A crescente taxa de desemprego nos EUA, consequência natural da paralisação econômica, pôs a classe média americana de joelhos [1]. Dez milhões de americanos foram demitidos em apenas duas semanas, e o número segue crescendo. Às pessoas cadastradas para receber seguro desemprego foi informado que deveriam esperar algumas semanas até receberem o primeiro pagamento. Os números foram exibidos todas as manhãs no noticiário, e na minha opinião o sofrimento dos desempregados foi tratado, em grande medida, apenas em termos numéricos, como um valor destituído de qualquer significado humano.

Minha intuição e formação religiosa me diziam que eu deveria sentir compaixão e empatia pelos menos afortunados, mas eu não conseguia invocar esses sentimentos humanos fundamentais. Seguia com minha vida ordinária, ignorando essa realidade distante; talvez fosse uma maneira de preservar minha tranquilidade. Foi preciso que a fantasia autoinduzida se transformasse em realidade cotidiana e batesse à porta da minha própria família para que eu entendesse a magnitude da destruição causada por ela na alma humana.  

“Um homem trabalhando no campo”, por Laurits Andersen Ring.

Meu pai trabalha como autônomo na manutenção de máquinas de lavagem a seco. Por isso, só tem serviço quando o dono de uma lavanderia entra em contato para solicitar reparos urgentes em alguma máquina da empresa. Os pedidos variavam em quantidade ao longo da semana, mas a regularidade do serviço permitia que a hipoteca e outras despesas fossem pagas em dia. Com o fechamento obrigatório de quase todas as empresas, a indústria de lavagem a seco entrou em colapso porque diminuiu bastante o número de profissionais que precisam prensar e passar o próprio uniforme de trabalho.

Embora neste período alguns ainda continuem a vestir-se formalmente em casa quando estão em teletrabalho (para manter certo grau de dignidade ou, pelo menos, passar a impressão de que estão trabalhando no escritório), a verdade é que meu pai não recebe demanda de trabalho há quase três semanas. Todas as manhãs, ele costuma acordar e realizar as atividades que faziam parte de sua rotina antes de sair para trabalhar: tomar café da manhã, ler o jornal e fumar um cigarro no jardim. Na hora do almoço, sai de casa com o seu uniforme de trabalho e as ferramentas, voltando apenas na hora do jantar. É óbvio que não há nenhuma demanda de trabalho, mas ele tem cumprido perfeitamente essa rotina todos os dias. Eu me perguntei: por que ele mantém esse hábito? Por que finge trabalhar quando não há trabalho a ser feito?  

Para muitas pessoas, o trabalho é apenas um meio de obter os recursos necessários para pagar a hipoteca, comprar comida e dar aos filhos uma boa educação. Alguns descobrem que a sua vocação terrena lhes dá um incrível senso de propósito que nenhum tipo de lazer poderia dar. O sangue que jorra das mãos por causa do trabalho duro com uma ferramenta, o suor que escorre pelo corpo por causa do trabalho intenso e do calor ao ar livre e as lágrimas salgadas que caem do rosto por causa da dor do trabalho árduo proporcionam uma satisfação única.

À luz dos hábitos do meu pai, comecei a analisar a relação entre o homem e o seu trabalho: o homem trabalha apenas para encontrar meios de sobrevivência para a sua família ou realiza o trabalho pelo trabalho?

Na encíclica Rerum novarum, o Papa Leão XIII diz o seguinte: “Trabalhar é exercer a atividade com o fim de procurar o que requerem as diversas necessidades do homem, mas principalmente a sustentação da própria vida” (n. 27). Ele explica que o homem, como agente ativo da economia, trabalha antes de mais nada para fornecer alimento e moradia à sua família e para receber o salário necessário à sobrevivência. Trata-se de uma “lei incontestável da natureza”.

Na encíclica Laborem exercens, o Papa João Paulo II responde à segunda parte da minha pergunta: 

Desde o princípio [o homem] é chamado ao trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo com ele, ao mesmo tempo, a sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza (n. 1).

Aqui, o grande João Paulo II estabelece a diferença entre o reino animal e a espécie humana. Ele esclarece o seguinte: não podemos chamar de trabalho, tal como o definem os seres humanos, a busca animal de comida e abrigo para si ou para o grupo a que pertence. Por que motivo? Quando “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou”, Ele deu à espécie humana a missão específica de dar continuidade à história da sua Criação através dos trabalhos de nossas mãos, que primeiro começaram com Deus criando “os céus e a terra”. Quando o homem inventa uma máquina, conserta algo ou gera uma nova vida, está participando ativamente da economia divina. Como disse anteriormente, ignorar a nossa natureza propensa ao trabalho significa violar a própria lei natural. Pode-se concluir que trabalhar é algo que está em nosso DNA.

Ao determinar a interrupção da atividade econômica, os governos impuseram a sua interpretação do que são “serviços essenciais”, interpretação que, apesar de variável até certo ponto, não deixa de ter certa uniformidade: negócios vitais para o funcionamento básico da economia (finanças, mercados de produtos alimentícios, serviços de saúde, governo etc.) e dignos de permanecerem abertos durante uma crise de saúde pública. Essa decisão, porém, determinou uma injustificada sentença de morte para uma imensa variedade de trabalhos considerados “não essenciais”. O barbeiro que você frequenta duas vezes por mês, o garçom que você vê muitas vezes em seu restaurante predileto e o barman que faz aquele coquetel perfeito entram nessa categoria.

Embora a população tenha de aceitar essa distinção para minimizar a disseminação do coronavírus, não devemos nos esquecer da verdade fundamental de que todo trabalho é essencial, pois confere dignidade à nossa humanidade e propósito às nossas vidas, além de satisfazer a nossa natureza dada por Deus, que nos leva a encontrar alegria nos frutos do nosso trabalho (cf. Ecl 5, 18).

Notas

  1. Esse texto foi originalmente publicado no dia 23 de abril de 2020. Desde então, a situação nos Estados Unidos com relação à infecção por coronavírus e ao desemprego certamente só piorou. Como o Brasil vive drama semelhante, as considerações feitas há quase dois meses têm perfeita validade para nós (Nota da Equipe CNP).

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