Pouquíssimos filmes registram o horror como o Apocalypto de Mel Gibson [i]. O filme é ambientado na decadente civilização maia. Nele vemos guerreiros maias invadindo vilas para sequestrar vítimas e levá-las de volta à sua cidade para que sejam evisceradas e decapitadas como oferendas ao seu deus.
As cenas de rituais brutais são uma clara lembrança de que desde o início da história o sacrifício tem sido um elemento essencial da religião. Arqueólogos e antropólogos nos dizem que em praticamente toda sociedade primitiva algum tipo de sacrifício era praticado.
A religião hebraica superou os cultos do antigo Oriente Próximo na medida em que evitava os sacrifícios humanos a Moloc e Baal, substituindo-os por sacrifícios de animais. Além disso, seu sistema de sacrifício estava ligado a uma compreensão mais sofisticada de religião. Para os hebreus, o sacrifício não era uma simples ação para apaziguar um deus inconstante. Em vez disso, os animais eram oferecidos a fim de obter reconciliação, perdão e paz.
Eis o Cordeiro
Como cristãos, nós não damos importância ao fato de esse sistema de sacrifícios ter sido suplantado pelo cristianismo. Contudo, continuamos a usar a linguagem do sacrifício quando dizemos: “Jesus morreu para nos salvar de nossos pecados”, ou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.
Uma típica pessoa moderna, com pouca ou nenhuma educação religiosa, poderia ter razão em ficar perplexa com essa linguagem. Poderia também perguntar: “Perdoe-me, mas o que você quer dizer ao afirmar que preciso ser salvo e que ‘Jesus morreu para me salvar dos meus pecados’? Como a execução de um revolucionário ocorrida há dois mil anos na Palestina pode apagar as coisas maliciosas que fiz? Ajude-me a entender isso.”
Se essa pessoa se atrevesse a ir a uma Missa católica, escutaria o sacerdote proclamar: “Eis o Cordeiro de Deus” e murmurar sobre “esta oblação, esta vítima santa, esta santa hóstia, esta hóstia imaculada” [ii]. Não seria inapropriado se esse membro da geração Y perguntasse: “Perdão, mas você está falando em sacrifício cruento, certo? Somos pessoas modernas. Já não fazemos mais essas coisas. E a menos que eu esteja enganado, você está falando de sacrifício humano, não? Por favor, não somos astecas nem membros da seita dos tugues, que arrancava os corações de suas vítimas e com a qual ficamos aterrorizados ao assistir ao segundo filme do Indiana Jones”.
Como um cristão responderia a essas objeções? Como mostramos a pessoas da era espacial a razoabilidade de uma religião da idade da pedra? O próprio alicerce da fé — o sacrifício de Cristo — tornou-se um obstáculo, e não um trampolim. Como podemos refutar essas perguntas óbvias e válidas?
O sótão eclesiástico da vovó
A resposta aos modernistas é simples. Os elementos mitológicos da religião eram bárbaros e supersticiosos. No final do século XIX, Max Muller, especialista em religiões comparadas, chamou o mito de “doença da linguagem”; na geração seguinte, Rudolf Bultmann, estudioso do Novo Testamento, concebeu o plano para “desmitologizar” o Novo Testamento.
Aplacar os deuses celestiais com sacrifícios cruentos fazia parte do antigo sistema mitológico da religião primitiva. As histórias sobre milagres bem como qualquer ideia relativa a um sistema sacrificial na religião tinham de ser relegadas ao sótão eclesiástico da vovó. Tais ideias selvagens e não científicas eram ultrapassadas. O mito e a cerimônia de sacrifício eram, ou completamente ignorados, ou renovados sob a forma de fábulas piedosas ou símbolos religiosos.
“Afinal”, pensavam os desmitologizadores, “o homem moderno não poderia aceitar um milagreiro que andou sobre as águas e alimentou cinco mil pessoas com o lanche de um garotinho. Hoje nós sabemos que andar sobre as águas é apenas uma história que fala sobre fé. E o milagre de alimentar cinco mil pessoas? Bem, o verdadeiro milagre foi a partilha!”
A ideia de sacrifício também foi reinterpretada para ser transformada apenas em um símbolo religioso superficial. “Na verdade, a carnificina, o derramamento de sangue e as carcaças queimadas sobre o altar tinham a ver o processo de se tornar uma pessoa melhor e mais gentil, com a dedicação de mais tempo, talento e riqueza para ajudar os pobres e tornar o mundo um lugar melhor”.
A máscara do modernismo
Ao esvaziar o cristianismo do sobrenatural, os teólogos modernos não apenas diluíram o vinho, mas apresentaram como religião algo que não é religião de modo algum. Como têm vergonha do sacrifício, do mito e do milagroso, substituíram a religião pelo ritual das boas obras respeitáveis… Os sacerdotes com seus sacrifícios podem ter eviscerado suas vítimas. Os teólogos modernos evisceraram a própria religião.
Desde o início dos tempos, a religião nunca teve por objetivo fazer com que as pessoas se tornassem legais e respeitáveis. Ela sempre esteve ligada a um terrível encontro com o sobrenatural. A religião era por natureza um intercâmbio com o outro lado, uma conexão com grandes poderes e com tudo o que estava ligado ao transcendente, ao cósmico, ao eterno e ao divino. Era um encontro entre os mortais e a imortalidade.
