Se há uma coisa que ainda precisamos compreender bem e em toda a sua profundidade, é a ação transformadora, realmente transformadora, da graça de Deus na alma humana. Digo que precisamos compreender, na primeira pessoa, porque de modo geral até os católicos ignoramos a beleza da teologia da graça, que está presente não só nos bons escritos dos santos Doutores da Igreja, mas principalmente nas páginas do Santo Evangelho.

Para esclarecer as coisas, digamos desde o início qual é o erro que parece ter impregnado a mente das pessoas de nossa época e que precisamos combater com todas as nossas forças, especialmente nestes tempos de confusão moral: trata-se da visão protestante de justificação. Em que ela consiste, é o Pe. Boulenger quem nos explica:

Na opinião deles (Lutero, Calvino), o homem, desde o pecado original, está despojado do livre-arbítrio, e por isso incapaz de qualquer coisa boa, de modo que a fé sozinha, a fé sem obras, é o requisito único para a justificação. Acresce que esta fé, dos tais inovadores, não é a fé propriamente dita, pela qual cremos, por serem revelações de Deus, todas as verdades que a Igreja nos ensina, não. É uma confiança que nos leva a julgar perdoados pela imputação os nossos pecados, isto é, pela aplicação dos méritos de Jesus Cristo [...].

No sistema deles, pela justificação, os pecados não são verdadeiramente destruídos. São apenas vendados. Encobertos e ocultos pelos méritos de Jesus Cristo que nos são atribuídos. Não é nenhuma renovação intrínseca que a graça produz no homem justificado.

Essa justificação vem a ser, antes, uma espécie de sentença, uma proclamação que nos declara justos, se bem que, interiormente, não haja em nós mudança alguma [1].

Na prática, o que é essa “justificação” senão uma farsa, uma roupa bonita com que Deus veste o pecador só para lhe disfarçar a sujeira, as misérias e a podridão? É tão aberrantemente contrária ao espírito do Evangelho e da Nova Aliança essa forma de pensar que custa-nos crer que alguém lhe possa realmente dar crédito. O Jesus que tanto condenou a hipocrisia dos fariseus — cujos lábios e corações viviam fora de sintonia (cf. Is 29, 13) — torna-se nessa teologia miserável, Ele mesmo, um grande fariseu.

Mas, antes de apontar o dedo aos protestantes (pois não é a finalidade deste artigo), façamos nós mesmos, católicos, um exame de consciência, e vejamos bem se com nossas palavras e julgamentos não somos nós os primeiros a precisar de advertência e emenda.

Qual é a nossa reação, por exemplo, diante do bem e dos bons? Isto é, quando somos confrontados com a verdade do Evangelho, ou com alguém que procura vivê-la; quando nos deparamos com a vida de um santo, ou com uma pessoa que se esforça por viver os Mandamentos, ter uma vida de oração e lutar contra os próprios pecados… qual é normalmente a nossa postura? O que sai de nossa boca (ou em que tipo de pensamentos consentimos) quando o Cristo se apresenta diante de nós na forma de um ensinamento que nos constrange ou de uma pessoa que nos corrige, ainda que seja só com sua vida?

Talvez sejamos daqueles que dizem, meio que irrefletidamente: “Mas também não se pode ser tão radical assim”, ou: “Ninguém suporta, também, viver a religião assim, a ferro e fogo”. Talvez pensemos: “Religião não pode ser camisa de força”, ou achemos que as pessoas que procuram viver o Evangelho, no fundo, não passam de umas “reprimidas” e “recalcadas”. Talvez sejamos ainda piores e até já tenhamos teorias prontas sobre o interior e o passado dos outros: “O fulano fala e age assim agora, posa de santo, mas ele já fez isto e aquilo”; “O fulano se comporta assim agora, mas lá no fundo…” etc.

Ou seja, na cabeça de muitos de nós, qualquer pessoa que aparente ser um pouco melhor do que nós, um pouco mais esforçada do que nós, um pouco mais perfeita do que nós, já é motivo para darmos na língua e acharmos que é uma hipócrita. (No fundo, um artifício para que estejamos sempre “por cima”, para que nos sintamos sempre superiores.)

Pode até ser que não nos demos conta, mas por trás de todas essas ideias está escondida uma profunda falta de fé na santidade. No fundo, nós não acreditamos que as pessoas possam realmente ser transformadas pela graça. Para nós, elas sempre vão continuar as mesmas pecadoras miseráveis de sempre, mas disfarçadas com uma roupinha melhor aqui, um traje mais elegante acolá.

Ou seja, ao acusarmos de “hipócritas” e “farisaicas” as pessoas de igreja, na verdade, estamos revelando mais de nós mesmos do que daqueles a quem acusamos. Querendo enxergar o “fundo” do coração dos outros, nós estamos na verdade externando o que vai no fundo do nosso coração.

