Poucas coisas se podem deplorar tanto, no atual clima de dissipação em que nos encontramos, do que o desmonte da liturgia católica, tal como ela é celebrada, infelizmente, na maior parte das paróquias.
Nem tudo, porém, são más notícias. É com grande alegria que temos visto nos últimos anos, graças a Deus, uma verdadeira recatequização do clero e, com isso, uma real melhora no modo de celebrar a Santa Missa. A redescoberta lenta e gradual das tradições litúrgicas da Igreja contribui muito para isso também [1].
De todo modo, ainda faz falta em nossas celebrações aquele espírito de recolhimento característico do rito e do sacerdócio antigos. (E não, não estamos falando dos levitas do Velho Testamento, mas da liturgia até a década de 1970 e do modo como se celebravam os sagrados mistérios da Nova Aliança.) Estudando, por exemplo, a história do surgimento das antigas “orações ao pé do altar” [2], é fascinante descobrir que elas só se tornaram normativas muito tempo depois (o atual Confiteor, por exemplo — “Confesso a Deus todo-poderoso…” —, data do séc. XIII), quando os fiéis já estavam acostumados a ver seus bispos e sacerdotes aproximar-se do altar e ficar algum tempo em silêncio… fazendo oração. Havia a consciência de que era algo sério e grandioso o que ali era feito, por isso não se podia proceder de qualquer maneira. Introibo ad altare Dei! Com que espírito e decoro não deve o sacerdote aproximar-se do próprio altar do sacrifício!
Sim, vale dizer que também hoje existem orações prescritas para o sacerdote ao se paramentar e preparar para a Missa. Não só isso: a Missa ainda começa com um momento de purificação de toda a assembleia, seja com a aspersão de água benta sobre o povo, seja com o chamado ato penitencial, que no rito antigo se limitava à oração do Confiteor. E só esta oração, bem feita diante de Deus e dos santos, já nos ajuda muitíssimo a preparar-nos para o mistério que iremos celebrar. Nas palavras do Pe. Pius Parsche:
O leigo que não foi iniciado nos segredos da oração litúrgica, ao ouvir pela primeira vez o Confiteor, dificilmente vai considerá-lo um ato de contrição apropriado. Os atos de contrição que ele aprendeu no catecismo contêm os motivos do arrependimento e formulam a contrição perfeita e imperfeita, mas nada disso se encontra no Confiteor. Apesar disso, no entanto, o Confiteor é altamente dramático. Pode-se dizer que ele representa uma cena judicial em duas partes. Quando eu recito o Confiteor, imagino-me transportado para a corte celeste, onde permaneço de pé diante da sede judicial de Deus. O Juiz eterno está entronizado em meio aos santos; entre esses santos eu vejo a Bem-aventurada Virgem Maria, Miguel, o capitão da hoste celeste, João Batista, o precursor do Senhor, e Pedro e Paulo, os príncipes dos Apóstolos. De pé deste modo diante dessa corte celeste, eu sei que eles estão me acusando por eu ter sido infiel à graça do meu batismo; eu começo a me dar conta de minha iniquidade; e meu desejo é desaparecer. “Por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa”. Aqui está o clímax do Confiteor, ou melhor, o momento profundo em que eu desço àquela piscina para onde fluem lágrimas de contrição. Há então uma repentina reviravolta na cena: esses santos que, há um instante, eram meus acusadores, são agora meus defensores e intercessores, voltando-se para o todo-poderoso Juiz para rezar pelo meu perdão. Eis o drama do Confiteor [3].
Coisa extraordinária! No mesmo tribunal em que nos acusamos por um dever de justiça somos também favorecidos com a máxima misericórdia: os santos intercedem por nós a Deus. Não estamos sozinhos. Temos advogados, intercessores, defensores ao nosso lado.
Esse contato com a Igreja celeste muito nos ajuda com as distrações a que infelizmente estamos sujeitos na atual Missa versus populum, isto é, celebrada com o padre “de frente para o povo”. Muita tinta já foi gasta sobre o assunto. O próprio Cardeal Robert Sarah, quando era prefeito da Congregação para o Culto Divino, chegou a pedir aos sacerdotes que voltassem a celebrar como a Igreja sempre celebrou, isto é, versus Deum. O pedido, como se sabe, foi muitíssimo mal recebido e caiu em ouvidos moucos.
A verdade histórica, porém, é que não era desejo nem dos Padres reunidos no Concílio Vaticano II nem do Papa Paulo VI que a Missa se tornasse o “jogral” em que se converteu. A ideia de uma comunidade autorreferencial, com quem a preside voltado para o povo, é típica do protestantismo, onde não há altar nem sacrifício.
