Todos os anos, nos ritos ocidentais da Igreja Católica, o aniversário ou natividade de São João Batista, Precursor do Senhor, é celebrado em 24 de junho, exatamente seis meses antes do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. A explicação mais simples que existe para a data está no fato de que, como diz o St. Andrew’s Daily Missal,  “no Evangelho de 25 de março lemos que o anjo Gabriel anunciou a Maria que, três meses depois [i.e., final de junho], Isabel, em virtude de um milagre divino, teria um filho”.

Mas há também uma explicação alegórica que é dada por todos os comentadores litúrgicos ao longo dos séculos. Como disse o próprio João a respeito do Messias: “Importa que Ele cresça, e eu diminua” (Jo 3, 30). Justamente por volta do Natal, no hemisfério norte, cai o menor dia do ano, quando a escuridão está no ápice; depois disso, a luz passa a aumentar gradativamente. De modo semelhante, bem perto do nascimento de São João cai o dia mais longo do ano, após o qual a luz — a luz de João — começa a diminuir [1]. O próprio ciclo da natureza proclama a relação correta entre o Filho e Verbo de Deus e todos os seus discípulos, seja qual for a grandeza deles.

Quem estuda a história da liturgia, da arquitetura e da arte como um todo, se surpreende ao perceber a magnitude da devoção tradicional ao Batista, o maior de todos os profetas, ao longo de todos os séculos da Igreja, em terras seja do Oriente, seja do Ocidente. Na Europa, havia milhares de igrejas dedicadas a ele, bem como esculturas e inumeráveis vitrais, pinturas de todo gênero. Dos padroeiros locais, ele era um dos mais populares. Depois da Virgem Maria, praticamente não existe um santo que seja tão invocado quanto ele.

A evidência desta devoção pode ser vista no rito romano tradicional. Além de duas festas em sua honra — uma das quais (a Natividade) tem também um Missa de Vigília própria —, em toda e cada celebração da Missa Tridentina ele é invocado seis vezes no Confiteor triplo [2]; de novo na grande oração Suscipe, Sancta Trinitas ao final do Ofertório; uma vez mais no Cânon Romano; e, finalmente, no último Evangelho. Isso significa nove vezes toda Missa. Antes de 1962, São José, em comparação, não era mencionado nem uma vez sequer no Ordinário da Missa.

O texto do Confiteor tradicional é como segue:

Confíteor Deo omnipoténti, beátæ Maríæ semper Vírgini, beáto Michaéli Archángelo, beáto Ioánni Baptístæ, sanctis Apóstolis Petro et Paulo, ómnibus Sanctis, et tibi, Pater: quia peccávi nimis cogitatióne, verbo et opere: mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. Ideo precor beátam Maríam semper Vírginem, beátum Michaélem Archángelum, beátum Ioánnem Baptístam, sanctos Apóstolos Petrum et Paulum, omnes Sanctos, et te, Pater, orare pro me ad Dóminum, Deum nostrum. — “Confesso a Deus todo-poderoso, à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos Apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos e a vós, padre, que pequei muitas vezes por pensamentos, palavras e obras, por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa. Portanto, rogo à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos Apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos e a vós, padre, que rogueis por mim a Deus Nosso Senhor”.

A oração Suscipe diz:

Súscipe, sancta Trínitas, hanc oblatiónem, quam tibi offérimus ob memóriam passionis, resurrectiónis et ascensiónis Iesu Christi Dómini nostri: et in honórem beátæ Maríæ semper Vírginis, et beáti Ioánnis Baptístæ, et sanctórum Apostolórum Petri et Pauli, et istórum, et ómnium Sanctórum: ut illis proficiat ad honórem, nobis autem ad salútem: et illi pro nobis intercédere dignéntur in cælis, quorum memóriam ágimus in terris. Per eúndem Christum Dóminum nostrum. Amen. — “Recebei, Trindade Santa, esta oblação, que Vos oferecemos em memória da Paixão, Ressurreição e Ascensão de Jesus Cristo nosso Senhor, e em honra da bem-aventurada sempre Virgem Maria, de S. João Batista, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, destes (cujas relíquias aqui estão) e de todos os Santos; seja para honra deles e salvação nossa, e por nós se dignem interceder no céu aqueles cuja memória celebramos na terra. Pelo mesmo Jesus Cristo Senhor nosso. Amém”.

Quão poderoso é recordar — e quantas vezes isto é esquecido! — que o santo sacrifício da Missa é oferecido não só “em memória da Paixão, Ressurreição e Ascensão de Jesus Cristo, nosso Senhor”, mas também “em honra da bem-aventurada sempre Virgem Maria, de São João Batista, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo… e de todos os Santos”. 

A menção, uma vez mais, dos dois padroeiros da Igreja de Roma nos lembra que, apenas cinco dias depois da Natividade de João, em 29 de junho, vem a solenidade de São Pedro e São Paulo, cujos nomes, como o do Batista, são mencionados nove vezes cada um no Ordinário da Missa Tridentina; seis vezes no Confiteor triplo; uma vez aqui no Suscipe; outra no Cânon; e uma última no embolismo depois da Oração do Senhor [3]. Para os que entendem de numerologia, 9 é um número especial, pois honra a Santíssima Trindade (3+3+3 ou 3x3) — como o Kyrie repetido nove vezes no rito original da Missa [4].

