Nos calendários do rito bizantino e do rito romano antigo, celebra-se no dia 15 de janeiro a festa de São Paulo, o Primeiro Eremita, um anacoreta egípcio cuja vida São Jerônimo escreveu por volta do ano 375 d.C., só 15–20 anos depois de sua morte, aos 113 anos de idade. [N.T.: Trata-se da obra Vita Sancti Pauli primi eremitæ, “Vida de São Paulo, primeiro eremita” (PL 23, 17-28).]

Segundo a narrativa de Jerônimo, Paulo era natural da cidade de Tebas (na tradição bizantina ele é chamado de “Paulo, o Tebano”) e, aos 16 anos, com a morte dos pais, recebeu uma grande herança. Na época, intensificava-se a perseguição dos cristãos sob os Imperadores Décio (249–51) e Valeriano (253–60) [i], a irmã de Paulo havia recém casado e o marido pensou em apoderar-se da herança [da família] entregando o jovem cunhado às autoridades.

Paulo então fugiu para o deserto, onde encontrou uma gruta no sopé de uma montanha rochosa; até hoje, há um mosteiro copta com o seu nome no deserto oriental do Egito, no lugar desta gruta, cerca de 160 quilômetros a sudeste de Cairo e a 10 quilômetros do Mar Vermelho. São Jerônimo diz que a gruta era “como um grande salão, aberto para o céu, mas sombreado pelos largos ramos de uma palmeira antiga”, e que havia no seu interior uma corrente de água. Paulo logo “se apaixonou por aquela morada, como se fosse um presente que Deus lhe oferecia”, e assim permaneceu ali até ao fim de sua vida, em oração e solidão, sendo a palmeira sua única fonte de alimento e de vestuário. Jerônimo passou muito tempo entre monges e anacoretas, em diferentes partes do mundo mediterrânico, e para os que acham incrível que um homem possa viver assim, ele invoca “Jesus e os seus santos anjos para dar testemunho” de que ele conheceu pessoalmente, na Síria, monges que viviam em condições igualmente austeras.

“São Paulo, o Primeiro Eremita”, por José de Ribera (1591-1652). Esta representação do santo é muito semelhante à de São Jerônimo no período da Contrarreforma, com a diferença de que Paulo está coberto por ramos de palmeira, enquanto o santo Doutor usa as vestes vermelhas, tradicionais de um cardeal.

A maior parte do livro (capítulos de 7 a 16) é dedicada ao encontro entre Paulo e Santo Antão, Abade, a quem o Oriente chama tradicionalmente “Santo Antão, o Grande”. O encontro se deu quando o primeiro estava muito próximo do fim de sua vida e o segundo já tinha 90 anos. No Ocidente, a festa de São Paulo era celebrada a 10 de janeiro antigamente, uma semana exata antes da festa de Antão, justamente para simbolizar que ele o precedia na vida monástica; com a reforma tridentina, a data foi tirada da oitava da Epifania e transferida para a sua data bizantina. [N.T.: No atual Martirológio Romano, o eremita São Paulo voltou para o dia 10 de janeiro, sendo possível celebrá-lo neste dia no Novus Ordo Missæ.]

Jerônimo nos conta que, um dia, enquanto Antão pensava não haver no deserto nenhum outro monge antes dele, foi-lhe revelado em sonho que havia um, sim, muito mais perfeito, e que ele devia ir visitá-lo [ii]. Apesar de não lhe ter sido revelado o nome do homem nem o local de sua residência, Antão partiu imediatamente à sua procura, guiado primeiro por um centauro, que lhe indicou o caminho para o homem de Deus, e depois por um sátiro. Jerônimo afirma que o primeiro pode ter sido uma das criaturas selvagens que habitam o deserto, ou um demônio disfarçado, enviado para aterrorizar Antão (o qual teve muitas visões semelhantes ao longo de sua vida), mas o espírito mau foi afugentado pelo sinal da Cruz que o santo fez sobre si mesmo. Todavia, o sátiro realmente falou com Antão e confessou-lhe que os gentios, no seu erro, adoravam criaturas como ele, mas que ele era um mortal. Então, falando em nome do seu povo, ele disse: “Pedimos-te, em nosso nome, que implores o favor do teu e nosso Senhor, o qual, como aprendemos, veio para salvar o mundo”.

“Visita de Santo Antão a São Paulo”, por Matthias Grünewald. Obra integrante do famoso Retábulo de Isenheim.

Por fim, ele foi conduzido à gruta por uma loba e, ao finalmente encontrar Paulo, saudaram-se pelo nome, embora nunca tivessem visto antes um ao outro. Enquanto conversavam, chegou um corvo que, durante muitas décadas, trazia todos os dias meio pão a Paulo, e que desta vez trazia um pão inteiro, ao que Paulo exclamou: “Eis que o Senhor, veramente pio e misericordioso, enviou-nos uma refeição. Há sessenta anos que recebo sempre meio fragmento de pão, mas, com a tua vinda, Cristo duplicou o suprimento dos seus soldados”. Esse episódio é mencionado no Cânon Bizantino para a sua festa: “Ó pai, alimentado com o pão celeste pelo ministério de um corvo, assim como Elias outrora, vós fugistes da Jezabel dos sentidos sob a proteção de Cristo”.

