Muitos séculos antes de Cristo, Aristóteles registrou a seguinte observação em sua Ética a Nicômaco: “Os filhos parecem ser um vínculo de união. Logo, casais estéreis se separam mais facilmente, pois os filhos são um bem comum às duas partes, e o que é comum preserva a amizade” [1]. No século XIII, Santo Tomás de Aquino fez o seguinte comentário a essa passagem: 

Em seguida, [Aristóteles] indica um meio de fortalecer essa amizade [do matrimônio]. Ele observa que os filhos parecem ser causa de uma união estável e duradoura. Logo, casais estéreis se separam mais facilmente. De fato, no passado, o divórcio era concedido por causa da esterilidade. A razão disso é que os filhos são um bem comum ao marido e à mulher, cuja união existe pelo bem dos filhos. Mas o que é comum continua e preserva a amizade, que também consiste em compartilhar (communicatio), como foi dito.

O Papa João Paulo II, um filósofo da moral muito familiarizado com Aristóteles e Santo Tomás, parece ter pensado justamente nisso quando escreveu o seguinte em sua Carta às Famílias

No recém-nascido realiza-se o bem comum da família. Assim como o bem comum dos esposos se cumpre no amor esponsal, pronto a dar e a acolher a nova vida, do mesmo modo bem comum da família se realiza mediante o mesmo amor esponsal concretizado no recém-nascido (n. 11).

Nem o filósofo iluminista Baruch Spinoza (1632-1677) — um moderno obstinado que afirmou que as coisas não agem por natureza com vistas a um fim e que as causas finais são produtos de nossa fantasia — foi capaz de negar em sua Ética que o matrimônio está inerentemente ligado aos filhos [2]. Foi como se os próprios fatos o forçassem a dar assentimento:   

Com relação ao matrimônio, certamente está em conformidade com a razão o fato de que o desejo de união física pode não ser provocado apenas pela beleza corporal, mas também pelo desejo de gerar filhos e educá-los; e mais ainda: o amor entre os dois, isto é, entre homem e mulher, pode não ser causado apenas pela beleza corporal, mas também pela liberdade da alma.   

Portanto, não estamos completamente despreparados para a observação um tanto ácida de Blaise Pascal (1623-1662), extraída de seus Pensamentos, segundo a qual os filhos são um bem tão grande para o matrimônio, que os casais que os evitam de forma egoísta são piores do que os fornicadores:

Não é a bênção nupcial [da Igreja] que remove o pecado da procriação, mas o desejo de gerar filhos para Deus, o que só é genuíno no matrimônio… As filhas de Ló, por exemplo, que só queriam ter filhos, eram mais puras sem o casamento do que as pessoas casadas que não desejam ter filhos.

Qual é o problema com essa falta de desejo? O que ela nos diz? Poderíamos começar com as incisivas observações de Gabriel Marcel, que descreve em sua obra Homo Viator a contradição da contracepção:

Os defensores do controle de natalidade alegam, de forma mais ou menos sincera, que é por piedade que se recusam a dar aos seus descendentes a chance de existir; mas ainda assim não podemos deixar de observar que essa piedade concedida a um custo baixo, não a seres vivos, mas a uma ausência de ser ou ao nada, é vista juntamente com uma oportunidade suspeitosamente positiva de satisfazer ao mais cínico egoísmo. Além disso, dificilmente ela pode ser separada de uma filosofia empobrecida que mede o valor da vida humana pelos prazeres e conveniências que proporciona.  

O que Marcel está fazendo é apontar o egoísmo inerente ao desejo de “manter o casamento apenas para nós dois”. Isso é contrário à sua própria natureza, que é boa, já que as coisas boas são feitas para ser compartilhadas, disseminadas, multiplicadas e perpetuadas. Se não quisermos multiplicar os pães e peixes que Deus nos deu uma capacidade natural de multiplicar, faremos passar fome a nós mesmos e aos outros. Se não buscarmos uma imagem viva de nosso amor, por meio da qual ele possa transcender a si mesmo e demandar ainda mais amor, levantaremos propositalmente uma barreira para o amadurecimento da amizade, o aumento das virtudes e o crescimento de nossa humanidade. Em suma, isso é autoparalisação, autoisolamento, autoimplosão. Tudo gira ao redor de um dos cônjuges. O pouco de atenção que sobra para o outro só serve para suprir as necessidades de uma das partes, não sobrando nada para mais ninguém [3]. Não à toa Aristóteles e Santo Tomás consideram esse tipo de relação instável e prestes a desintegrar-se.

É verdade que essa descrição só se aplicaria plenamente àqueles que estão tomados por uma mentalidade antifamília extrema, o que infelizmente parece estar se alastrando pelo Ocidente nos dias de hoje. Mas esse é o ponto mais baixo, o caso limite de uma tendência de pensamento e sentimento que não consegue enxergar (ou se recusa a fazê-lo) o quanto o amor esponsal é literalmente “corporificado na criança recém-nascida”

A sabedoria da Igreja Católica é muito diferente da loucura do mundo. Sua doutrina inspira, desafia e consola. Na encíclica Casti Connubii, o Papa Pio XI expressa essa sabedoria: 

Acresce que Deus quis que os homens fossem gerados, não somente para que existam e encham a terra, mas, muito mais, para que sejam adoradores de Deus, o conheçam e amem e, enfim, dele fruam perenemente nos céus. Este fim, em razão da admirável elevação do homem à ordem sobrenatural por Deus, supera tudo o que o olho viu, e o ouvido ouviu e o coração do homem concebeu (cf. 1Cor 2, 9). Daí se vê facilmente o quanto a prole, nascida pela onipotente virtude de Deus, cooperando para isso os cônjuges, é dom da divina bondade e fruto egrégio do matrimônio.

Que modo privilegiado de compartilhar o maior dos bens — batizar filhos e filhas, educá-los no temor e no amor a Deus e pô-los no caminho da vida eterna com Ele e todos os santos —, e fazê-lo como casal, como família!

Notas

  1. Quem se der ao trabalho de ler o texto completo, perceberá que a crítica do autor não é aos casais naturalmente estéreis ou com dificuldades para procriar, mas àquelas pessoas que escolheram, deliberadamente, fechar o seu casamento à geração da vida (N.T.).
  2. A caracterização de Spinoza como um filósofo do Iluminismo é historicamente imprecisa, mas já nele se encontram muitos elementos típicos dos “ilustrados” (N.T.).
  3. No original: It is all about me, a little about you inasmuch as you serve my perceived needs, and nothing about anyone else. Traduzindo literalmente, “é tudo sobre mim, um pouco sobre você (na medida em que sirva às minhas necessidades) e nada sobre mais ninguém” (N.T.).

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