O que fazer quando uma autoridade local simplesmente decreta que o feriado da Sexta-feira da Paixão não será mais três dias antes da Páscoa, ou que Corpus Christi não será mais depois da Oitava de Pentecostes, ou que Finados não será mais em novembro, como sempre foi?

Infelizmente, esse quadro está se desenhando em vários lugares Brasil afora, devido ao novo aumento de restrições sociais por conta da pandemia do coronavírus. A ideia, pelo visto, é reforçar o distanciamento social e encher esse período de lockdown — seja o total ou o mitigado — com o máximo possível de feriados, para manter o comércio funcionando sem interrupções no resto do ano. 

Antes de qualquer coisa, a quem porventura, diante desses decretos do Poder Executivo, ainda esteja em dúvida sobre quando celebrar a Paixão de Cristo ou visitar seus entes falecidos no cemitério, sejam suficientes estas palavras de Jesus: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21). Que em estado de calamidade as autoridades civis mexam no ano civil, com seus feriados civis, é perfeitamente compreensível. Agora, o calendário religioso, com suas festividades religiosas, tem outro caráter. Trata-se de celebrações da Igreja, e tão-somente a ela dizem respeito.

Sim, o fato de essas datas religiosas serem também feriados impacta a vida social e econômica dos cidadãos, mas o repouso que elas pedem não é a simples ausência de trabalho; as festas católicas — e com elas os domingos — têm um significado muito mais profundo. O fato de prefeitos e governadores brincarem com esses dias como quem move peças de xadrez e, pior ainda, de os católicos aceitarmos isso tranquilamente, mostra não só a falta de limites dos governantes, mas também a perda de princípios dos que somos governados. Se não nos incomoda que políticos mexam com nossas festas e dias santos, é porque há, em primeiro lugar, algo de muito errado conosco.

É claro que tentativas de se mexer no calendário cristão não nasceram com o coronavírus. Após a Revolução Francesa, por exemplo, os rebeldes anticlericais instauraram, de 1792 a 1805, um novo calendário, baseado não no ciclo litúrgico católico, mas no ciclo da natureza. A iniciativa não “vingou”, mas, para quem conhece a história da salvação, é impossível não associar o episódio à desolação do Templo de Jerusalém, no Antigo Testamento. Na Vulgata latina, o Salmo 73 traz uma redação que faz lembrar muito essas tentativas de intromissão no culto divino:

Quantas maldades cometeu o inimigo no santuário!
E os que te odeiam, gloriam-se (de te insultar) no meio da tua solenidade.
Hastearam os seus estandartes como troféus;
e não respeitaram nem as eminências nem as saídas.
Como num bosque de árvores, com machados
despedaçaram à porfia as suas portas;
com machado e martelo tudo derribaram.
Puseram fogo ao teu santuário;
na terra profanaram o tabernáculo do teu nome.
Disseram no seu coração com os das suas parentelas:
Façamos cessar na terra todos os dias de festa consagrados a Deus (v. 3-8).

Quiescere faciamus omnes dies festos Dei a terra; literalmente: “Façamos cessar na terra todos os dias de festa consagrados a Deus”. Como a Neovulgata já traz uma frase diferente, só quem segue a tradução bíblica do Pe. Matos Soares ou reza o Ofício Divino antigo lê esse versículo deste modo (mais especificamente, toda quinta-feira, na Hora Sexta) [1].

“A destruição do Templo de Jerusalém”, de Francesco Hayez.

É claro que cada situação tem suas circunstâncias e peculiaridades. A impiedade dos poderosos têm seus graus. Os governantes de nossos municípios e estados, com seus decretos muitas vezes mal escritos e desajeitados, não chegam nem perto da malícia dos revolucionários franceses. E esses, por sua vez, não cometeram mais atrocidades que os comunistas no século XX, campeões em matéria de perseguição religiosa. (Quem tiver a oportunidade, leia depois o que foi o Experimento Pitesti, na Romênia, e comprove por si mesmo; ou um pouco sobre a situação atual da China, extremamente hostil aos cristãos, seus ritos e símbolos.)

O que nos importa nesta matéria, porém, mais do que deplorar os desmandos dos que estão no poder, é identificar o que está por trás da aceitação pacífica desta ingerência descabida nos “dias de festa consagrados a Deus”.

Em primeiro lugar, o que enfraquece um povo a ponto de impedi-lo de resistir a ações como essa? Justamente a sua falta de identidade. Embora os brasileiros se gabem de ser “a maior nação católica do mundo”, a verdade é que decretos como os que citamos não teriam lugar numa sociedade verdadeiramente católica. Por quê? Porque um povo religiosamente sadio — desde as autoridades até o mais humilde dos súditos — está disposto a reconhecer, em tudo, o primado de Deus

Isso ficava evidente, entre outras coisas, na forma como antes eram construídas as cidades: justamente ao redor de uma igreja e de sua praça — isto é, justamente em torno do “domingo”, dia de culto a Deus e repouso do trabalho. Também era assim Jerusalém, a qual “não era tanto uma cidade com um Templo quanto um Templo com uma cidade construída à sua volta” [2].

