Diogo de Noronha não conhecia o grande [São Francisco] Xavier senão pela fama; recentemente chegado às colônias portuguesas, testemunhara ao seu jovem parente, D. Pedro de Castro, desejos de ver o santo padre, de quem ouvira falar com tanta admiração na corte, e Pedro lhe havia prometido a viagem de Goa a Cochim no mesmo navio em que embarcasse o apóstolo venerado, acrescentando: 

— Se tu deixas escapar esta ocasião, podes não ter outra; o Padre Xavier parte para o Japão, e só Deus sabe se ele dali voltará. 

— Eu desejo vê-lo por causa da sua celebridade — respondeu Diogo —, mas não tenho nenhum empenho de me aproximar dele; temo ser atraído para as suas fileiras. 

— Tranquiliza-te, Diogo, o santo padre é o homem mais amável; ele conversará contigo sobre tudo que conhecer ou interessar-te, e nada te dirá sobre a tua consciência. Eu te acompanharei e te apresentarei, e ficarás encantado.

Os dois amigos embarcaram na mesma fusta que levava o santo padre. Pedro apressou-se em apresentar-lhe o seu parente. Francisco Xavier acolheu o jovem Diogo com a sua habitual benevolência; entreteve-o falando-lhe das famílias, dos Noronhas e dos Castros, que conhecera intimamente na corte de Portugal, e dos seus interesses nas Índias, e só a isto se limitou. 

Diogo viu-se fascinado, e experimentou um grande pesar quando viu afastar-se de junto de si aquele de quem receara aproximar-se.

— Eu estava persuadido — disse ele em seguida a Pedro — de que um santo daquela força não sabia senão pregar contra o inferno e fazer milagres… 

“Os milagres de São Francisco Xavier”, por Peter Paul Rubens.

— E tu viste que ele se acha armado para todos os gêneros de combates; qualquer que seja o assunto da conversação, tem sempre a mesma superioridade.

Mas é verdade — perguntou D. Diogo — que ele ressuscita os mortos? Em Lisboa toda a corte está persuadida e tem isto como coisa provada.

— Eu não tenho sido testemunha — respondeu Pedro —, mas em Goa homens sérios e pouco crédulos me asseguraram terem visto. Cosme Anes e Diogo de Borda, que tu conheces, instaram um dia com o santo padre a dizer-lhes, para glória de Deus, se era verdade que ele tivesse restituído à vida uma criança que se afogara num poço: o Padre Xavier fez-se vermelho e respondeu com embaraço: “Eu! Um pecador como eu, ressuscitar um morto! Podeis crê-lo? Puseram aquela criança diante de mim assegurando-me que estava morta! E assim, pecador como sou, disse à criança que se levantasse em nome de Jesus Cristo, e ela levantou-se; eis tudo. Deus sabe se ela estava realmente morta”.

— Só isso?! — disse Diogo.

Mas o que é certo é que nós não faríamos outro tanto — respondeu Pedro. 

Diogo suspirou profundamente e deixou escapar uma palavra que encheu de admiração ao seu amigo: 

— Tu, Pedro, confessas-te!

Na manhã seguinte, vendo ele o Padre Xavier a jogar xadrez, tomou o braço de Pedro e levou-o para a ponte, dizendo-lhe com admiração: 

— Explicar-me-ás tu este enigma, meu caro amigo? Compreendes que um santo jogue xadrez?

— Para nós, que conhecemos de perto o santo padre, o enigma é fácil de decifrar-se: ele quer converter aquele com quem joga.

— Tu crês isso? 

— Tenho a certeza; não é esta a primeira vez que ele emprega este meio de conversão, e tem sido sempre bem sucedido. 

Chegavam então a um porto da costa onde deviam fazer escala; todos os passageiros desembarcaram, e Pedro fez notar ao seu jovem parente que o Padre Xavier, dando o braço ao seu parceiro de jogo, penetrava com ele na floresta próxima; o ar de satisfação que animava o semblante do apóstolo era fácil de interpretar-se.

“A Visão de São Francisco Xavier”, por Erasmus Quellinus, o Jovem.