Os modernistas desprezaram tais conceitos primitivos, preferindo manter a moralidade e a cultura cristãs sem todo aquele disparate sobrenatural e confuso. Jogaram fora o bebê e ficaram com a água da banheira. Mas sem o sobrenatural a religião não é religião de modo algum. É apenas uma terapia idiota, uma vaga filosofia e um plano sentimental para a ação social.
O retorno dos deuses estranhos
Foi por isso que, com o declínio do protestantismo tradicional, vimos um aumento do interesse pela espiritualidade Nova Era e o ocultismo. As pessoas entendem que a religião trata de um encontro com um reino invisível, e quando sua igreja não proporciona tal experiência elas a procuram em outro lugar.
Esse anseio pela verdadeira religião é também a causa da popularidade dos filmes e da literatura de fantasia. A imaginação humana precisa do mito para alimentar sua busca por sentido. Filmes de super-heróis, literatura de fantasia e jogos eletrônicos alimentam o desejo pelo místico e pelo significado mítico.
Por isso creio que a pista para a evangelização em nossa cultura atual não está na negação do mito e do sacrifício, mas na renovação desses aspectos antigos e estranhos da religião. Em vez de ler os textos sagrados do cristianismo apenas como documentos históricos, deveríamos também extrair deles os poderosos significados míticos. O Evangelho é mito, como observou C. S. Lewis, “mas um mito que realmente aconteceu”.
Acredito que, junto com uma renovação da história, do drama e dos elementos míticos da religião, é vital que haja uma valorização do sacrifício.
René Girard e o bode expiatório
Começando por seu trabalho na crítica literária, o pensador francês René Girard explorou o perturbador mecanismo humano do “bode expiatório”, presente na cultura humana. Ele mostrou como nós projetamos nos outros o mal que se esconde em nosso próprio coração; também mostrou como — nos casos em que isso acontece em nível tribal — a multidão assassina a vítima escolhida por crer que solucionará o problema ao eliminar a sua causa.
O assassinato coletivo causa uma espécie de euforia na tribo, que o celebra com uma festa. Quando outro problema surge, os membros da tribo lembram-se do que parecia ser uma cura e procuram outra vítima. No final das contas, isso se transforma num assassinato ritual e a dádiva obtida com a solução do problema indica que os próprios deuses ficaram felizes com essa ação. Assim se desenvolve uma religião centrada no sacrifício ritual e se perpetua o interminável ciclo de sacrifício humano (e por extensão o sacrifício animal, que o substitui).
O fato de testemunharmos o bode expiatório em todo lugar na sociedade moderna dá vida a essa dinâmica doentia. Quer se trate de linchamentos e assassinatos de afro-americanos cometidos por policiais [iii] ou das violentas reações de protesto e tumulto — a mesma projeção e violência tribal ilustram a explicação de Girard. O fato de essa dinâmica doentia ocorrer em nível individual, coletivo, nacional e internacional enfatiza sua sombria realidade.
Longe de ser primitivo e ultrapassado, o sacrifício do bode expiatório é um conceito vital, intrigante e contemporâneo. Ele é um doloroso ponto de ligação entre o comportamento humano, a sociedade contemporânea e uma humanidade tão antiga quanto o Éden. Além disso, ela dá sentido ao símbolo central do cristianismo: o crucifixo.
Nós pregamos a Cristo crucificado
Não é coincidência o fato de parte da castração modernista do cristianismo incluir a reinterpretação e depreciação da Cruz de Cristo. A ação central da Redenção foi diluída até se tornar apenas um ato de martírio corajoso ou um símbolo do amor oblativo.
Mas é mais do que isso. Entendida corretamente, a crucifixão de Jesus Cristo explica o pecado do mundo — o doentio sistema sacrificial da violência na sociedade. A crucifixão de Cristo não apenas expõe a natureza do sistema do bode expiatório, mas também derrota esse sistema de dentro para fora. Numa operação mística, Jesus Cristo aceita a culpa, assume voluntariamente o papel de bode expiatório — o cordeiro —, e, ao ressuscitar, sufoca o “pecado do mundo” com um abraço.
Por isso São Paulo disse: “Pregamos a Cristo crucificado” (1Cor 1, 23), e: “Julguei não dever saber nada senão a Cruz de Cristo” (cf. 1Cor 2, 2). Essa é a imagem e a mensagem que atrai e tem o poder de responder às excelentes perguntas do cético moderno.
Além disso, esse sacrifício cósmico é perpetuamente vivo e relevante na Missa católica. Como é estranho o fato de ainda haver no mundo moderno uma religião global que pratica o sacrifício! É o catolicismo, pois em cada Missa o sacerdote torna presente de novo o único sacrifício da Cruz e o aplica às necessidades de hoje.
Por isso é tão importante a compreensão da Missa como sacrifício, e não como uma refeição familiar; por isso também é importante que o sacrifício seja oferecido com a cerimônia completa, o rito ancestral e a devida reverência… não só porque é digno e justo, mas também porque abre as portas para a verdadeira religião [iv].
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