Mais tarde, Paulo revelou a Antão que sabia estar bem próxima a hora de sua morte. Mandou-o, pois, regressar aonde morava, para buscar um manto que havia recebido de Santo Atanásio, e que ele devia trazer e usar para enterrar o corpo de Paulo. Chorando, Antão despediu-se dele e voltou ao seu mosteiro para buscar o manto; quando os dois discípulos que o acompanhavam lhe perguntaram onde tinha estado nos últimos dias, ele respondeu: “Ai de mim, pecador, que falsamente trago o nome de monge. Eu vi Elias, eu vi João no deserto e, verdadeiramente, eu vi Paulo no Paraíso”. Esta última visão refere-se às palavras do Apóstolo, homônimo de Paulo, que “foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis que não é lícito (ou possível) a um homem proferi-las” (2Cor 12, 4); mas também se refere a Antão, que, interpelado a esclarecer o que dissera, respondeu só: “Há tempo de calar, e tempo de falar” (Ecle 3, 7). 

“São Paulo, Eremita, e Santo Antão, Abade”, por Jodocus van Hamme.

Ao regressar com o manto, porém, Antão viu de longe a alma de Paulo subindo para o céu, ao que ele se prostrou e lamentou a partida do amigo. Quando chegou à gruta, encontrou Paulo de joelhos, em posição de oração. Pensando que ele estivesse vivo de alguma forma, ele se pôs de joelhos junto ao santo, mas só para perceber que, “pelo ofício de sua postura, até o cadáver do santo estava rezando a Deus, para quem vivem todas as coisas” [iii]. 

Levou para fora então o corpo, a fim de enterrá-lo, “cantando hinos e salmos segundo a tradição cristã” [iv], mas não pôde cavar a sepultura pois não havia pá. Esse serviço foi prestado por dois leões que saíram do deserto, cavaram a sepultura com as garras e não se afastaram até que fossem abençoados por Antão. Quando saiu do local, este levou consigo a túnica que Paulo havia tecido para si com folhas de palmeira, e passou a usá-la todos os anos, na Páscoa e em Pentecostes.

No comentário oficial à reforma pós-conciliar do calendário dos santos, publicado em 1969 pela Typis Polyglottis Vaticanis, o trecho sobre São Paulo afirma que sua festa “é deixada aos calendários particulares, porque encontram-se muitas dificuldades no que diz respeito ao caráter histórico da (sua) vida escrita por São Jerônimo” [v]. Certamente isso se refere não só aos elementos mais fantásticos da história, como o centauro e o sátiro, mas também ao elemento milagroso em geral, que a reforma moderna minimiza ou elimina do culto dos santos em quase todas as ocasiões [vi]. Esta me parece uma forma de pensar muito rasa e terrivelmente moderna. Nos milagres relatados por Jerônimo, como o do corvo ou o dos leões, ou o reconhecimento mútuo entre os dois santos em seu primeiro encontro, não há nada de particularmente absurdo para quem acredita na realidade dos milagres e da providência de um Deus amoroso.

Capitel da Abadia de Santa Maria Madalena em Vézelay, na França, retratando o cortejo fúnebre de São Paulo, Eremita.

Quanto ao centauro e ao sátiro, mesmo que desconsideremos a suposição de que o primeiro possa ter sido uma espécie de aparição sobrenatural, São Jerônimo certamente não era o único homem culto da Antiguidade a acreditar em tais coisas. Plínio, o Velho, por exemplo, escreve em sua História Natural (6.3): “Cláudio César escreve que um hipocentauro nasceu na Tessália e morreu no mesmo dia; e no seu reinado nós vimos, de fato, um que lhe foi trazido do Egito, conservado em mel”. Ele também aponta os “sátiros” como uma das muitas tribos que se encontram na África (5.8); a descrição que faz deles, no entanto, está longe de ser a mais estranha apresentada neste capítulo. 

Será mesmo que é assim tão difícil supor que o relato de Jerônimo sobre o sátiro — como sendo um “homúnculo com o nariz adunco [em forma de gancho], tendo chifres na testa e pés de cabra na extremidade do corpo” [vii] — não passa de uma descrição exagerada, pré-científica e de segunda mão, referindo-se [simplesmente] a um homem de estatura muito pequena e aparência exótica? E, indo mais direto ao ponto: por que é que os “fracassos” de um homem dessa época no domínio das ciências naturais — que foram fracassos da época, não do homem — deveriam nos fazer desconsiderar a sua capacidade e credibilidade como biógrafo de seus semelhantes?

