Se Oscar Wilde vivesse hoje, talvez se sentisse dividido em relação à agenda LGBT [i]. Embora fosse homossexual e, possivelmente, viesse a aprovar o movimento, é provável que não o defendesse em público. Dândi decadente, Wilde considerava sua homossexualidade uma “patologia”, um prazer culposo e uma preferência a ser satisfeita entre quatro paredes.

Essa duplicidade, típica da Era Vitoriana em que viveu, está de acordo com a filosofia segundo a qual os prazeres são mais intensos quando privados. Nenhum pecado é mais sedutor que o pecado feito em segredo. Há razões para pensar que Wilde teria recuado diante da tendência de “vestir a camisa” da própria sexualidade — como fazem muitos hoje —, em vez de fazer desses desejos a matéria de gratificações sutis e ocultas. A “ilusão”, em famosa frase sua, “é o primeiro de todos os prazeres”. Wilde foi capaz de racionalizar suas tentações ao mesmo tempo que desfrutava da “emoção” do fruto proibido. Mas em seu coração, nos mais íntimos de sua consciência, que culpa o espreitava?

Assim como a homossexualidade no único romance de Wilde, “O Retrato de Dorian Gray”, é óbvia sem ser patente, muitos querem pecar sem restrições, mas sem ser vistos. “O Retrato de Dorian Gray” explora a fantasia do vício insuperável, apenas para descobrir que, ainda que se possa furtar à justiça, não há como escapar da consciência. Escrito em 1890, as tonalidades homossexuais do romance foram usadas como prova no processo criminal por difamação movido contra Wilde pelo Marquês de Queensberry, que, em 1895, acusou o escritor de promiscuidade com seu filho, Lord Alfred Douglas. Wilde foi considerado culpado de indecência grosseira e condenado a dois anos de trabalhos forçados, dos quais nunca se recuperou. Morreu pobre e desonrado em 1900. Como seu herói trágico, Dorian Gray, Oscar Wilde tentou esconder algo sobre si mesmo na arte, e acabou sendo traído por ela.

Cena de uma adaptação de “O Retrato de Dorian Gray” para o cinema, de 1945.

Quando Dorian Gray vê seu retrato pela primeira vez, fica encantado e enfurecido. Cativante, o retrato promete ridicularizar o menino egocêntrico e inseguro, cristalizando a beleza juvenil que ele deverá perder gradativamente. O retrato evoca de súbito a imagem negativa que Dorian tem de si no subconsciente, a qual só irá acentuar-se com o tempo, à medida que sua aparência física for se distanciando da perfeição da imagem. O retrato de Dorian Gray é a um tempo ícone complexo de narcisismo e de ódio a si mesmo. Abraçando a ideia de que seu único valor é a beleza, Dorian Gray pede em oração que ela nunca desapareça e que o retrato sofra em seu lugar as sequelas da corrupção.

Mas a prece de Dorian Gray era uma barganha faustiana com o diabo, e este atende a seu terrível desejo. Dorian Gray entrega-se a uma vida dedicada a justificar a supremacia da beleza, tornando-se indigno de qualquer tipo de admiração ou de amor, embora mantenha o rosto de santo. Ele presta culto ao sensualismo, fazendo da estética um anestésico. Sua imagem registra impiedosa essa automutilação voluntária. Dorian Gray se compraz em comparar o rosto hediondo do retrato com seu próprio reflexo no espelho. Esses prazeres têm lugar na sala de aula empoeirada em que passara a infância órfã e miserável, mas que mantém agora seu segredo escondido do mundo. É a mesma sala em que aprendera a repudiar-se. A tentativa de Dorian Gray de emular dignidade termina esmagada sob uma montanha de culpa, que se agiganta à medida que a imagem se deteriora. Não há como contornar as consequências do vício a rédeas soltas por trás da máscara da virtude. Não há segurança para o pecador sorrateiro. Não há imunidade, não há como escapar da depravação gerada pelo mal ou da culpa vingativa.

A culpa que fervilha no romance não é um estereótipo. Dorian Gray não é um Raskolnikov [de Dostoievski] ou um Markheim [de Robert Louis Stevenson]. Num gênero conhecido por psicopatas e apaixonados, Dorian Gray é assustadoramente equilibrado em sua devassidão, tendendo às vezes para a neurose, mas mantendo sempre a frieza (à exceção de um momento louco e assassino). A razão disto é o elemento psicológico introduzido por Wilde na estrutura do conto gótico. Dorian está preocupado com racionalizações intelectuais que são, em última análise, ilusões destrutivas.

