; as suas causas, expostas; e as suas soluções, propostas.

No magistério de Leão XIII, encontramos um projeto sistemático de engajar o mundo moderno, projeto que ele buscou levar à prática com todas as forças e sem desvios ao longo de um quarto de século. Apesar de ter sido profundamente crítico e pessimista quanto à direção em que estava caminhando o Ocidente, e mesmo sabendo que os filósofos secularistas eram um veneno mortal, Leão XIII manteve-se animado por um visão marcadamente positiva sobre o que Cristo e a Igreja podiam fazer pelo homem moderno, que necessita ser salvo dos ídolos que suas próprias mãos fabricaram.

Notas

  1. A esse respeito, consulte-se o excelente artigo “Relações entre a Igreja e o Estado”, da pena do Pe. Leonel Franca (in: Obras completas do Pe. Leonel Franca, SJ, v. 5: Alocuções e artigos, t. 1. Rio de Janeiro: Agir, 1954, pp. 11-54).

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