Ao escrever sobre algumas propostas bastante radicais feitas no século XIX para reformar a vida dos santos no Breviário, o Padre Pierre Batiffol faz a seguinte citação de um estimado contemporâneo seu, o liturgista Dom Alexandre Grospellier: 

É, na minha opinião, fazer uma ideia errada do Breviário exigir dele o rigor científico de uma coleção de hagiografia crítica. Certas legendas tornaram-se herança da tradição cristã, não em virtude da sua certeza histórica, mas porque exprimem uma piedade viva e fervorosa em relação aos santos. Elas influenciaram o modo de pensar, sentir e rezar dos nossos antepassados, e chegam até nós carregadas de uma vida espiritual que por vezes é caracterizada, de fato, pela simplicidade, mas muitas vezes está cheia de força e quase sempre é capaz de tocar o coração. Estas legendas pertencem, portanto, à história da Igreja, do mesmo modo que as lendas e canções pertencem à história dos povos. Seria uma espécie de vandalismo bani-las completamente dos livros litúrgicos, assim como seria vandalismo quebrar os vitrais das catedrais ou rasgar as telas dos primeiros mestres, sob o argumento de que as representações nestes vitrais ou quadros não são documentos históricos exatos, como uma carta ou uma epígrafe [viii].

Notas

  1. No original, o autor acrescenta que “Jerônimo dá exemplos particularmente terríveis da virulência da perseguição narrando a morte de dois mártires não identificados”. Tais relatos encontram-se na Legenda Áurea, a 15 de janeiro: “Por essa mesma altura [no ano do Senhor de 256], foram presos dois jovens cristãos, a um dos quais untaram todo o corpo com mel, para o exporem ao calor do Sol e ser picado pelos ferrões das moscas e das vespas; o outro foi deitado numa cama muito macia e colocado num local muito ameno, onde se sentia uma agradável temperatura ambiente, o murmúrio dos rios, o canto das aves e o perfume das flores. Depois, ataram-no com cordas entrelaçadas de flores, de modo que não pudesse servir-se das mãos nem dos pés. Aproximou-se então dele uma jovenzinha, de corpo lindo, mas impudica, que impudicamente acariciou o jovem inflamado no amor de Deus. Quando começou a sentir na carne movimentos contrários à razão, como não tinha armas com que se opusesse ao inimigo, cortou a sua própria língua com os dentes e cuspiu-a à cara da impudica e, afugentando assim a tentação com a dor, mereceu um troféu digno de todo o louvor” (Beato Tiago de Voragine, “São Paulo, Eremita”. In: Legenda Áurea: A vida dos Santos. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2023, p. 133). (N.T.)
  2. A redação original, segundo a qual Antão pensava não haver nenhum monge “melhor ou mais perfeito que ele”, é controversa: na própria Patrologia do Pe. Migne há uma nota especulando sobre outros sentidos possíveis para esse trecho. A Legenda Áurea diz que, “no tempo em que Santo Antão se julgava o primeiro monge eremita, foi-lhe revelado em sonhos que morava no deserto um outro muito melhor do que ele” (Beato Tiago de Voragine, op. cit., p. 133). Demos preferência aqui a essa tradução. (N.T.)
  3. Em latim: etiam cadaver sancti Deum, cui omnia vivunt, officio gestus precaretur. É tentador pensar que esta passagem, a primeira ocorrência na literatura latino-cristã da frase cui omnia vivunt, pode ter inspirado a antífona do Invitatório para o Ofício dos Defuntos: Regem, cui omnia vivunt, venite, adoremus — “Vinde, adoremos o Rei, para quem vivem todas as coisas”. (N.A.)
  4. Em latim: hymnos quoque et psalmos de Christiana traditione decantans. Esta passagem é um testemunho importante de que, em meados do século IV, quando Jerônimo era muito jovem, e Paulo e Antão muito velhos, já existia uma espécie de rito fúnebre distinto das demais orações da Igreja. (N.A.)
  5. Em latim: Memoria S. Pauli, sæculo XII in Calendario romano ascripta, Calendariis particularibus relinquitur: multæ enim inveniuntur difficultates sub respectu historico de Vita S. Pauli a S. Hieronymo conscripta (Calendarium Romanum, p. 112). (N.T.)
  6. Para dar apenas um dos inúmeros exemplos possíveis, a Coleta original para a festa de São Francisco Xavier começava com: Deus, qui Indiárum gentes beáti Francísci prædicatióne et miráculis Ecclésiæ tuæ aggregáre voluísti — “Ó Deus, que quisestes, pela pregação e milagres do bem-aventurado Francisco, acrescentar à vossa Igreja os povos das Índias…”; como santo canonizado depois de Trento, esta foi a única Coleta dele que existiu. Agora, no Novus Ordo, ela começa assim: Deus, qui beáti Francísci prædicatióne multos tibi pópulos acquisísti — “Ó Deus, que, pela pregação do bem-aventurado Francisco, adquiristes para Vós muitos povos…” (N.A.).
  7. Em latim: homunculum… aduncis naribus, fronte cornibus asperata, cujus extrema pars corporis in caprarum pedes desinebat. (N.T.)
  8. History of the Roman Breviary, p. 314 da edição inglesa publicada pela Longman, Green and Co., 1912; nota de rodapé 3, citando Dom Alexandre Grospellier, De l’état actuel des livres liturgiques et de leur revision (Roma, 1911), p. 34. (N.A.)

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