Talvez fosse necessário dizer a essas pessoas que nem todo o mundo é hipócrita como elas... Se é o seu caso, preste atenção: não é porque você acha os Mandamentos um fardo, não é porque você acha a religião um peso, que as pessoas são do mesmo modo. Há pessoas sinceras, que realmente querem a Deus, que realmente buscam a santidade, que realmente acreditam no Céu e querem viver por ele. E você, ao invés de desencorajar a piedade dos outros falando asneiras, faria muito melhor se entrasse na Igreja também, com o coração, ao invés de acusar as de dentro de estarem lá só de corpo presente.

Não que não haja hipócritas dentro de nossas igrejas. Certamente os há, certamente eles abundam. Mas quem está em condições de fazer esse juízo, apontando aos hipócritas um por um? E qual é a linha que separa um hipócrita, afinal, uma pessoa fingida e dissimulada, de um pecador que busca sinceramente conformar-se à vontade de Deus? Se tanto o fariseu quanto o publicano da parábola eram pecadores, por que Nosso Senhor elogiou a este e reprovou a conduta daquele (cf. Lc 18, 9-14)?

A resposta é simples: enquanto o publicano teve a humildade de reconhecer a própria miséria e saber-se necessitado da graça divina, o fariseu era cheio de si, autossuficiente demais para precisar de Deus. E talvez nós, com nossa soberba e arrogância, estejamos enveredando pelo mesmo caminho, pois, aparentemente, os esforços que os outros fazem no caminho da santidade não são necessários para nós, não é preciso ser tão “ferrenho” assim no seguimento da santidade…

Daí o fato curiosíssimo de algumas pessoas sentirem “alergia” só de ouvirem falar de “perfeição” e de “santidade”. Elas acham que está demais esse discurso. “Tem gente demais querendo ser perfeito”, talvez elas pensem.

Mas não, elas estão erradas. O que está em alta, ainda, não são os cristãos que querem ser perfeitos. (Chegaremos lá, se Deus quiser.) Hoje, infelizmente, o que abundam são cristãos medíocres, que não querem de jeito nenhum ser perfeitos. E é a esses que cabe puxar as orelhas, ao invés de desencorajar os católicos praticantes que, sendo imperfeitos, querem pelo menos abandonar o pecado e fazer-se santos por graça de Deus.

Em tempos de mornidão espiritual como os nossos, nos quais a mediocridade parece ter-se transformado em “regra de perfeição”, nunca é demais recordar o ensinamento tradicional da Igreja e dos Santos Padres de que, na vida espiritual, não progredir é regredir, pois é dever de todo cristão multiplicar o talento recebido, fazer brotar a semente plantada por Cristo e esforçar-se, numa palavra, por crescer dia a dia na caridade. Ouçamos o que nos diz a este respeito São Bernardo de Claraval:

Viu Jacó na escada anjos a subir e anjos descer. Mas viu acaso algum deles parado ou sentado? O parar-se no degrau desta frágil escada e na incerteza desta vida mortal não é, de forma alguma, permanecer imóvel no mesmo lugar. Não temos aqui morada permanente, nem possuímos ainda a futura, senão que nos dirigimos a ela. Não há remédio: é necessário ou que subas ou que desças; se tentares parar, é forçoso que caias. Não pode, em absoluto, ser chamado de bom quem não deseja ser melhor, pois quando começas a não querer melhorar, é então que deixas de ser bom (Epist. 91 [PL 182, 224]; cf. também Santo Agostinho, Sermão 169, 18).

“Quando começas a não querer melhorar, é então que deixas de ser bom”. Não nos esqueçamos nunca que “é uma luta a vida do homem sobre a terra” ( 7, 1), e que é só combatendo dia após dia contra nós mesmos, contra nossas más inclinações, contra nossa hipocrisia, sim — porque até que nos tornemos de Deus por inteiro, todos somos uma farsa em alguma medida —, só assim é que poderemos ganhar aquela paz que não nos pode dar o mundo, aquela tranquilidade de consciência que só experimentam os que vivem em Cristo.

Não é verdade, pois, que “o jogo já está ganho” — como deduzem os protestantes, tirando as consequências práticas de sua visão farisaica de justificação, e como muitos católicos fazem crer hoje em dia, desacreditados que estão da santidade. A santa liturgia ensina-nos justamente o contrário, quando canta a Jesus Ressuscitado, na Páscoa: “Tu nobis, victor rex, miserere! — Tu, rei vitorioso, tem piedade de nós!” Ora, se é vencedor o nosso rei, se derrotou o demônio, o pecado e a morte, por que pedir-lhe misericórdia? É que a vitória de Cristo já está garantida, mas a nossa perseverança não. E como só quem perseverar até o fim será salvo (cf. Mt 10, 22)... ninguém está dispensado de vigiar e orar.

Referências

  1. Boulenger, Doutrina Catholica: Manual de Instrucção Religiosa para uso dos Collegios e Catechistas voluntarios, v. 3. Livraria Paulo de Azevedo & Cia., pp. 19-20.

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