Embora Nicolau seja hoje na Europa uma figura lendária, um homem de cabelos brancos, bondoso e vagamente cristão, que uma vez por ano preside ao festivo dia em que se descobrem bugigangas dentro de meias, na Idade Média ele estava na linha de frente dos santos venerados e amados universalmente pelas nações cristãs da Europa.

Só na Inglaterra, havia mais de quatrocentas igrejas dedicadas a ele, e a Rússia tomou-o como padroeiro juntamente com o Apóstolo André [1]. Estima-se que, durante a Alta Idade Média, nos territórios francófonos e germanófonos, havia ao menos duas mil igrejas dedicadas a São Nicolau [2]. “A heterogeneidade de suas atribuições como santo patrono é ímpar: é difícil que haja um santo a cuja proteção confie-se um número tão grande de cidades e países, desde a costa do Atlântico até a Rússia ortodoxa” [3].

Suas relíquias, que chegaram em segurança a Bari, na Itália, em 9 de maio de 1087, depois de resgatadas da cidade de Mira, então sob domínio sarraceno, atraíram um grande número de peregrinos de toda a Europa durante os séculos seguintes, muitos dos quais ansiavam levar para casa um pouco da mirra, de odor suave e benéfica para a saúde, que fluía de seus restos mortais [4]. Esse óleo é chamado “maná de São Nicolau”. Um tratado em sua defesa foi escrito recentemente, em 1925. Um dos primeiros visitantes de suas relíquias na Itália foi Anselmo, arcebispo de Cantuária. 

Sua vida foi representada em canções e esculturas, vitrais e pinturas de altar; diz-se até que ele foi representado na arte com mais frequência do que qualquer outro santo, com exceção da Virgem Maria [5]. Um manuscrito em Fleury, na França, tem quatro dramas litúrgicos distintos dedicados a São Nicolau. Sua reputação espalhou-se até a Islândia medieval, onde um poema épico de nome Nikolassaga Biskupa foi composto em sua honra [6].

O que sabemos de certo sobre a vida de Nicolau? Segundo os padrões da crítica moderna, praticamente nada além de sua existência como bispo de Mira durante o séc. IV, muito reputado por sua grande santidade. Porém, se ampliarmos nossas fontes, incluindo o melhor da literatura hagiográfica da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média, surgirá um retrato mais pormenorizado. Não há necessidade de recontar a prodigiosa série de milagres; basta mencionar os elementos comuns da vita Nicolai Episcopi em cada terra e língua [7].

Foto tirada na Catedral Ortodoxa de São Nicolau, em Washington, D.C., no dia de sua festa. (Foto por Fr. Lawrence Lew, OP.)

Por ter resgatado marinheiros na costa da Lícia, Nicolau é venerado como padroeiro dos navegadores; por ter aparecido em sonho a Constantino e a um prefeito chamado Ablávio em favor de três prisioneiros injustamente condenados, é venerado como padroeiro dos cativos [8]. Mais tarde, estudantes e acadêmicos foram acrescentados à sua lista de protegidos, dando-lhe um lugar nas universidades medievais então florescentes. A Pinacoteca Vaticana possui muitas pinturas extraordinárias da vida e dos milagres de Nicolau. Merece menção especial a Peça de Altar Quaratesi (1425), de Gentile da Fabriano, e A História de São Nicolau (1437), de Fra Angelico.

Embora a antiga coleta romana enfatize seus milagres (Deus, qui beatum Nicolaum Pontificem innumeris decorasti miraculis) e os gregos se refiram a ele como “taumaturgo” (autor de milagres), sua fama na Idade Média baseava-se menos nos milagres que na esmola dada a uma família em sua cidade nativa, Patera, antes mesmo de ser escolhido bispo de Mira. A fim de livrar três jovens da prostituição a que seu pai pretendia entregá-las, Nicolau, que havia herdado dos pais uma fortuna, foi à casa do homem na calada da noite e atirou um saco de ouro pela janela para lhes servir de dote. Ele o fez três vezes, até que todas as filhas se casassem [9]. O alegre velhinho, trajado de vermelho sem qualquer vinculação religiosa, a distribuir presentes a crianças bem comportadas no tempo do Natal parece ser uma recriação protestante, com toques vitorianos, do santo católico original, famoso por dar ouro às três donzelas. (Note que o termo com que os falantes de língua inglesa designam o Papai Noel é Santa Claus, derivado de Sanctus Nicolaus.)

