Superficialmente, a oração Coleta para o 3.º Domingo da Quaresma [no rito tradicional] é quase tão simples quanto parece:

Quáesumus, omnípotens Deus, vota humilium réspice: atque ad defensiónem nostram, déxteram tuæ majestátis exténde. Per Dóminum… — Nós vos suplicamos, Deus onipotente, volvei vosso olhar para as petições dos humildes e estendei, em nossa defesa, a destra de vossa majestade. Por Nosso Senhor…

A Coleta [em questão] é um bom exemplo das razões que levaram Pierre Maranget a caracterizar as orações romanas como “notáveis por sua simplicidade, gravidade, clareza, força e concisão, bem como pela elevação do pensamento e pela abundância e precisão de seu ensino teológico” [i]. A maioria das Coletas tem três partes (sem incluir a conclusão): o destinatário, uma declaração de fato e uma petição [ii]. O destinatário é Deus, a declaração de fato é sobre Ele (“Vós que fazeis x, y e z”) e a petição se refere a nós. A Coleta deste domingo substitui uma declaração de fato por uma petição dupla, dando-lhe uma urgência um tanto quanto apressada.

Ela também encontra maneiras de descrever a Deus sem uma declaração de fato à parte. “Onipotente”, “destra” e “majestade” enfatizam o poder divino. Para 90% da população mundial, a mão direita é a mais forte e mais capaz das duas e, nos Salmos, a destra de Deus é sinônimo de seu poder. Há também uma alusão cristológica na petição para que o Pai estenda a mão direita, pois é o Filho que está sentado à sua direita.

“Majestade” também conota poder sobrenatural. De acordo com a Ir. Mary Pierre Ellebracht, o hebraico Kebod Yahweh (“a glória de Deus”) significa tanto o poder de Deus quanto sua luminosidade. Os primeiros cristãos traduziram o último como claritas e o primeiro como majestas [iii].

Toda essa atenção no poder divino visa conclamá-lo para nossa proteção. A Coleta reza para que a capacidade de ataque de Deus seja para nós a melhor defesa. O poder também é o tema do Evangelho deste domingo (cf. Lc 11, 14-28) [iv]. Quando os judeus, ao verem Jesus realizar um exorcismo, o acusam de ter poder demoníaco, Ele os recorda de que uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir, e observa que um homem é forte somente até que um mais forte venha, o subjugue, lhe tire armadura e distribua os despojos. Ele então conta a história de um demônio que é exorcizado e volta com sete espíritos mais perversos que ele para reaver o homem. Ao pedir a Deus que nos proteja com seu poder, a Coleta está lhe pedindo que nos proteja do homem forte [o demônio].

Pedimos a Ele que nos proteja porque nos sabemos fracos. A primeira petição da Coleta é vota humilium réspice. Respicere é o verbo latino normalmente usado para “levar em conta” ou “considerar”, mas eu o traduzi de acordo com seu significado mais primitivo de olhar para trás ou olhar de novo. O Intróito deste domingo começa com a declaração: “Os meus olhos estão sempre no Senhor, pois Ele livrará meus pés da armadilha. Volvei vosso olhar (respice) para mim e tende misericórdia…” [v].

O fato de estarmos sempre com os olhos voltados para o Senhor indica que somos servos suplicantes, pois, 

Como os olhos dos servos estão fixos nas mãos de seus senhores,
como os olhos das servas estão fixos nas mãos de suas senhoras, 
assim nossos olhos estão voltados para o Senhor, nosso Deus, 
esperando que ele tenha piedade de nós (Sl 122, 2).
“O endemoninhado cego e mudo”, de James Tissot, tema do Evangelho deste domingo no rito tridentino.

Assim, quando nos voltamos para Deus, pedimos a Ele, tanto no Intróito quanto na Coleta, que olhe, que se volte para nós, por assim dizer, veja a nossa fragilidade e tenha piedade de nós. Estamos claramente numa posição inferior porque na Coleta nos chamamos humiles — palavra que em latim clássico é termo de reprovação para os humildes e insignificantes, mas em latim eclesiástico se torna uma confissão honesta de nosso status.

Mais especificamente, pedimos a Deus que olhe para os nossos vota [plural de votum], que traduzimos como “petições”, de humildes criaturas. Votum tem uma história rica. A palavra era usada, nos tempos do paganismo, para significar uma promessa solene feita a uma divindade: um voto. Passou a significar então o que era prometido e estava ligado, assim, às ofertas de sacrifício. Também passou a significar qualquer vontade ou desejo, e é provavelmente por isso que nossa palavra “voto” é derivada dela, já que votar é um ato de declarar suas preferências políticas. Em latim eclesiástico, vota são orações ou aspirações públicas, às vezes orações do ato litúrgico que estamos celebrando.

A Quaresma é um tempo para expulsar aqueles demônios em nossas vidas que só podem ser expulsos com jejum e oração (cf. Mt 17, 21). Nossas petições (vota) são nossas orações, e nosso jejum nos faz conscientes de nossa fraqueza. Talvez também essa seja outra ligação com o Evangelho. Alguns especulam que a parábola de Jesus sobre o homem forte é uma alusão a Isaías 49, 24-25:

Acaso se tirará a presa ao forte? Ou o que for tomado por um robusto guerreiro lhe escapará das mãos? Eis o que diz o Senhor: “Sim, a presa do bravo lhe será retirada, a presa do robusto guerreiro lhe escapará; sustentarei tua causa contra teu adversário, libertarei eu mesmo teus filhos…”

Em outras palavras, o diabo é o homem forte que nos levou cativos e nos fez de presa. — Livrai-nos, então, Senhor, do poderoso, e salvai os vossos filhos! [Amém.]

Notas

  1. Cf. Ir. Mary Gonzaga Haessly, Rhetoric in the Sunday Collects of the Roman Missal (Ursuline College for Women, 1938).
  2. Ibid., 14.
  3. Ir. Mary Pierre Ellebracht, Remarks on the Vocabulary of the Ancient Orations in the Missale Romanum (Dekker & Van de Vegt N.V.), 40.
  4. No rito tridentino não há o ciclo dominical de três anos. Por isso, as leituras do 3.º Domingo da Quaresma são sempre as mesmas. Foi num dia como esse que o Pe. António Vieira proferiu o seu célebre Sermão do Demônio Mudo, em referência justamente a este Evangelho. No rito atual, ele só se proclama na 5.ª-feira da 3.ª semana da Quaresma e na 6.ª-feira da 27.ª semana do Tempo Comum (N.T.).
  5. O Intróito da Missa no rito antigo foi preservado no rito novo como antífona de entrada (N.T.). 

O que achou desse conteúdo?

0
0
Mais recentes
Mais antigos