O oposto disso é justamente o número 666, a marca da Besta, como explica o teólogo Scott Hahn: 

666 pode ser interpretado como degradação do número sete, que, na tradição israelita, representava perfeição, santidade e a aliança. O sétimo dia, por exemplo, foi declarado santo por Deus e destacado para descanso e adoração. O trabalho era feito em seis dias; entretanto, era santificado na adoração sacrifical representada pelo sétimo dia. O número “666”, então, representa um homem paralisado no sexto dia, servindo à besta, que se preocupa em comprar e vender (cf. Ap 13, 17) sem descanso para a adoração. Embora o trabalho seja santo, torna-se mau quando o homem se recusa a oferecê-lo a Deus [3].

O que está por trás desses tempos apocalípticos que vivemos, portanto, é justamente o esvaziamento do significado original do domingo e dos dias santos. Sim, nós sabemos: devido ao fechamento das igrejas e à suspensão do culto público em vários lugares, muitos estão impossibilitados de participar da Santa Missa... Mas o problema aqui é maior e muito mais antigo: já faz tempo que o domingo foi reduzido por muitos a puro “fim de semana”, mero repouso e diversão.

Os domingos e dias de festa

Foi justamente para lembrar aos católicos o real valor do domingo que o Papa S. João Paulo II, antes da virada do milênio, escreveu a Carta Apostólica Dies Domini. “Se, por sua natureza, é conforme à necessidade humana de descanso”, disse o Santo Padre, referindo-se à instituição do sábado, ainda no Antigo Testamento, “cumpre, não obstante, deduzir da seu sentido mais profundo, para que não se torne coisa comum e costumeira nem seja traído” (DD 13).

O Papa ensinava, antes de tudo, que o ato de reservar um dia da semana para Deus, mais do que uma observância ritual e externa, é um verdadeiro reconhecimento dele como Dominus, isto é, “Senhor”, não só do tempo e da história, mas de tudo que existe:

Na verdade, a vida inteira do homem e todo o seu tempo devem ser vividos como louvor e agradecimento ao Criador. No entanto, a relação do homem com Deus necessita também de momentos determinados de oração explícita, nos quais a relação se torna diálogo intenso, envolvendo toda a dimensão da pessoa. O “dia do Senhor” é, por excelência, o dia desta relação, no qual o homem eleva a Deus o seu cântico, tornando-se voz de toda a criação. Por isso mesmo é também dia de repouso: a interrupção do ritmo, muitas vezes oprimente, das ocupações exprime, com a linguagem figurada de “novidade” e “separação”, o reconhecimento da dependência de nós mesmos e de todo o universo de Deus. Tudo é de Deus! O dia do Senhor está continuamente a afirmar este princípio [...]. Ele nos lembra que a Deus pertencem o universo e a história, nem o homem pode dedicar-se à sua obra de cooperador do próprio Criador, sem estar constantemente consciente desta verdade (DD 15).

Enquanto, porém, os judeus guardavam o dia do sábado, nós, católicos — nas palavras de São Gregório Magno — “consideramos verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo” (DD 18). Com a Encarnação do Verbo, o próprio Deus irrompeu na história humana; em Cristo, todas as coisas são recriadas. Por isso, mais do que a primeira Criação ou a libertação de Israel do Egito — motivos pelos quais a Lei mosaica impunha a guarda do sábado —, os cristãos desde o princípio guardam o domingo: Haec est dies, quam fecit Dominus: exsultémus, et laetémur in ea, “Este é o dia que o Senhor fez para nós, alegremo-nos e nele exultemos” (Sl 117, 24); este é o dia de nossa Páscoa semanal, quando recordamos a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, e nossa consequente libertação do pecado. 

Mas o domingo não evoca só um evento passado na história; ele é também, numa expressão dos Santos Padres, o “oitavo dia”:

Situado, relativamente à sucessão septenária dos dias, numa posição única e transcendente [...], o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo presente, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no caminho [...]. A celebração do domingo, dia simultaneamente “primeiro” e “oitavo”, impele o cristão para a meta da vida eterna (DD 26).

Domingo a domingo, a Igreja caminha para o último “dia do Senhor”, o domingo sem fim [...]. Isto faz com que o domingo seja o dia em que a Igreja, manifestando mais claramente sua índole “esponsal”, antecipa de algum modo a natureza escatológica da Jerusalém celeste. Ao reunir seus filhos na assembleia eucarística e educá-los para a expectativa do “Esposo divino”, ela realiza uma espécie de “exercício do desejo”, no qual saboreia antecipadamente a alegria dos novos céus e da nova terra, quando a cidade santa, a nova Jerusalém, descerá do céu, de junto de Deus, “bela como uma esposa que se ataviou para o seu esposo” (Ap 21, 2) (DD 37).