O Cânon Romano menciona o Batista na segunda lista de santos, após a Consagração: 

Nobis quoque peccatóribus fámulis tuis, de multitúdine miseratiónum tuárum sperántibus, partem áliquam et societátem donáre dignéris, cum tuis sanctis Apóstolis et Martýribus: cum Ioánne, Stéphano, Matthía, Bárnaba, Ignátio, Alexándro, Marcellíno, Petro, Felicitáte, Perpétua, Agatha, Lúcia, Agnéte, Cæcília, Anastásia, et ómnibus Sanctis tuis: intra quorum nos consórtium, non æstimátor mériti, sed véniæ, quaesumus, largítor admítte. Per Christum, Dóminum nostrum. — “A nós também, pecadores, vossos servos, confiados nas vossas infinitas misericórdias, dignai-Vos conceder entremos a fazer parte da sociedade dos vossos Santos Apóstolos e Mártires, João, Estêvão, Matias, Barnabé, Inácio, Alexandre, Marcelino, Pedro, Felicidade, Perpétua, Águeda, Luzia, Inês, Cecília, Anastácia e de todos os vossos Santos, em cujo consórcio Vos pedimos nos admitais com vossa liberalidade, não já em consideração dos nossos méritos, mas sim pela vossa indulgência. Por Jesus Cristo Senhor nosso”.

Que aquele “João”, aqui, não seja ninguém menos que o Batista, é reconhecido por todos os comentadores litúrgicos [5].

O último Evangelho [6], tirado do Prólogo de São João, inclui estas palavras (Jo 1, 6-8):

Fuit homo missus a Deo, cui nomen erat Ioánnes. Hic venit in testimónium, ut testimónium perhibéret de lúmine, ut omnes créderent per illum. Non erat ille lux, sed ut testimónium perhibéret de lúmine. — “Apareceu um homem enviado por Deus, cujo nome era João. Veio como testemunha, para dar testemunho da Luz, a fim de todos acreditarem por seu intermédio. Ele não era a Luz, mas veio para dar testemunho da Luz”.

Quão triste é refletir sobre o fato de que, nos dias de hoje, em praticamente todas as celebrações do Novus Ordo, o nome de São João Batista, o maior dos homens nascidos de mulher, não é mencionado uma única vez sequer. (O único momento em que ele seria mencionado é no Cânon Romano, se este fosse escolhido ad libitum, isto é, “a gosto [do sacerdote]”.) É o tipo de coisa que os tradicionalistas têm em mente quando falam das diferentes espiritualidades das “formas” antiga e atual da Missa. A visão de mundo devocional dos que participaram da criação de Paulo VI não é a mesma de nossos predecessores na fé e dos que mantêm a forma tradicional de culto [7]. Graças a Deus, está sendo dado a conhecer a cada vez mais católicos o imenso valor que há em reconectar-se ao próprio patrimônio: a lex orandi e a lex credendi da Igreja Romana através dos séculos.


Atualização [14 de fevereiro de 2022]: O que mudou após o documento Traditionis Custodes, do Papa Francisco? Na prática, a celebração do chamado rito tridentino, ou de São Pio V, diminuirá a olhos vistos, devido às novas restrições que lhe foram impostas. O usus antiquior, no entanto, não foi extinto e, ainda que novas medidas restritivas sejam tomadas agora ou no futuro, permanece o valor espiritual e cultural da Missa que por tanto tempo a Igreja celebrou — como um farol a iluminar o nosso caminho ainda hoje. Para mais conteúdo sobre este assunto, consultar a homilia “Em que, afinal, devemos acreditar?” e a aula “Sacerdócio e vida de oração”.

Notas

  1. No hemisfério sul, acontece o contrário, mas a analogia, poderíamos dizer, é até mais bela e perfeita: aqui, por volta do dia do ano mais longo, nasce nosso Salvador, como “luz para as nações”; no mais curto dia, nasce São João Batista, aquele cuja luz deveria apagar-se, para que resplandecesse a de Cristo (N.T.). 
  2. No Missal de Paulo VI, o chamado Ato penitencial admite várias formas; mas no rito antigo a prescrição era que se rezasse o Confiteor — “Confesso a Deus todo-poderoso…”, — seguido do Kyrie. Mesmo o Confiteor atual, no entanto, omitiu os nomes de São Miguel Arcanjo, São João Batista, São Pedro e São Paulo, que eram repetidos duas vezes em cada recitação. Como essa oração era feita três vezes na liturgia — uma pelo sacerdote e outra pelo povo no início da Missa, e uma última pelo povo antes da Comunhão —, o nome de São João Batista, só com essa oração, era lembrado seis vezes (N.T.).
  3. Esse embolismo (acréscimo) é a oração Libera nos, quáesumus — “Livrai-nos de todos os males, ó Pai…”, rezada após o Pai-nosso. Trata-se de outra fórmula que, mesmo mantida no atual rito de Paulo VI, sofreu modificações. Antes, ela era rezada secretamente pelo sacerdote e incluía um pedido de intercessão a Nossa Senhora, a três Apóstolos: Pedro, Paulo e André, e a todos os santos (N.T.).
  4. O Kyrie, agora repetido seis vezes, antes era repetido nove (N.T.).
  5. Cf., v.g., Amleto Cicognani, The Saints Who Pray with Us in the Mass, Romanitas Press, 2017, p. 26.
  6. No rito antigo, em praticamente todas as Missas, após a bênção final, o sacerdote fazia a leitura de um último Evangelho: eram os primeiros versículos do evangelho de São João (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus…”). Toda a assembleia devia ouvir a proclamação de pé, como de costume. Também isso foi abolido na Missa nova (N.T.).
  7. Sobre isso, cf. Ao vivo com Padre Paulo, O problema com o Missal de Paulo VI (N.T.).

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