Ó memorial nobilíssimo, a ser honrado do fundo do peito, firmemente ligado à alma, diligentemente resguardado no útero do coração e contemplado tanto na meditação quanto em atenta celebração! (Urbano IV, Bula Transiturus de mundo, 11 ago. 1264)

A festa de Corpus Christi começou a aparecer nos calendários da Igreja no século XIII. Mas por que nesse tempo? Quem a promoveu? Como se universalizou?

Desde o início, a Igreja proclama e realiza fielmente o ensinamento de Jesus: “A minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue, verdadeiramente uma bebida” (Jo 6,55). Mas quando ela emergiu da “Idade das Trevas”, surgiram questões sobre a natureza dessa presença. Durante os séculos XI e XII, teólogos aplicaram os métodos dialéticos da investigação filosófica grega, bem como a exegese patrística. Esforçaram-se em defender a realidade da Santa Eucaristia como Corpo e Sangue de Cristo. Os dissidentes foram censurados.

A questão foi resolvida no IV Concílio Ecumênico de Latrão, que decretou que toda a substância do pão e do vinho converte-se em verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo, sem contudo alterar as aparências [i]. O termo transubstanciação, usado para descrever (não explicar) esse processo, estava em uso desde o século XI. Não depende da metafísica aristotélica da escolástica medieval.

Latrão IV exigiu ainda que todos os católicos, a partir da idade da razão, se confessassem e recebessem a Sagrada Comunhão ao menos uma vez por ano [ii]. Como os leigos raramente comungassem e o acesso ao Preciosíssimo Sangue lhes fosse negado desde o século XII, considerava-se a elevação da Hóstia consagrada, costume recém-introduzido, o ponto alto da Missa. Sinos badalavam para o anunciar a todos, dentro e fora da igreja.

A pureza do pão e do vinho oferecidos e a segurança das espécies consagradas tornaram-se motivo de preocupação. Na época, o Santíssimo Sacramento era muitas vezes reservado em um armário [almarium, em latim medieval] ou num recipiente fechado [píxide, do grego πυξίς, “caixa”, geralmente de madeira] suspenso sobre o altar. Estruturas independentes (sacrários) começaram a aparecer, precursoras dos futuros tabernáculos de altar. As lâmpadas do santuário ardiam ao lado da reserva eucarística, em honra à presença de Cristo.

Esse florescimento da teologia e do culto eucarísticos foi acompanhado por uma pregação vigorosa. Normalmente, os fiéis eram catequizados com histórias de milagres e exemplos que enfatizavam a realidade viva de Jesus. A piedade leiga floresceu como resposta. A santidade deixou de ser prerrogativa do clero e dos religiosos. O misticismo das santas mulheres medievais, centrado na Eucaristia, tornou-se a característica distintiva da espiritualidade na Idade Média. Três quartos dos santos leigos medievais eram do sexo feminino, e a esmagadora maioria dos milagres eucarísticos tem mulheres como protagonistas.

Entre elas, Juliana de Mont Cornillon. Nascida em 1190, perto de Liége, cidade de longa tradição erudita e fervor eucarístico, ficou órfã muito cedo e foi criada pelas canonisas de Santo Agostinho, vindo a juntar-se [posteriormente] à comunidade. Era um mosteiro duplo, que algumas fontes chamam confusamente Norbertine. Por volta de 1208, Juliana começou a ter repetidas visões de uma lua brilhante “com uma pequena falha em parte da esfera”. Ela meditou por vinte anos, até que Jesus lhe apareceu e explicou que a mancha escura era uma festa que faltava no calendário da Igreja: a celebração da Santa Eucaristia.

“A Visão de Santa Juliana de Cornillon”, por Philippe de Champaigne.

Juliana manteve silêncio sobre a revelação até 1225, quando foi eleita priora. Em seguida, compartilhou a ideia com seu confessor, um padre da igreja de Saint Martin, onde sua amiga Eva vivia como anacoreta. Ela consultou o bispo, arquidiácono Jacques Pantaléon, e eruditos dominicanos, que transmitiram a sugestão ao reitor da Universidade de Paris. Como ninguém se opusesse, o bispo de Liége instituiu a festa de Corpus Christi em sua diocese em 1246. Infelizmente, ele morreu meses depois no mosteiro cisterciense de Fosses.

O novo bispo foi pouco simpático e cancelou a celebração. O prior de Mont Cornillon, superior em ambas as seções do mosteiro, foi ainda mais hostil. Acusou Juliana de desviar fundos por ela administrados do hospital de leprosos, e pôs os cidadãos de Liége contra ela. Destituída do cargo em 1247, deixou a cidade e passou o resto da vida exilada. Por um tempo, ela se juntou a uma comunidade de leigas (beguinas) e, mais tarde, viveu num mosteiro cisterciense perto de Namur, o qual foi incendiado depois durante uma guerra. Em 1258, Juliana fez-se reclusa em Fosses, onde terminou seus dias, na mesma casa em que seu amigo bispo morrera doze anos antes.