Quando o sinal do reembarque se fez ouvir, os passageiros apressaram-se a voltar a bordo; Francisco Xavier, porém, não apareceu! Pedro e Diogo internaram-se na floresta em que o haviam visto entrar quando desembarcou; chamaram-no repetidas vezes em alta voz, sempre inutilmente, e desanimados em sua busca, tomavam já o caminho por onde tinham vindo, quando Diogo disse que vira à direita uma luz estranha, através das árvores, e seguiram a direção do sítio em que se notava aquele fenômeno, que mal podiam crer, conquanto fosse real! E para aí avançaram… O santo apóstolo lá estava em oração; tinha o semblante fulgurante de luz, com as mãos cruzadas sobre o peito, de joelhos, mas não tocando o solo; ele não via nem ouvia nada do que se passava em torno de si.

— Acreditas, agora, que é santo apesar do jogo de xadrez? — perguntou Pedro ao seu amigo.

— Confesso-me perdido — respondeu-lhe Diogo. 

E dizia a verdade. Diogo era vaidoso, leviano, amigo do prazer, e aquela vista produzia nele remorsos: estava pálido, comovido, e desde aquele momento via as coisas de outro modo. 

Os dois amigos restituíram à terra aquele que todos buscavam com tanta ansiedade, e a simplicidade de Xavier, voltando às coisas terrenas, a graça e afabilidade com que agradecia aos seus amigos a sua solicitude e obséquio, completaram a conquista de Diogo de Noronha, e fizeram dele um perfeito cristão. Mas o jovem português não veio a saber logo o que se passara entre o jogador e o santo padre.

Francisco Xavier pouco entendia de xadrez; jogava-o muito mal. Vendo um dos passageiros, Vicente Lopes, entusiasmar-se por aquele jogo e mostrar, pelos seus juramentos, que a sua consciência estava em mau estado, pedira-lhe que sossegasse, no próprio interesse da partida começada, porque aquela grande exaltação podia fazer-lhe perder.

Depois da partida, a conversação foi levada para o estado da religião nas Índias, e o jogador tendo felicitado o santo apóstolo pelos seus sucessos milagrosos, este disse-lhe:

Nada é impossível a Deus; ele pode mesmo fazer de um jogador desenfreado um cristão exemplar… 

“Retrato de São Francisco Xavier”, por Joaquín Sorolla y Bastida.

— Ah! Eu vejo, santo padre! Eu adivinho-vos, mas o milagre seria muito grande, vós não me converteríeis. 

— Nada é impossível a Deus, senhor. 

— Padre, eu vos amo muito, mas vós não me tereis. 

— Quero mais uma partida, vamos! — acrescentou ele, dirigindo-se para alguns passageiros portugueses. — Quem quer empreender uma partida de xadrez? D. Henrique não quer mais lutar contra mim.

O desafio de Vicente ficou sem efeito; os seus amigos recusaram-se a satisfazer-lhe a paixão desordenada pelo jogo e fizeram-lhe novas observações que ele desprezou com a sua gaiatice e indiferença ordinárias. 

O Padre Xavier foi o único a oferecer-se.

— Vós, meu padre! Mas vós não conheceis as regras do jogo!

— Que importa? Uma vez que vós sois um jogador de primeira, e eu não valho nem um aprendiz, e sem dinheiro, convencionemos que a aposta da partida seja a vossa consciência. Se eu perder, conservá-la-eis tal como está, esperando uma melhor ocasião; se eu ganhar, vós ma entregareis e eu a darei a Deus!

— Pela celebridade da ideia, aceito! Vamos, santo padre, a minha consciência por aposta! A partida é minha!

Sentaram-se à mesa do xadrez e logo no começo da partida, Vicente perturba-se; nota no semblante do santo padre uma expressão muito mais celeste que de ordinário; dir-se-ia que um jogador invisível lhe indica a marcha que deve seguir, os lances que deve executar. Os assistentes mostram-se maravilhados, e cada um pergunta ao seu vizinho se é verdade que o santo padre não sabe jogar xadrez. 

Vicente, fora de si, exclama finalmente: 

— Meu padre, vós dissestes que não entendíeis nada do jogo, e sois mais forte do que eu!

— É bem verdade que não sei jogar, senhor Vicente; mas eu pedi a Deus que me desse a vossa alma, e Ele quis fazer-me ganhar.

Efetivamente, o santo padre ganhou a partida, e Vicente, como homem honrado, devia pagar a sua aposta; assim o fez com lágrimas de dor pela sua vida passada, e de admiração pela santidade do grande apóstolo que acabava de operar a sua conversão por um tal prodígio.

Referências

  • J. M. S. Daurignac, São Francisco Xavier: Apóstolo das Índias. Trad. M. Fonseca. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2018, pp. 309-312.

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