Há alguns anos, um amigo falou-me de um livro chamado Anything: The Prayer That Unlocked My God and My Soul (“Qualquer coisa: a oração que destravou meu Deus e minha alma”, sem edição no Brasil). Embora eu nunca o tenha lido, a tese era intrigante e até um pouco… desconcertante. Uma dona de casa cristã que morava em um subúrbio e levava uma vida confortável fez certa noite a seguinte oração com o marido antes de se deitar: “Deus, nós faremos qualquer coisa. Qualquer coisa”. E Deus acreditou no que disseram.

É uma oração perigosa, que me volta à mente de tempos em tempos. Sei que o Deus a quem servimos operou milagres em nossas vidas que não consigo explicar de outra forma, por isso sei que Ele é fiel à sua palavra e capaz de mais do que posso imaginar. Ele não nos pediu mais do que nossa fé e confiança, e ainda assim nos cobriu de centenas de bênçãos e consolações.

Oração de abandono

Contudo, por causa de meus apegos, posso dizer que essa oração de abandono — na qual se dá a Deus um “cheque em branco” para que Ele o preencha com a quantia que quiser — ainda não passou pelos meus lábios. E se Ele quiser de mim algo grande — digo, algo realmente grande —, algo realmente importante para mim, sem o qual não sei se poderia viver? E se eu disser que farei qualquer coisa, e Ele tomar minhas palavras literalmente? E se Ele me tirar tudo?

Sabemos que Nosso Senhor não recebe nada do que lhe damos gratuitamente sem nos retribuir com o cêntuplo. Depositamos uma semente de mostarda que equivale ao capital da fé e colhemos os dividendos.

Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições — e no século vindouro a vida eterna (Mc 10, 29s).

São Paulo disse aos romanos que era um escravo de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Rm 1, 1). Ele sabia que sua vida fora resgatada por um preço e que tinha uma dívida para com aquele que o salvou. Alguém poderia replicar: mas nós não somos “amigos de Cristo, e não escravos” (cf. Jo 15, 15)? Um escravo não tem direitos, ao passo que um amigo desfruta da reciprocidade.

Jesus revelou os segredos do Reino a seus amigos mais próximos, os Apóstolos. Mas note-se o que Nosso Senhor diz no mesmo versículo: “Um escravo não sabe o que faz seu senhor”. São Paulo continua:

Não sabeis que, quando vos ofereceis a alguém para lhe obedecer, sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado para a morte, quer da obediência para a justiça? Graças a Deus, porém, que, depois de terdes sido escravos do pecado, obedecestes de coração à regra da doutrina na qual tendes sido instruídos. E, libertados do pecado, vos tornastes servos da justiça (Rm 6, 16ss).

Para nos tornarmos amigos de Deus, precisamos fazer o que Ele manda (cf. Jo 15, 14). Abraão, pai na fé, deu-nos exemplo disso ao não saber, de fato, o que seu Mestre estava fazendo; mas, com fé, ele “creu em Deus, e isto lhe foi tido em conta de justiça, e foi chamado amigo de Deus” (Tg 2, 23).

Costumamos dar a Deus o que nós mesmos escolhemos dar. Mas Deus pede algo de Abraão como condição para que ele desfrute do privilégio de sua amizade, algo que Abraão dá prontamente, embora aflito: seu filho, seu filho único, Isaac, a quem ama. No teste de Abraão, Deus poupa Isaac quando vê a disposição de Abraão de pôr ao Senhor acima de qualquer coisa por ele amada. Quando Deus o chamou pelo nome (“Abraão!”), Abraão consentiu (“Eis-me aqui!”) que levasse tudo, inclusive o filho.

Preocupações paternas

Ora, para qualquer pai, essa é uma história desconcertante e uma ideia repulsiva. Poderíamos recuar e perguntar: “Que tipo de Deus pede tal coisa?” Contudo, recuamos porque, pela fé, sabemos a resposta: o Deus a quem servimos “não poupou seu próprio Filho, mas por todos nós o entregou; como não nos dará também com Ele todas as coisas?” (Rm 8, 32).

Para nos tornarmos amigos de Deus, precisamos fazer o que Ele manda. E qual mandamento vem antes de todos os outros? “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de minha face” (Ex 20, 2s). Nada pode vir antes dele nem ser preferido a Ele, nem pais, nem esposos, nem filhos, nem trabalhos, nem casas, nem escolas, nem planos de aposentadoria, nem mesmo nossos próprios desejos devem ser colocados antes de Cristo. Quando buscamos imitar a Cristo, fazemos eco de suas palavras de obediência ao Pai: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra” (Jo 4, 34).

Ao subirem Maria e José ao Templo para apresentar o menino Jesus ao Senhor, vemos uma força prefigurativa nas palavras de Simeão: “Eis que este menino está destinado a ser causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradição, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2, 24s).

