O professor John Senior, meu padrinho e um dos professores do famoso Programa Integrado de Humanidades (PIH) da Universidade do Kansas, era um mestre da hipérbole. Certa vez, ele sugeriu aos seus alunos que deveríamos voltar para casa e quebrar as nossas televisões. Talvez ele não estivesse falando literalmente, mas sugeriu que considerássemos essa possibilidade

Sei de pelo menos um colega que levou a sério e jogou a sua televisão Motorola preto e branco de 19 polegadas pela janela do seu quarto, no quarto andar do dormitório, no beco de concreto abaixo.

Hoje, a tela de plástico leve mal faria barulho ao cair no chão. Mas, na década de 1970, as dezenas de tubos selados (é por isso que alguns ainda chamam a TV de “tubo”) explodiam, fazendo um barulho estrondoso. Foi muito satisfatório. Muito catártico.

A televisão era uma tecnologia relativamente nova na época; levou cerca de uma geração para começarmos a perceber o que ela estava fazendo conosco. Em vez de sermos ativos, curiosos, críticos e engajados com o mundo real, cheios de admiração e alegria, estávamos nos tornando preguiçosos e lentos, aceitando com apatia uma versão mediada, muitas vezes falsa ou incompleta, da realidade.

O som de uma televisão explodindo na calçada ajudou a marcar uma nova fase das nossas vidas, na qual assumimos o compromisso —  profundamente relacionado à nossa fé (eu me converti ao catolicismo por influência do PIH) — de não permitir que essa tecnologia nos moldasse de maneira negativa e deturpada.

Hoje, estamos diante de um problema semelhante, mas numa escala muito maior. A Inteligência Artificial e as tecnologias a ela relacionadas serão agora capazes de usar a nossa dependência das tecnologias mediadoras, fornecidas pelas telas, e nos jogar numa confusão quase total sobre o que é real e o que não é.

Os vídeos chamados deepfake são hoje em dia, muitas vezes, indistinguíveis dos reais. Em breve, não saberemos se estamos numa reunião do Zoom com uma pessoa real ou com um assistente virtual criado por IA que parece uma pessoa real. As vozes podem agora ser falsificadas a tal ponto que nem mesmo os membros da família conseguem distinguir. A “prova de realidade” se tornará uma tendência.

Duas gerações depois de John Senior, eu me pergunto: será que precisamos fazer o equivalente a “destruir as nossas televisões” mais uma vez? Também me pergunto se, desta vez, as ideias e o apelo do Papa Leão XIV poderiam ser a nossa inspiração para fazê-lo.

Leão XIV em discurso aos cardeais, após a sua eleição.

O Santo Padre deixou bem claro que uma das razões pelas quais escolheu o seu nome foi para sinalizar que ele seria semelhante a Leão XIII, o Papa que ajudou a Igreja e o mundo a oferecer uma resposta à Revolução Industrial do século XIX e às suas enormes perturbações. Hoje, o Santo Padre compreende que estamos no meio de outra revolução tecnológica, que promete algumas coisas boas, mas que provavelmente aumentará a nossa passividade diante de uma realidade distorcida a níveis nunca antes vistos.

Como seria “a destruição das nossas televisões” em 2025? Cada vez menos pessoas assistem ao que consideramos televisão tradicional. Mas “desligar a televisão” não significa automaticamente menos tempo diante da tela. Na verdade, as nossas muitas outras telas levaram-nos a passar ainda mais tempo diante delas. Isso é especialmente verdadeiro em relação aos jovens, mas eu mesmo frequentemente sinto isso em relação ao meu celular e ao computador.

Na semana passada, Clare Morell lançou o seu novo livro, The Tech Exit [“Saindo da tecnologia”, ainda sem edição no Brasil]. Ele é dirigido a pais que se debatem com essas questões, principalmente em relação aos seus filhos, mas pode ser lido com proveito por praticamente qualquer pessoa. Morell argumenta que os limites de tempo de tela e os controles parentais não estão causando um impacto significativo para conter a tendência e, portanto, é necessária uma abordagem mais radical.

Na verdade, ela sugere que talvez tenhamos de fazer um jejum digital e, ao mesmo tempo, voltar a desfrutar de comunidades solidárias com alternativas que assumam as responsabilidades da vida real.

Eis mais uma forma de a Igreja ser Igreja. As nossas paróquias, escolas e outras comunidades devem ser locais que apoiam os indivíduos e as famílias precisamente dessa forma. Não devemos limitar-nos a dizer “não” às tecnologias prejudiciais. Temos de dar um “sim” mais amplo àquilo que é “verdadeiramente real” e encarnado, aos encontros genuínos para os quais John Senior nos chamou na década de 1970.

O professor americano John Senior.

Essas comunidades devem facilitar a leitura de livros físicos (tanto individualmente quanto em comunidade), criar oportunidades para reuniões de celebração dos sacramentos, e de encontro com Deus e os santos por meio da oração, oportunidades para apreciar a maravilha da Criação de Deus e, sim, até mesmo ocasiões periódicas para se entediar e divagar.

A Igreja Católica deve hoje exercer um papel profético em relação à IA. Se não o fizer, quem o fará? Um exemplo disso é que, em 5 de junho, os bispos de Maryland publicaram uma carta pastoral sucinta e oportuna sobre a IA, exortando os católicos a aproveitar o uso dessas tecnologias emergentes, colocando em primeiro plano o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Por ocasião da festa de Pentecostes, os bispos de Maryland invocaram o Espírito Santo e exortaram os fiéis a meditar sobre estas tecnologias emergentes e levar o tema à oração.

Não está claro o que o Papa Leão XIV nos oferecerá para navegarmos pelas águas da nossa nova revolução tecnológica. Mas pergunto-me se ele não verá as perturbações atuais e futuras como algo que nos proporciona, não apenas um problema espinhoso, mas uma oportunidade positiva. Tal como Neo no filme Matrix, pergunto-me se, confrontados com uma cultura intoxicada pela “pílula azul” da irrealidade artificial, alimentada por um paradigma tecnocrático, poderemos conscientemente fazer a escolha contracultural da “pílula vermelha”.

À medida que perdemos a fé em nossas telas mediadoras e até mesmo mentirosas, podemos ter uma oportunidade cultural para voltar à realidade das comunidades vibrantes, locais e naturais — cheias da energia e vitalidade do Espírito Santo.

Mas para chegarmos lá talvez seja necessário quebrar as nossas TVs.

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LE
Ludivico Eckert
28 Jun 2025

Claro. Que AI, ajuda na irracionalidade das pessoas, de compreender a realidade natural social e humana!

Desvia as pessoas do Espírito Santo. 

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AS
Afonso Silva
28 Jun 2025

Muito proveitoso o texto. Agora cabe a nós, não só levarmos este texto as pessoas de nosso relacionamento, mas incentiva-las que leiam, que sem dúvida é o mais difícil.

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CS
Carlos Silva
28 Jun 2025

Recente num contexto, o saber de conhecimento e teoria hoje já é o básico, porque aquele que conseguir dialogar com o IA já está à frente dos demais, kilometros de distância numa chamada posição social, no entanto, o diálogo entre pessoas presenciais cada vez menos propenso da realidade, terrível mesmo 

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RC
Robson Cola
24 Jun 2025

Estamos vivendo uma era onde está radicalizada a famosa política do Pão e Circo! Implantada no Império Romano pagão. Uma estratégia sedutora para evitar o sofrimento e a revolta da população, com relação às tragédias que viviam. De que forma? Alimentação básica: o pão. E divertimentos baseado em lutas entre gladiadores! O circo... Voltamos a estes tempos...

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