Isso significa que a vivência do domingo tem um significado para além desta vida: cada domingo é uma oportunidade de tocar o Céu enquanto ainda estamos aqui nesta terra. Não à toa, a Igreja preceitua que, neste dia (e em condições normais), seus filhos participem da Santa Missa. Emblemática é a história que os cristãos ucranianos contam de como seus antepassados descobriram a liturgia: 

Em 988, quando se converteu ao Evangelho, o príncipe Vladimir de Kiev enviou emissários a Constantinopla, a capital da cristandade oriental. Ali, eles participaram da liturgia bizantina na catedral da Sagrada Sabedoria, a igreja mais majestosa do Oriente. Depois de passar pela experiência do canto litúrgico, do incenso, dos ícones — mas, acima de tudo, da Presença —, os emissários enviaram esta mensagem ao príncipe: “Não sabíamos se estávamos no céu ou na terra. Nunca vimos tanta beleza… Não sabemos descrevê-la, mas disto temos certeza: ali, Deus habita entre a humanidade” [4].

É por isso que cada cristão que vive o domingo como um dia consagrado ao Senhor é uma ameaça ao nosso mundo pagão e materialista, para o qual só existem o aqui e o agora; uma ameaça aos tiranos deste mundo, que se crêem deuses e senhores do bem e do mal. 

O Papa S. João Paulo II recorda, a esse propósito, o “autêntico heroísmo com que sacerdotes e fiéis” observaram a obrigação de ir à Missa “em muitas situações de perigo e restrição da liberdade religiosa”, como foi o caso dos mártires de Abitinas: 

Quando, durante a perseguição de Diocleciano, viram suas assembleias interditas com a máxima severidade, foram muitos os corajosos que desafiaram o édito imperial, preferindo a morte a faltar ao sacrifício eucarístico dominical. Foi o caso dos mártires de Abitinas, na África proconsular, que responderam aos seus acusadores: “Foi sem qualquer temor que celebramos o domingo, porque não se pode deixar o domingo; assim manda a Lei”; “sine dominico non possumus — sem o domingo, não podemos viver”. Uma das mártires confessou: “Sim, fui à assembleia e celebrei o domingo com os meus irmãos, porque sou cristã” (DD 46).

Hoje, quando as igrejas e seus cultos são relegados, sem mais nem menos, à esfera das “atividades não essenciais”, como não recordar essas perseguições à Igreja e aos cristãos? Como não pensar que estamos em um sistema iníquo — que só “se preocupa em comprar e vender sem descanso para a adoração”? Como não pensar de imediato na marca da Besta de que fala o Apocalipse?

Não impressiona que, em tempos como estes, se multipliquem cada vez mais as ameaças à liberdade humana — desde a de ir e vir até a de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Afinal, quando é minada a primeira e mais fundamental das liberdades — isto é, a de adorar a Deus e celebrar os dias consagrados a Ele —, que mais pode restar ao homem, senão a submissão absoluta aos tiranetes da vez, que atuam como “pequenos deuses” neste mundo? 

Evidentemente, os primeiros que nos escravizam somos nós mesmos. Há quanto tempo o domingo já não é, para os católicos, o dies Domini? Diante dos flagelos dos últimos dias, esse é o momento apropriado para um exame de consciência. Para muitíssimos batizados, tragicamente, a qualificação da Missa como uma “atividade não essencial” só foi o carimbo público do que já estava decretado há muito tempo em suas vidas e na prática de suas famílias. Deus já não é essencial para muitos católicos, e não é de hoje.

Em La Salette, Nossa Senhora apareceu chorando justamente por causa do descaso do povo católico para com o domingo — descaso que envolvia não só a omissão dos próprios deveres religiosos em dias santos, mas também o trabalho frenético nesses mesmos dias. De lá para cá, infelizmente, a situação não melhorou muito; a própria cultura em que nos encontramos não favorece em nada o repouso dominical e o culto a Deus. Mesmo nessa condição adversa, todavia, somos chamados a dar testemunho de fidelidade, acolhendo o brado com que S. João Paulo II procurou acordar, há alguns anos, a consciência dos católicos: “Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo!” (DD 7).

Até lá, enquanto continuarmos nos recusando a reconhecer o domínio de Deus sobre tudo — especialmente o senhorio dele sobre o tempo que nos foi confiado —, continuaremos a ser escravos dos senhores deste mundo — e estarão sob ameaça não só os domingos e dias santos, mas inclusive esta coisa que chamamos de liberdade.

Notas

  1. Na tradução brasileira da Liturgia das Horas, mais fiel ao original hebraico, o alvo dos ataques dos inimigos são os templos e não propriamente os dias santos (no rito novo, este salmo é rezado na Hora Média da terça-feira da III Semana).
  2. Scott Hahn, O Banquete do Cordeiro: A Missa segundo um convertido. São Paulo: Loyola, 2014, p. 70.
  3. Id., p. 84.
  4. Id., p. 109.

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