Você já parou para se perguntar por que Igreja reserva uma data específica para celebrar “todos os santos”?

A primeira razão deve ser encontrada, de acordo com a Legenda Áurea do beato Tiago de Varazze, em uma tentativa de cristianizar o “Panteão”, um templo que existe até hoje em Roma e que fora erguido, a princípio, para abrigar todos os deuses romanos. Daí o termo “Panteão”, que quer dizer, literalmente: “todos” (pan) os “deuses” (theos). O monumento foi construído por volta de 25 a.C. e só passou à Igreja Católica no ano 609, quando Roma já se tinha cristianizado e o imperador bizantino Focas doou o templo ao Papa Bonifácio IV.

A Igreja não deixaria, é claro, que um templo construído a “todos os deuses” simplesmente continuasse a servir ao paganismo politeísta. Fazê-lo constituiria uma verdadeira traição à fé católica, que professa sua fé em um só Deus, o único ao qual é devido o culto de adoração. Por isso, não demorou muito para que a estrutura do Panteão fosse transformada. O templo foi dedicado a Santa Maria dos Mártires no dia 13 de maio, e transferiram-se para o lugar numerosíssimas relíquias dos primeiros mártires da Igreja.

E não poderia haver associação mais apropriada do que essa. Deixando de cultuar o panteão da Antiguidade, os romanos passaram a venerar, desde então, a memória dos mártires.

Não faltará quem se escandalize com esse acontecimento, vendo nele um sinal da “corrupção” que, já naquela época, havia tomado conta da Igreja “Romana” — expressão que os inimigos da fé católica usam em tom curiosamente pejorativo. Para estes, o culto e a intercessão dos santos teria surgido entre os cristãos como uma influência do politeísmo pagão. Ora, como a religião cristã proibia a adoração de falsos deuses, os católicos romanos teriam arrumado um jeito de contornar a proibição inventando… os santos!, que funcionariam como uma espécie de “divindades”. (Daí a acusação constante vinda dos protestantes de que os católicos somos idólatras.)

Tal argumento é infundado, em primeiríssimo lugar, porque a veneração e intercessão dos santos foi uma constante na história da Igreja, desde as suas origens mais remotas. Os testemunhos colhidos diretamente dos Santos Padres são tão abundantes que dispensam comentários. Não é possível que eles tenham sido unânimes em uma matéria tão séria (muito antes do século IV!) sem que tivessem recebido esse ensinamento dos primeiros discípulos de Jesus.

Em segundo lugar, só alguém com muita má vontade seria capaz de enxergar um “sincretismo maligno” na completa transformação do Pantheon romano em uma igreja cristã. Antes de tudo, porque, à época da dedicação de Santa Maria dos Mártires, Roma já era cristã, de modo que, quando o Papa realizou a mudança, incentivado pelo próprio imperador bizantino, o que ele fez foi simplesmente ratificar uma conversão que já havia acontecido nos corações do povo romano.

Além disso, a comparação entre os deuses romanos e os santos cristãos é meramente “numérica”: tanto os primeiros quanto os segundos eram muitos, e essa é, no fundo, a única coisa que há de comparável entre eles. As histórias de suas vidas são totalmente discrepantes, a natureza do culto prestado a um e a outro é substancialmente diferente, a religião dos primeiros se afasta da dos segundos como a lei de talião se afasta da lei de Cristo, e daí por diante.

Por isso, que um templo dedicado às primeiras personagens fosse repensado para o culto dos mártires da Igreja, não era propriamente uma opção do Papa Bonifácio IV, mas quase que uma obrigação, como já dissemos. Tratava-se da simples superação do paganismo antigo, que procurava Deus como que “às apalpadelas”, pela revelação perfeitíssima e definitiva de Nosso Senhor Jesus Cristo, que veio mostrar a face de Deus a todos aqueles que viviam nas trevas da ignorância. Ele veio, afinal, para renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5), não destruí-las — como seria o caso, por exemplo, se o Panteão fosse apenas demolido.