Quando a mentira se torna bússola moral, a moralidade é deixada de lado. Embora Dorian Gray seja hipócrita, “nenhum homem”, diz Samuel Johnson, “é hipócrita em seus prazeres”. Assim, Dorian Gray leva uma existência de experiências e emoções vazias: consome ópio, flerta com amizades cínicas, frequenta bordéis e antros homossexuais argelinos; entrega-se, numa palavra, a toda sorte de extravagâncias públicas e privadas. O retrato é a única coisa verdadeira sobre ele. “Ele tem sido como a consciência para ele. Sim, ele tem sido a [sua] consciência”.

Dorian sonhava com uma vida plena e frutuosa conforme os ditames do desejo e da beleza inalterada. Mas isso não passava de sonho, uma distração da realidade do retrato, que o consumia como um câncer. Na inutilidade de sua vida, alimenta um fascínio doentio e catártico pela putrefação retratada de sua alma em comparação com a beleza de seu rosto. Essa arrogância, uma bravata, é apenas um estratagema para retardar seu afundamento na culpa. Se ao menos pudesse afogá-la antes de afogar-se nela! Pois quanto mais venerava sua beleza, tanto mais se desfigurava na tela o olhar lascivo de Dorian Gray. “Ele via o mal simplesmente como um modo de poder realizar sua concepção do belo”. Era só uma questão de tempo…

A Inglaterra do tempo de Oscar Wilde era tão dúplice e cheia de culpa quanto Dorian Gray. A sociedade vitoriana pregava uma falsa moralidade que negava o domínio da tentação para os abastados, louvando a virtude e a beleza, mas cobiçando riqueza e status social. “O Retrato de Dorian Gray” foi o apelo brutal de Wilde para desmascarar a duplicidade vitoriana. Como na sociedade e no próprio Oscar Wilde, o romance se agita numa guerra de ideais, guerra entre ética e estética. Ainda estudante, Oscar Wilde imaginou poder conciliar essas duas facetas, de verdade e de beleza, na Igreja Católica, com sua paradoxal riqueza e rigidez. Demônios poderosos foram convocados para agir: hedonismo e helenismo. O sr. Wilde perdeu a batalha, mas não a guerra — não como a perdeu o sr. Gray. A recusa de Dorian em atender ao chamado da consciência levou a uma tragédia provocada pela culpa. Oscar Wilde se converteu à fé católica dois dias antes de morrer. Talvez sua aceitação do chamado da consciência tenha levado a uma comédia provocada pela culpa [ii].

Hoje em dia, quando decidimos ter “orgulho” de nossos pecados, nós nos tornamos o retrato — a menos que a consciência culpada nos alfinete para mudarmos de rumo. A conversão de Wilde no leito de morte indica um tipo de culpa que a Igreja é capaz de amenizar. Apesar de sua má reputação, talvez haja algo a ser dito em defesa da velha e antiquada “culpa” católica [iii].

Notas

  1. O título original do artigo é Guilt Gone Wilde: The Picture of Dorian Gray by Oscar Wilde. A expressão parece conter um trocadilho possível somente em inglês. O nome de Wilde soa como a palavra wild, que, junto ao verbo to go, tem o sentido de “ir” ou “levar à loucura”. Uma tradução literal possível para a expressão seria “culpa enlouquecida”, mas assim o paralelo com o nome do escritor se perde (N.T.).
  2. Nesta analogia entre Oscar Wilde e Dorian Gray, o autor faz um paralelo entre a tragédia e a comédia enquanto gêneros literários (N.T.).
  3. O autor termina o texto original recomendando uma edição crítica do livro de Oscar Wilde, publicada pela Ignatius Press sob a coordenação de Joseph Pearce. Como o público brasileiro em geral se sentirá muito mais confortável com a obra traduzida para a língua portuguesa, omitimos a recomendação na tradução acima; de todo modo, o trabalho de Joseph Pearce é excelente (temos inclusive vários textos dele traduzidos em nosso Blog) e a obra em questão pode ser adquirida aqui (N.T.).

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