O próprio Papa Bento XVI procurou remediar esse estado de coisas sugerindo que se colocasse no centro do altar, voltado para o sacerdote, um crucifixo, a fim de que ele não perdesse a Deus de vista por ter diante de si um punhado de homens. A tentativa foi acolhida por muitos, mas em muitos lugares a tragédia é que as Missas começam como programas de auditório. O padre é um animador responsável por captar a atenção do público. Sua “performance” é tudo: sem presença de palco, o pároco ou o vigário corre o risco de ser trocado pelo da paróquia mais próxima, ou pelo padre mais atrativo que aparecer no caminho.
É o fenômeno da antropologização da Missa: Deus deixa de ser o centro e, agora, o que conta é a música, é a fala do padre, é o apelo aos sentimentos — numa palavra, o show.
Nada contra concertos musicais e belos discursos. Desde que sejam feitos, é claro, no lugar e no tempo devidos. A Santa Missa, definitivamente, não é o lugar para essas coisas.
O problema é que esse é o clima geral em que nos encontramos. É uma tragédia que o barulho do mundo esteja tão disseminado a ponto de perturbar os átrios do Senhor, impedindo que as pessoas rezem justamente nos lugares que foram consagrados, separados por Deus… para a oração!
Como solucionar este dilema?
Os que têm responsabilidade direta sobre o santuário têm o grave dever de ensinar o povo a rezar. Para tanto, os primeiros que precisam cultivar esse gênero de vida são os próprios pastores, transformando seu modo de rezar a divina liturgia a partir de uma imersão pessoal e profunda no silêncio de Deus, na quietude do colóquio com Ele.
Aos leigos nos foi confiada uma missão mais simples, mas nem por isso menos grave: o santuário de que somos responsáveis não é a igreja nem a multidão de fiéis que a frequenta, mas nossas próprias casas e as almas que estão sob nosso cuidado, pois um dia teremos de prestar conta delas a Deus.
Por isso, com o perdão da palavra, de nada adianta reclamar dos abusos litúrgicos, da falta de reverência para com os mistérios mais sagrados de nossa religião, se não fazemos o mínimo para custodiá-los dentro de nossos lares. De nada adianta (atenção, católicos de internet!) proclamar anátemas do alto de nossa soberba contra o clero e os ministros de Deus, cobrando deles santidade e ortodoxia, se nós mesmos, em nossa vida pessoal, não nos comportamos diferentemente do resto do mundo, à altura de nossa vocação cristã. De nada adianta protestar contra o barulho de fora, se não fazemos nada para combater os ruídos de dentro.
Na prática, isso significa tomar a responsabilidade sobre aquilo que nos compete. O ministério de música de sua paróquia talvez seja difícil de mudar, sim, mas o controle remoto de sua TV está aí do seu lado. Por que ela fica ligada o dia inteiro, se às vezes nem há ninguém na sala para assistir a ela? Por que deixamos engenheiros sociais (que já se provaram suficientemente malignos a ponto de declarar abertamente guerra às nossas famílias) ditar, por assim dizer, a “trilha sonora” de nossas vidas, com músicas baixas, de ritmo sensual e letras indecentes? Por que ainda não substituímos a novela (ou as séries) em família pelo Terço, por uma leitura espiritual frutuosa, por uma meditação ou — para não falar que não temos lazer — pela audição de uma boa música e por brincadeiras sadias?
O silêncio, a sacralidade, o estilo teocêntrico de viver devem existir na Missa, sim, mas não se esgotam nela.
Já que começamos falando da Missa, terminemos falando dela: no rito atual, antes de rezar o Confiteor, o padre diz ao povo as seguintes palavras: Fratres, agnoscamus peccata nostra ut apti simus ad sacra mysteria celebranda, “Irmãos, reconheçamos os nossos pecados para que sejamos dignos de celebrar os santos mistérios”. Para que sejamos aptos! Oxalá toda a nossa vida seja transformada com esta finalidade: ad sacra mysteria celebranda.
Pois a Missa de que tomamos parte aqui neste mundo — mesmo que muitas vezes seus aspectos externos não nos ajudem na devoção — é prelúdio da liturgia do Céu, e é para esta que fomos feitos. Lá, diferentemente do que tantas vezes presenciamos, o culto a Deus será puro, imaculado, sem mancha. “Quando o perfeito vier, o imperfeito desaparecerá” (1Cor 13, 10). Lá, a corte celeste perante a qual tantas vezes acusamos nossos pecados nesta vida, e da qual tantas vezes invocamos a intercessão, será nossa amiga e cantará junto conosco, por toda a eternidade, louvores sem fim a Deus, Nosso Senhor.
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