Voltando, porém, aos fatos históricos, o que aconteceu foi que, “como uma imensa multidão sempre se dirigia para essa festa”, no dia 13 de maio, em honra aos mártires, “e a falta de víveres não permitia celebrá-la, o Papa Gregório IV decidiu transferi-la para o dia 1.º de novembro, quando a colheita e a vindima estão terminadas e há alimentos em quantidade para celebrar em toda parte uma festa solene em honra de todos os santos”. O que fora, no início, uma mudança circunstancial para a cidade de Roma permanece assim, até os dias de hoje, como norma para a Igreja inteira.

A resposta à pergunta inicial de nossa reflexão, no entanto, não pode resumir-se a uma explanação histórica. Afinal de contas, tudo o que a Igreja estabelece em sua liturgia tem uma razão de ser, e uma razão profunda.

No caso da solenidade em honra a “todos os santos e santas de Deus”, o motivo primordial dessa escolha da Igreja está relacionado à fé. Como lex orandi, lex credendi, isto é, “a lei da oração constitui”, para nós católicos, “a lei da fé”, devemos procurar as causas dessa instituição naquilo em que acreditamos a respeito dos santos. Assim, ainda a partir da Legenda Áurea citada acima, existem seis razões para celebrarmos essa comemoração:

  • “A primeira é honrar a divina majestade, pois ao honrar os santos honramos a Deus, já que honrando os santos honramos em especial aquele que os santificou.
  • A segunda razão é minorar nossa fraqueza, já que não podemos por nós mesmos obter a salvação e temos necessidade da intervenção dos santos, sendo então justo que os honremos se quisermos obter seu auxílio. Lê-se em 1Rs 1 que Betsabé, nome que significa ‘poço de abundância’, isto é, a Igreja triunfante, obteve por suas preces o reino para seu filho, ou seja, para a Igreja militante.
  • A terceira razão é aumentar nossa segurança e nossa esperança, pela consideração da glória dos santos, que nos é relembrada na festa que ora celebramos, pois se homens mortais como nós puderam por seus méritos ser elevados a tal glória, nós também podemos, pois a mão do Senhor não diminuiu.
  • A quarta razão é oferecer exemplos que imitemos, desprezando, como eles, as coisas da Terra e desejando os bens do Céu.
  • A quinta razão é pagar o débito que temos com eles, pois os santos fazem no Céu festa para nós, os anjos de Deus e as almas dos santos comemoram com alegria cada penitência feita por um pecador. Portanto, é justo que os recompensemos, e como eles fazem por nós uma festa nos Céus, nós fazemos por eles uma festa na Terra.
  • A sexta razão é adquirir honra, pois honrando os santos trabalhamos para nossa própria honra: a festividade deles é nossa dignidade. De fato, quando honramos nossos irmãos honramos a nós mesmos, e a caridade faz com que todos os bens, celestes, terrestres e eternos sejam comuns.”

Não há dúvida, portanto, de que é perfeitamente consoante à fé cristã invocar os santos e pedir a sua intercessão. Se Deus, em sua infinita bondade, quis reunir junto de si uma falange inumerável de santos — os Apóstolos e tantos Papas, os gloriosos mártires e confessores, as virgens e os Doutores — e, como Pai amoroso, quis oferecer a seus filhos aqui na terra o auxílio dos irmãos que já estão no céu, que desculpa daremos para não recorrer ao auxílio desses heróis da caridade?

Que neste dia 1.º de novembro o Senhor acrescente em nós a devoção aos santos e nos conceda a graça de termos um dia o privilégio de associar-nos a esta amorosíssima corte de homens e mulheres plenamente configurados a Cristo.

Referências

  • Jacopo de Varazze. Legenda áurea: vidas de santos. Trad. de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 901-911.

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