Por que vai mal o Brasil? Poderíamos responder essa pergunta de várias formas e a partir de vários pontos de vista. Mas, nesta breve matéria — com a qual queremos que você, brasileiro, tome consciência da altíssima vocação a que fomos chamados — procuraremos olhar simplesmente para a história do nosso descobrimento a partir de um breve relato, do Frei Vicente do Salvador, em sua obra “História do Brasil”, de 1627:
O dia em que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz […] era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra que havia descoberto de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha sobre os desta terra, trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de cor abrasada e vermelha e com que se tingem panos, ao invés do daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre o qual ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada, como sabemos.
Talvez por isso, ainda que ao nome de Brasil tenham ajuntado o de estado, e lhe chamaram estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que, não havendo ainda hoje, quando isto escrevo, 100 anos que se começou a povoar, alguns lugares já vão se despovoando e, mesmo sendo a terra tão grande e fértil, […] nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.
Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores. Aos reis, pelo pouco caso que haviam feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois, intitulando-se senhores da Guiné, por uma caravelinha que lá vai, e vem — como disse o Rei do Congo —, do Brasil não se quiseram intitular; nem depois da morte do rei D. João III, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos. Deste mesmo modo se portaram os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estivessem, e mais ricos que fossem, tudo pretendiam levar a Portugal […]. Porque tudo querem para lá, e isso não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que aqui nasceram: uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.
Donde nasce também que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular […]. Nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos — ainda que seja a custa alheia, pois muitos devem quanto têm — providas de todo o necessário, porque têm escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite […], nas vilas muitas vezes não se acha isto à venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque, atendo-se uns aos outros, nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há de ficar aqui, senão do que hão de levar para o reino.
Estas são as razões por que, como muitos dizem, não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado, e ter estabilidade e firmeza.
Note-se que o relato acima, ao mesmo tempo que destaca a vocação a que fomos chamados, não deixa de expor os problemas humanos que desde o princípio impedem o crescimento de nossa nação. O autor culpa portugueses e nativos de usarem a terra “só para a desfrutarem e a deixarem destruída”. Ela, “mesmo sendo tão grande e fértil”, dom natural de Deus, é assolada pela corrupção dos homens, dos quais nenhum “zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Examine cada brasileiro se não é exatamente o que se passa em nossos dias…
Mas o autor do texto em questão vai além. Sua análise tem como princípio e fim uma dimensão religiosa: a razão por que não temos “estabilidade e firmeza” é que trocamos o nome de Santa Cruz pelo de Brasil. Pode parecer ousada a afirmação do frade, especialmente em nosso tempo, em que os nomes parecem uma coisa meramente técnica, que em nada influencia a essência das coisas. Mas a verdade é que a opção de substituir um pau pelo outro — o madeiro da cruz de Cristo por um pau-brasil — indica a atitude equivocada que muitos de nós mantemos com relação ao nosso país. Os brasileiros tendemos a nos orgulhar dos aspectos meramente naturais de nossa terra, mas nos esquecemos que o motivo de verdadeira glória de um povo reside na sua virtude.
Não foi irrelevante a troca do nome. Trata-se da identidade de nossa nação. E a mudança nos acusa: preferimos nos vangloriar a gloriar-nos do que realmente importa. Essa postura se reflete, infelizmente, em nossa cultura, no modo como lemos nossa própria história — desprezando muitas vezes Portugal e o Evangelho que com ele chegou ao Brasil —, e pode até degringolar em um patriotismo “baixo” e vulgar — que nos retrata como o “país do carnaval”, da sensualidade e de um malfadado “jeitinho”, que tudo aceita, acomoda e tolera.
Diante de tudo isso, seria preciso exclamar: oxalá tivéssemos abandonado a Santa Cruz só no nome! Infelizmente, nossa herança cristã em muitos lugares se perdeu e, onde ainda vive, encontra-se sob terrível ameaça. Hoje também, mais do que no início de nossa história, o demônio trabalha para que nos esqueçamos de quem somos, para que apaguemos de nossa memória a vocação que desde o início nos foi dada por Deus e, assim, à deriva, sejamos presas fáceis do pecado e das ideologias do mundo.
Lutemos contra esse “Alzheimer” cultural e finquemos a Santa Cruz bem forte em nossos corações, nos corações de nossos familiares e nos lares onde crescerão nossos filhos. De nada adiantará sermos dotados de uma “terra tão grande e fértil”, de nada adiantará nossos bosques terem mais flores, se não procurarmos honrar a Deus com nossa vida, se não for a nossa alma o primeiro jardim onde habita a Santíssima Trindade. Recordemos a finalidade sobrenatural de nossa colonização e correspondamos a ela. Disso depende a “estabilidade e firmeza” de nossa pátria.
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