O papel de Nossa Senhora

Como pai, não consigo pensar em ninguém melhor do que a Virgem Maria a quem confiar meus filhos. Nossos filhos são, em essência, nosso “cheque em branco” para Deus, mais ainda quando expressamente os oferecemos ao Senhor. Nós fizemos isto mediante a consagração da família a Maria, segundo o método de São Maximiliano Kolbe:

Ó Imaculada, Rainha do céu e da terra, refúgio dos pecadores e nossa Mãe amantíssima, a quem Deus quis confiar a inteira distribuição da misericórdia, eu, N., indigno pecador, me prostro aos teus pés, suplicando-te humildemente que me aceites todo e completamente como coisa e propriedade tua e que faças aquilo que te agrada de mim e de todas as faculdades da minha alma e do meu corpo, de toda a minha vida, morte e eternidade.

Dispõe também, se queres, de todo o meu ser, sem nenhuma reserva, para realizar aquilo que foi dito de ti: “Ela te esmagará a cabeça”, como também: “Somente tu destruíste todas as heresias do mundo inteiro”.

Santa Felicidade: nosso modelo

Ensinamos nossos filhos a rezar, vamos à Missa juntos e os instruímos na fé católica. Mas será que isso é suficiente? A guerra cultural parece-nos sem precedentes, mas obviamente não é; ela somente parece ser porque ainda não dissemos a Deus que lhe daremos “qualquer coisa” que Ele pedir. 

Santa Felicidade fez justamente isso. Ela foi uma mártir do século II. Comparecendo diante do prefeito de Roma com seus piedosos filhos, foi exortada a fazer um sacrifício aos ídolos, mas a resposta que deu foi uma generosa confissão de fé: “Não me faças ameaças. O Espírito de Deus está comigo e superará qualquer ataque que fizeres”.

“Martírio de Santa Felicidade e de seus sete filhos”, por Francesco Coghetti.

“Mulher miserável!” — disse-lhe o prefeito. — “Como podes ser tão bárbara a ponto de expor teus filhos a tormentos e à morte? Tende piedade dessas jovens criaturas, que estão na flor da idade e podem aspirar às mais altas posições no Império!”

Felicidade respondeu: “Meus filhos viverão eternamente com Jesus Cristo se forem fiéis, mas não terão senão tormentos eternos se se puserem a sacrificar aos ídolos. Tua aparente piedade não é senão uma cruel impiedade”.

Prestamos um desserviço quando preparamos nossos filhos somente com o conhecimento da fé, sem um entendimento do custo da verdadeira fé no século XXI, uma era de capitulação e apostasia que nos pede que ofereçamos “apenas uma pitada de incenso” [1].

Nossos filhos não terão o luxo de um catolicismo cultural nem mesmo a opção de ser mornos. Defender o que é verdadeiro, professá-lo e vivê-lo são coisas que os tornam alvos. Não há nada de que eu queira proteger mais os meus filhos que desse tipo de perseguição. No entanto, é justamente isso o que o Senhor diz que devemos levar em conta quando calculamos os custos. É algo que devemos comunicar a nossos filhos, se desejamos que eles assumam como sua a fé. 

A oração de um pai

Quando peço a intercessão de Santa Felicidade e seus filhos mártires e medito sobre o Filho da Mãe dolorosa pendente na Cruz, dou-me conta de que me estou enganando quando penso que posso servir ao Senhor dos Exércitos, sem contudo me abster de nada. O martírio de testemunho não exige menos que isso. 

Será que Ele deseja levar para si alguém a quem amo, por doença ou acidente? Senhor, dou-te todos eles porque sei que os verei novamente no último dia, se me mantiver fiel a ti.

Será que Ele me pede que permaneça firme, ao invés de negá-lo diante dos homens, mesmo que isso signifique perder o trabalho ou sustento? Senhor, jamais permitas que eu te negue. Toma de mim o que tu mesmo me deste, se isso for um obstáculo, pois eu sei que tu alimentas teus filhos com o pão de cada dia.

Meus filhos irão antes de mim para me testar a fé, como ocorreu com Abraão? Senhor, toma-os dos braços da tua Mãe, à qual os consagramos, e segura-os tu mesmo. Deixa que eu leve as pancadas em minhas próprias costas. Mas, se eles tiverem de me ser tirados, dá-lhes a graça de perseverar até o fim e nunca te negar.

Ao perceber que nossa sensação de controle é uma grande ilusão e que, sem o auxílio de Nossa Senhora, não temos a mínima chance de enfrentar como cristãos o tempo futuro, confiamos a ela nossos filhos, aquilo que temos de mais importante. Pedimos a ela que os forme, encoraje, conforte e ensine a sofrer bem, para que possam, pela graça, perseverar até o fim. 

Mas nunca deixamos de depositar a esperança derradeira em Cristo. Pois nesse tempo perverso não temos nada, nenhum recurso além da confiança no cumprimento das palavras do Senhor quando lhe damos tudo: “Todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt 19, 29).

Notas

  1. Oferecer incenso nos templos era um costume pagão entre os romanos. A muitos cristãos que se negavam a prestar culto ao imperador ou aos deuses pagãos foi-lhes dada a alternativa de oferecer uma pitada de incenso à estátua de César. Negando a própria fé, escapariam da tortura e da morte. A São Policarpo (séc. II) fizeram essa proposta. Como se negou a fazê-lo, foi martirizado.

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