Há algo inexplicavelmente profundo no corpo sem vida e enterrado, mesmo quando sobram apenas ossos e pó depois de sua deterioração. Ele recorda ao homem sua mortalidade, ao mesmo tempo que sugere (por meio da tensão de um cadáver que se parece com um ente querido, mas já não é essa pessoa plenamente) algo transcendente sobre a condição humana. Na famosa cena do cemitério em Hamlet, os coveiros zombam dos falecidos, até que Hamlet aparece e, observando um crânio, lamenta: “Hélas, pobre Yorick! Eu o conheci, Horácio…”. Depois da morte de Cristo, mulheres choram sobre seu corpo sem alma e procuram honrá-lo com especiarias e lençóis brancos.

Desde então, os cristãos têm honrado os corpos sem vida dos santos. Nós também deveríamos honrar os nossos.

Os cristãos têm boas razões para realizar tais práticas, como observam Scott Hahn e Emily Stimpson em seu livro recém-publicado, Hope to Die: The Christian Meaning of Death and the Resurrection of the Body [“Esperança de morrer: o sentido cristão da morte e a ressurreição do corpo”, ainda sem tradução portuguesa]. Em essência, o homem é feito à imagem de Deus precisamente por ter um corpo e uma alma intelectual. Não se trata simplesmente de um corpo com uma alma sensível, como no caso dos outros animais, nem de um puro espírito inteligente, como no dos anjos. E, como nos diz Gn 1, 31, esse ente de corpo e alma era bombondade que o pecado poderia manchar, mas não apagar.

“Cristo Morto com os Anjos”, de Edouard Manet.

A Encarnação confirmou e elevou a bondade do corpo. O Verbo se fez carne por meio do vaso puro de Maria. Como declaravam os primeiros cristãos em sua crítica aos gnósticos antimaterialistas: como poderia ser má a carne, se Deus se dignou assumi-la para si? Por meio da Encarnação, Deus tornou possível a união do corpo humano à divindade, seja através do próprio Cristo, seja também, por extensão, através de nossa união com Ele.

Quando Jesus morreu e ressuscitou dos mortos, Ele foi visto não como uma aparição sem corpo, mas como um homem glorificado. Ao aparecer a Tomé, Ele diz: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não sejas incrédulo, mas homem de fé” (Jo 20, 27). Jesus vence a morte no corpo. Os primeiros cristãos traziam essa mensagem no coração, reconhecendo que seu próprio destino eterno estava imerso na mesma realidade. São João declara: “Sabemos que, quando isso se manifestar, sere­mos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é” (1Jo 3, 2). São Paulo afirma: “Assim como reproduzi­mos em nós as feições do homem terreno, precisamos reproduzir as feições do homem celestial” (1Cor 15, 49). 

Os sacramentos, particularmente a Eucaristia, são os meios para vivenciarmos essa união com o corpo ressuscitado de Cristo. Na verdade, como o sacerdote diz na epiclese, pão e vinho se tornam o Corpo e o Sangue de Cristo. Na Missa, nós entramos em comunhão com Cristo não apenas espiritual, mas fisicamente. Scott Hahn explica: “A transubstanciação é, com efeito, uma espécie de fusão nuclear. Ela põe em movimento um processo que criará algo completamente novo: um novo nós”. Com todo respeito a formas de doutrina e espiritualidade cristãs que espiritualizam demais o céu às custas de sua dimensão física, quando nossos corpos ressuscitarem no último dia, eles se unirão a nossas almas, como aconteceu com Cristo.

Essa concepção do corpo humano estava em flagrante conflito com as concepções do mundo antigo. Os pagãos procuravam satisfazer seus desejos corporais das formas mais glutônicas e luxuriosas, mas isso porque eles não achavam que seus corpos importassem. O corpo humano possuía uma perfeição, juvenil e efêmera, e depois que essa beleza desaparecia — particularmente após a morte —, sua degradação pútrida e repugnante deveria ser mantida a uma distância social segura. É por isso que tantos povos pagãos queimavam os corpos de seus mortos. É possível imaginar os participantes de um funeral pensando, enquanto viam o cadáver se transformar em cinzas: “Tu não precisarás disso no lugar para onde estás indo!”

A “obsessão” cristã com os cadáveres impressionava muitos povos antigos (certamente os romanos), que a consideravam bizarra e repugnante. Os cristãos honram os mortos, visitam seus túmulos, guardam seus ossos, e até os veneram e beijam! Mas esses atos de devoção só eram possíveis graças à doutrina cristã sobre a ressurreição, que tributa uma grande estima ao corpo humano, mesmo o corpo morto, pois ele ressuscitará um dia e será renovado. Às vezes era muito difícil convencer um pagão que se convertia a abandonar suas piras funerárias; Carlos Magno, o convertido que se tornou o primeiro Sacro Imperador Romano, fez da cremação um crime de pena capital!

