Querem ouvir uma história esquisita?
Outro dia, um jornal narrava a situação de uma avó que perguntou ao neto, cujo aniversário se aproximava, quantos amigos ele convidaria para sua festa. Notando que o aniversariante só havia mencionado garotos, ela questionou se não viria nenhuma menina também. “Sim. Claro. É que você disse amigos, e não ‘amigues’”, corrigiu o pequeno militante, para perplexidade da anciã [1]. Segundo o jornal, episódios como esse têm se repetido cada vez mais entre a classe média progressista de alguns países. Uma coisa é certa: se ninguém tomar providências, dentro de poucos anos a linguagem humana que conhecemos cederá lugar a um delírio linguístico tão revolucionário quanto ridículo.
O potencial destrutivo desse empreendimento maluco salta aos olhos. Agora, imaginem que a Bíblia ou o Catecismo adotasse essa mesma linguagem em sua redação. Com que espanto, por exemplo, as senhoras do Apostolado da Oração não reagiriam a um texto que dissesse “menine”, e não “Menino Jesus”? Que perplexidade não tomaria o coração dos fiéis ao ouvirem de seus catequistas que Nosso Senhor escolheu “discípulxs”, e não “discípulos”?
Apesar de surreal, esse pesadelo quase aconteceu nos Estados Unidos, décadas atrás, não fosse a intervenção sábia de uma valente vovozinha: Madre Angélica, a fundadora da TV católica EWTN. A história é narrada em sua biografia pelo jornalista Raymond Arroyo (os grifos são nossos) [2]:
Foi uma intervenção do Cardeal Bernard Law, arcebispo de Boston, em um Sínodo Extraordinário dos Bispos, em 1985, que trouxe a lume o primeiro Catecismo universal da Igreja Católica em mais de 400 anos. Law, expressando um desejo episcopal amplamente difundido, pediu por um único volume que codificasse exatamente o que a Igreja acreditava e ensinava no período turbulento pós-Vaticano II. Abraçando a ideia, o Papa João Paulo II aprovou um comitê de redação em 1986.
A edição francesa original desse Catecismo, promulgado pelo Papa em outubro de 1992, vendeu mais de um milhão de cópias. A demanda do público internacional se intensificou, exigindo o lançamento das edições espanholas, asiáticas, italianas e africanas. Mas a edição em inglês, mergulhada num pântano linguístico e teológico, não estava disponível em lugar nenhum. Madre Angélica foi particularmente responsável pelo atraso.
Devido ao seu papel seminal na elaboração do Catecismo, era natural que o Cardeal Law supervisionasse a tradução da edição em inglês. Sob sua liderança, os tradutores adotaram uma abordagem inclusiva, retirando sistematicamente termos específicos de sexo e substituindo-os por alternativas neutras. Referências a “homem”, por exemplo, foram traduzidas por “humanidade”; “homens e mulheres” transformaram-se em “pessoas e família”. Em vez das palavras de Jesus: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes pequeninos que são meus irmãos”, lia-se na nova tradução: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes pequeninos que são membros de minha família”.
Em uma carta de dezembro de 1992, acompanhando o esboço final da edição em inglês, o Cardeal Law descreveu a tradução aos seus irmãos bispos como uma “abordagem moderada” em direção à linguagem inclusiva. Os bispos americanos aprovaram o esboço e o enviaram para a aprovação final de Roma. Uma tempestade de críticas surgiu.
“Eles não estão mudando a linguagem por razões orgânicas, mas por causa da pressão de alguns grupos que se dizem ‘ofendidos’”, declarou o Padre Joseph Fessio, editor da tradicional editora Ignatius Press. Fessio acreditava que a tradução se rendera aos progressistas e às feministas, que desejavam um ajuste do ensinamento católico às próprias agendas. “Há outros católicos que não querem a mudança, e eles foram ignorados”, disse Fessio.
No informativo de sua arquidiocese, o Cardeal Law defendeu a tradução por motivos culturais. “Houve um tempo em que a palavra ‘homem’ era geralmente compreendida… como todos os seres humanos”, ele escreveu. “Este nem sempre é o caso hoje, dada a mudança cultural em relação à inclusão”.
As religiosas de Madre Angélica haviam requisitado 150 catecismos em inglês para vendê-los em suas lojas quando a notícia da controvérsia chegou ao claustro. A espirituosa irmã Agnes, uma religiosa agraciada com beleza e coragem, ligou ao vendedor para expressar qual edição elas esperavam receber. Quando soube que eles haviam reservado cópias do catecismo da “tradução na linguagem inclusiva”, Agnes cancelou o pedido, presumindo que Madre Angélica faria o mesmo. Tivesse acontecido com qualquer outro grupo de irmãs, o incidente passaria despercebido, mas um claustro com um canal direto a milhões de católicos merecia um escrutínio minucioso.
O telefone do mosteiro tocou em 8 de janeiro de 1993. Era o Cardeal Law, ligando aparentemente para Madre Angélica a fim de discutir o cancelamento da compra dos livros e entregar-lhe uma mensagem do núncio papal. Rouca por um grave ataque de asma, Madre Angélica recusou a ligação. De acordo com a história do OLAM (N.T.: Our Lady of the Angels Monastery), o próprio núncio ligou para a EWTN, mas foi igualmente informado de que Madre Angélica não podia falar.