Enquanto isso, Hugo de Saint-Cher, notável dominicano que foi cardeal-legado da Alemanha, visitou Liége em 1251. Celebrou a festa de Corpus Christi na igreja de Saint Martin, promoveu-a com entusiasmo e a instituiu no ano seguinte em todo o território alemão. O sucessor de Hugo foi igualmente favorável e continuou a defesa.

O arquidiácono Jacques Pantaléon, participante da primeira celebração de Corpus Christi, tornou-se bispo de Verdun, patriarca de Jerusalém e finalmente papa, adotando o nome de Urbano IV. Em 1264, promulgou Transiturus de mundo, a primeira proclamação papal de uma nova festa universal, mas morreu antes de o documento deixar a Cúria. Urbano, porém, enviara uma carta pessoal à velha amiga de Juliana, Eva de Saint Martin, que nunca deixou de promover Corpus Christi. Ela morreu no ano seguinte.

Embora os treze papas subsequentes tenham ignorado Transiturus de mundo, as celebrações de Corpus Christi continuaram a se espalhar pela Europa graças a iniciativas de algumas paróquias (incluindo Saint Martin, em Liége), de dioceses alemãs, de mosteiros cistercienses, da Ordem Dominicana e da cidade de Veneza. O dia da festa foi proclamado mais uma vez na carta papal Si dominum, incorporada a uma nova coleção [de decretos] de direito canônico chamada Clementinas. Mas Clemente V, o papa de Avinhão que suprimira a Ordem dos Cavaleiros Templários, morreu em 1314, antes de a aprovação oficial da coletânea estar concluída. O sucessor, João XXII, revisou e publicou as Clementinas em 1317. Depois de tantas decepções e atrasos, a festa de Corpus Christi foi finalmente inserida no calendário universal da Igreja. A mancha no rosto brilhante da lua finalmente se apagara mais de um século depois de Juliana a ter visto pela primeira vez. Em homenagem a seus esforços para promover Corpus Christi, a primeira grande festa da Igreja sugerida por uma mulher, Juliana de Mont Cornillon e Eva de Saint Martin têm agora o seu lugar no rol dos santos e beatos.

Seja como for, o anúncio papal teria pouco valor sem a resposta fervorosa dos fiéis, desejosos de adorar a presença eucarística de Nosso Senhor. A Missa festiva e a procissão solene exprimiam a tendência da cultura medieval a fazer o sobrenatural parecer concreto. Cada procissão local ligava a cidade ao cosmos. O testemunho público da realidade sacramental do Corpo e Sangue de Cristo era uma forma de condenar os hereges, dos cátaros antimateriais aos lolardos e hussitas, que negavam a transubstanciação. Os rituais e sermões do dia foram compostos com vista a fortalecer a fé e dissipar dúvidas, com o benefício adicional das indulgências. Confrarias e guildas do Santíssimo Sacramento deram uma cor a mais às festividades, beneficiando os integrantes tanto no corpo como na alma.

A festa de Corpus Christi fez desabrochar criatividade e devoção em toda a cristandade. Para a ocasião, Tomás de Aquino escreveu hinos magníficos que transformam doutrina em poesia: a sequência Lauda Sion, Pange lingua (fonte de Tantum ergo), Sacris solemniis juncta sint gaudia (fonte de Panis angelicus), Verbum supernum prodiens (fonte de O salutaris hostia) e Adoro te devote. Além das liturgias formais, as Horas do Sacramento foram acrescentadas aos devocionários populares.

Corpus Christi inspirou uma nova arte decorativa para igrejas e livros ilustrados. A custódia, já usada para expor relíquias, evoluiu aos poucos até chegar à forma atual, adequada para expor o Santíssimo Sacramento em procissões e para adoração e bênção. A festa também foi homenageada com quadros e dramatizações públicas. Na Inglaterra medieval, os ciclos de peças de mistério encenados na época da festa atraíam multidões para York, Chester, Coventry e outras cidades. Outras cidades europeias também foram palco de espetáculos semelhantes, bem como de peças sobre milagres, centradas em histórias sobre a própria Eucaristia.

Celebrar a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo une o sublime ao simples, assim como a Encarnação une a divindade à humanidade. A procissão de Corpus Christi simboliza nossa peregrinação ao banquete eterno do Salvador, onde o veremos tal como Ele é.

Notas

  1. Cf. IV Concílio de Latrão, const. 1 [p. 5]: Uma só é a Igreja universal dos fiéis, fora da qual ninguém se salva, na qual o mesmo Jesus Cristo é sacerdote e sacrifício, cujo corpo e sangue estão contidos no sacramento do altar sob as espécies de pão e de vinho, transubstanciados o pão e em corpo e vinho em sangue pelo poder divino, a fim de que, para cumprir o mistério da unidade, recebamos dele o que tomou Ele de nós [a natureza humana, unida em Cristo à pessoa do Verbo]” (N.T.).
  2. Cf. Id., const. 21 [p. 20]: “Todo fiel, de um e de outro sexo, após chegar à idade da razão, deve confessar fielmente, sozinho, todos os seus pecados, ao menos uma vez no ano, ao próprio sacerdote e empenhar-se em cumprir a penitência imposta, recebendo reverentemente, ao menos na Páscoa, o sacramento da Eucaristia” (N.T.).

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