Sim, como Scott Hahn observa, depois do império de Carlos Magno, “nenhum outro país ou poder europeu baniu ou permitiu explicitamente a cremação. Não era necessário fazê-lo. Ninguém queria ser cremado”. Então, a cristandade permaneceu de pé por um milênio. Foi somente no século XIX que diversos grupos — “radicais franceses, maçons italianos, socialistas alemães, bolcheviques russos, médicos ingleses e engenheiros civis americanos” — começaram a resgatar o interesse pela cremação. Muitos de seus defensores eram ateus e anticristãos declarados. Segundo o historiador Thomas Laqueur, “a ideia era que a cremação pusesse abaixo aquela comunidade milenar que enterrava seus mortos em solo sagrado, oferecendo, para tanto, uma alternativa vinda da história”. 

Alguns utilizavam razões sanitárias para argumentar a favor da cremação. Os cadáveres, diziam, poluem o abastecimento de água e liberam gases tóxicos no ar. Mais tarde, no século XX, passaram a usar argumentos ecológicos — diziam que a Terra não tinha espaço suficiente para abrigar os mortos da humanidade. O sepultamento também foi se tornando cada vez mais caro, às vezes atingindo valores proibitivos. Finalmente, o mundo globalizado encoraja a disseminação da cremação, já que outras tradições religiosas (o hinduísmo e o budismo, por exemplo) normalmente queimam seus defuntos. O efeito dessas forças é alarmante: em 1905, 99,9% dos britânicos eram sepultados. Em 2017, cerca de 77% foram cremados.

A posição da Igreja sobre a cremação sempre girou em torno de uma permissão relutante. Marco Minúcio Félix, um apologeta cristão do século III, escreveu: “Não tememos a perda pela cremação, embora adotemos o costume do sepultamento, mais antigo e superior”. Em 1300, por sua vez, o Papa Bonifácio reafirmou que a cremação era para bruxas e hereges, não para os fiéis cristãos. Essa posição foi consagrada como disciplina da Igreja no Código de Direito Canônico de 1917, que diz: “Os corpos dos fiéis defuntos devem ser sepultados, e sua cremação é proibida” (Cân. 1203, § 1). A Enciclopédia Católica, de 1908, explica que a cremação é “uma profissão pública da falta de religião e de materialismo”. 

Nada disso, porém, equivalia a uma censura doutrinal formal contra a cremação. Por isso o Papa Paulo VI pôde suspender de forma legítima a proibição da cremação em seu documento Piam et Constantem, de 1963. Como explica Scott Hahn, a instrução apostólica era uma concessão ao crescente número de cristãos que solicitavam a permissão da Igreja para realizar a cremação “por motivos de saúde, econômicos ou outras razões de ordem privada ou pública”. Mesmo assim, o sepultamento continuou normativo, como diz a instrução: “Devem ser tomadas todas as medidas para preservar a prática do reverente sepultamento do fiel defunto”. Os cristãos só poderiam agir de outro modo “quando forçados a fazê-lo por necessidade”.

Outros documentos da Igreja têm reiterado a relutante autorização de Paulo VI para a cremação. O novo Código de Direito Canônico, de 1983, explica que “a Igreja recomenda sinceramente a preservação do piedoso costume do sepultamento”, embora “não proíba a cremação”. Scott Hahn cita a escritora católica Patricia Snow, que afirma que a Igreja “encoraja, prefere veementemente e recomenda com sinceridade que os católicos continuem a piedosa e constante (piam et constantem) prática do sepultamento dos corpos dos fiéis defuntos”. Na verdade, depois que Snow escreveu isso, o Vaticano publicou em 2016 outro documento no qual recomendava “insistentemente” que o sepultamento era “acima de tudo a forma mais adequada de manifestar a fé e a esperança na ressurreição do corpo”. 

A Igreja não aprova a cremação; ela a permite. Porém, como no caso da doutrina da Igreja sobre a sexualidade, considerada por muitos rígida e intransigente, o caminho mais difícil é também o mais belo, humano e glorioso. O sepultamento cristão prega a ressurreição, a transformação e a glorificação do corpo humano. Diz Scott Hahn:

A cremação transmite lições sobre o corpo que são diretamente contrárias àquilo em que a Igreja realmente crê. Ela ensina que o corpo é descartável, que não é uma parte integral da pessoa humana. Além disso, ensina que o corpo perde o valor quando a alma se separa dele — que o corpo encerrou seu ciclo e não lhe resta mais nada. Não há ressurreição, transformação ou glorificação.

Sim, os católicos piedosos podem ser cremados em boa consciência. Talvez, em alguns casos, seja prudente ou até necessário fazê-lo. Mas estou com Scott Hahn. Quando eu morrer, quero que meu corpo seja uma mensagem flagrante de afirmação da vida eterna corpórea que Cristo conquistou para todos nós.

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