Mais tarde, o Bispo Raymond Boland, de Birmingham, telefonou para Madre Angélica a fim de lhe assegurar que a tradução do catecismo em linguagem inclusiva seria aprovada por Roma e que uma oposição pública seria vista como hostilidade à vontade da Igreja. Madre Angélica respondeu ao telefonema. De forma direta, ela disse ao bispo que não apreciava a linguagem inclusiva e lhe fez uma pergunta retórica: “Jesus foi… concebido pelo Espírito Santo e nasceu como um humano ou um indivíduo? Você não pergunta a uma mãe se o seu filho é um humano, você pergunta se é um menino ou uma menina”. Embora ela não tivesse sido diretamente responsável pelo cancelamento da compra dos livros, o que provocara o telefonema, a Madre estava muito feliz por expressar a própria opinião. A batalha havia começado.
Depois de revisar o esboço em inglês do Catecismo, o Vaticano convocou o Cardeal Law a Roma em fevereiro. No mesmo período, Madre Angélica tinha seus próprios assuntos a tratar na Cidade Eterna. Conforme se aproximava da Congregação para a Doutrina da Fé, viu o Cardeal Law sair do palácio, com um sorriso estampado em seu rosto carnudo.
“Oh! Olá, Madre. Eu ouvi que a senhora tem um encontro com o Cardeal Ratzinger. Agora, a senhora defenda aquela linguagem inclusiva. Ela é muito importante na América”, Angélica se lembra de o Cardeal lhe dizer. “E eu pensei: Ah! você deve saber por que eu estou aqui”.
Madre Angélica encontrou-se com o Cardeal Joseph Ratzinger, a autoridade doutrinal do Vaticano e, em última análise, o homem responsável pelo Catecismo. Em seu escritório, eles conversaram intensamente. Sentando-se, um pouco desconfortável, em uma cadeira estofada de veludo vermelho e dourado, que facilmente poderia ter-se passado por trono para a coroação de Napoleão, Angélica explicou o alcance da operação de seu canal 24h e de sua rede de ondas curtas. “Eu quero levar a Igreja por todo o mundo, e nós podemos fazer isso. Mas não podemos se for na linguagem inclusiva”, disse a Madre ao Cardeal. “Ela é terrível; muda a doutrina e muda tudo”. Depois de trocarem cordialidades, a Madre agradeceu ao Cardeal e partiu.
No fim das contas, o Vaticano rejeitou o esboço de “gênero neutro”, suspendendo a publicação do Catecismo em inglês por quase um ano e meio. Nesse ínterim, a Santa Sé exigiu sua própria tradução, fiel ao original francês, repleta de pronomes masculinos e terminologia específica de sexo…
Para além de todas as críticas e ressalvas, a intervenção de Madre Angélica nessa história foi apenas a reação normal de quem percebe que “o rei está nu”.
O problema da chamada “linguagem inclusiva” é que ela é tudo, menos inclusiva. Explicamos: a língua é a identidade de um povo, o meio pelo qual uma tribo, nação ou civilização, seja antiga ou moderna, desenvolve sua cultura, arte, moral, virtudes e religiosidade. Como explica o historiador Christopher Dawson, “é somente por intermédio da língua que o homem pode transmitir a memória da experiência passada para as gerações futuras e, desse modo, gerar acúmulo de conhecimento que é a condição da cultura” [3]. Mais ainda: “Sem o idioma”, diz Dawson, “teria sido impossível ao homem libertar-se do domínio dos instintos que determinam a vida imutável da existência não humana” [4].
É claro que, aqui e ali, o idioma pode, e às vezes deve, sofrer alterações e evoluir, mas desde que essa evolução seja orgânica e não subverta sua ordem intrínseca. De outro modo, o nexo entre uma geração e outra fica comprometido como uma verdadeira Torre de Babel. O episódio narrado por aquele jornal citado no começo deste texto não ilustra apenas uma situação corriqueira de uma determinada família; ele ilustra a soberba de uma geração que, em vez de se sentar para ouvir os “causos” e aprender com a sabedoria dos antigos, prefere jogar todo o passado fora em nome de um arranjo social fictício, que vê luta de classes em cada esquina. A “linguagem inclusiva” está para o idioma como o movimento Black Lives Matter está para as estátuas de Winston Churchill ou Cristóvão Colombo. A questão é muito mais destruir do que incluir.
Que o Cardeal Bernard Law, cujo nome esteve envolvido mais tarde no escândalo de pedofilia que deu argumento ao filme Spotlight, não pudesse avaliar a consequência da sua famigerada tradução, é coisa sobre a qual não discutimos, pois não nos cabe julgar intenções. Mas, como percebeu Madre Angélica, um idioma não pode ser uma massinha de modelar para ser adaptado ao sabor de cada indivíduo. Se toda uma gramática é reestruturada simplesmente para agradar a determinado grupo, outro será desagradado. Como consequência, os conceitos vão perdendo sentido e a alfabetização se converte numa tarefa quase impossível, assim como a evangelização.
Aliás, é justamente por isso que os grandes ditadores sempre investiram em propaganda e narrativas para subverter a ordem e dominar o povo. George Orwell representou muito bem essa “novilíngua” em sua obra 1984, cujo legado, como o de outros clássicos literários, agora está ameaçado precisamente por ela: a linguagem inclusiva.
Também a teologia corre um sério risco, caso queira ceder a grupos de pressão para se mostrar, digamos, mais “tolerante”: o de apresentar um Jesus tão humano, tão humano, que deixe até de ser homem.
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