Como bispo, Nicolau foi celebrado por sua generosidade para com os pobres e por sua defesa intransigente da ortodoxia cristã. Lemos nas Crônicas a Metódio que, “graças a seus ensinamentos, somente a metrópole de Mira pôde escapar da imundície da heresia ariana, que ele rejeitou firmemente como um veneno mortal” [10]. A tradição conta que Nicolau participou do Concílio de Niceia e ficou tão escandalizado com o orgulho de Ário, que lhe deu um tapa no rosto [11]. Seu lendário zelo pela fé ortodoxa explica em parte a epístola tradicionalmente indicada para a sua festa, uma leitura do primeiro capítulo da Carta aos Hebreus, ao longo da qual aparecem as seguintes palavras: 

Jesus Cristo é sempre o mesmo, ontem e hoje; ele também o será por todos os séculos. Não vos deixeis levar por doutrinas várias e estranhas. É ótimo fortificar o coração com a graça, não com alimentos, que nada aproveitaram aos que usaram deles… Ofereçamos sempre a Deus, por meio dele, um sacrifício de louvor (Hb 13, 8-9.15). 

O versículo 17 traz à mente outra vez a caridade de Nicolau: “Não esqueçais a beneficência e a liberalidade, porque com tais vítimas se torna a Deus propício” (na Vulgata: Beneficentiae autem et communionis nolite oblivisci; talibus enim hostiis promeretur Deus).

O vínculo íntimo entre ortodoxia e caridade cristãs encontra uma adequada expressão em Nicolau, “um dos primeiros a ser venerado como santo sem ter sido mártir”, como observou o cardeal Ratzinger [12], que continua: 

Uma das lendas [a respeito de Nicolau] expressa-o belamente da seguinte maneira. Embora todos os outros milagres pudessem ter sido realizados por magos ou demônios, sendo portanto ambivalentes, um milagre foi absolutamente evidente e não poderia envolver engano algum: o milagre de viver a fé no dia a dia durante toda a vida e conservar a caridade. As pessoas do séc. IV presenciaram esse milagre na vida de Nicolau, e todas as histórias de milagres que surgiram posteriormente são apenas variantes deste milagre fundamental que os contemporâneos de Nicolau compararam, com admiração e gratidão, à estrela da manhã que reflete a luz de Cristo. Nesse homem, compreenderam o que significa crer na Encarnação de Deus; nele, o dogma de Niceia foi traduzido em termos tangíveis [13].

Um antigo biógrafo bizantino de São Nicolau descreveu o bispo como alguém que “recebeu sua dignidade da própria natureza sublime de Cristo, assim como a estrela da manhã recebe seu brilho do sol nascente” [14].

Notas

  1. A. Butler, Butler’s Lives of the Saints, ed. and rev. Herbert J. Thurston, sj, and Donald Attwater, 4 vols. Westminster, Maryland, Christian Classics, 1990, 4:505–6.
  2. Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano, 1952, s.v. “Nicola di Mira”.
  3. E. De’Mircovich, liner notes to La Nuit de Saint Nicholas, Arcana A72, 15–16.
  4. Butler’s Lives, 4:505.
  5. Butler’s Lives, 4:505–6,
  6. E. De’Mircovich, La Nuit de Saint Nicholas, 15.
  7. Para um breve relato da vida de Nicolau, ver Butler’s Lives, 4:503–6. Para um relato popular na Idade Média — e um bom indicativo do que um monge do séc. XIII teria em mente ao rezar para o santo ou invocar sua ajuda —, ver Tiago de Voragine, The Golden Legend: Readings on the Saints, trans. W. G. Ryan, 2 vols. Princeton, Princeton University Press, 1993, 1:21–27. Tiago, um dominicano italiano que ocupou altas posições na Ordem como professor e administrador, e tornou-se bispo em Gênova em 1292, escreveu a Legenda Áurea por volta de 1260. Como Ryan observa em sua introdução, “a popularidade da Legenda era tamanha, que cerca de mil manuscritos sobreviveram e, com o advento da imprensa em 1450, edições na língua original, o latim, e em todas as línguas da Europa ocidental multiplicaram-se prodigiosamente” (1:xiii). Ver L.-J. Bataillon, op. “Iacopo da Varazze e Thommaso d’Aquino”, in: Sapienza 32/1 [Naples] (1979), 22–29.
  8. Butler’s Lives, 4:505–6; Golden Legend, 1:22–24.
  9. Butler’s Lives, 4:504; Golden Legend, 1:21–22.
  10. Butler’s Lives, 4:504. Esse Metódio foi patriarca de Constantinopla no século nono.
  11. Butler’s Lives, 4:503–4; Golden Legend, 1:22.
  12. J. Ratzinger, “Reflections at Advent” in Seek That Which Is Above: Meditations Through the Year. Trans. G. Harrison. San Francisco, Ignatius Press, 1986, 21.
  13. Ratzinger, “Advent,” 21–22. Nesse parágrafo, “todos os outros milagres” devem se referir a fenômenos externos ambíguos, uma vez que um milagre genuíno só pode ocorrer por poder divino.
  14. Ibid., 20.

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