Às portas do Tríduo Pascal, refletir sobre alguns textos da Liturgia pode auxiliar-nos a viver melhor essa época tão importante. 

Nesta matéria, publicamos três reflexões do Padre Paulo Ricardo, gravadas na Semana Santa de 2013, tomando por matéria três belos cânticos do Tríduo. Cada vídeo acompanha um breve comentário em texto, juntamente com os respectivos hinos, tanto em latim quanto em língua portuguesa.

Quinta-feira Santa: Ubi caritas

O Tríduo tem início com a Missa in Cœna Domini, marcada pelo conhecido rito do lava-pés. No centro da celebração está o hino Ubi caritas.

A reforma litúrgica de Paulo VI recuperou um gesto da liturgia primitiva: a procissão do Ofertório. O Catecismo, com efeito, menciona algumas palavras da Apologia de São Justino Mártir sobre as “grandes linhas do desenrolar da celebração eucarística” e diz a respeito das ofertas: “Em seguida, leva-se àquele que preside aos irmãos pão e um cálice de água e de vinho misturados”.

Em todo o ano litúrgico, aliás, o único dia em que a procissão das oferendas é prescrita como parte integrante da liturgia é a Quinta-feira Santa, na Missa da instituição da Eucaristia, sinal claro de que ao sacrifício de Cristo deve associar-se o dos fiéis em suas vidas. Eis a doutrina espiritual por trás do rito, um lembrete de que, se Cristo se oferece, também devemos nos oferecer com Ele

Também o hino Ubi caritas reforça a ideia de oblação. Ei-lo a seguir, com sua partitura gregoriana e, abaixo, a tradução litúrgica oficial do Brasil: 

Ant. Onde o amor e a caridade, Deus aí está!
℣. Congregou-nos num só corpo o amor de Cristo
℣. Exultemos, pois, e nele jubilemos.
℣. Ao Deus vivo nós temamos, mas amemos.
℣. E, sinceros, uns aos outros, nos queiramos.

Ant. Onde o amor e a caridade, Deus aí está!
℣. Todos juntos, num só corpo congregados:
℣. Pela mente não sejamos separados!
℣. Cessem lutas, cessem rixas, dissensões,
℣. Mas esteja em nosso meio Cristo Deus!

Ant. Onde o amor e a caridade, Deus aí está!
℣. Junto um dia, com os eleitos, nós vejamos
℣. Tua face gloriosa, Cristo Deus:
℣. Gáudio puro, que é imenso e que ainda vem,
℣. Pelos séculos dos séculos. Amém.

Movidos por tão bela composição, deixemos que o nosso coração arda de amor pelo Cristo que se doa. E, ao olharmos para a sua doação no Santíssimo Sacramento no altar, queiramos também nos doar e, em procissão, cantar: Ubi caritas et amor, Deus ibi est.

Sexta-feira Santa: Improperia

Na Sexta-feira da Paixão não se celebra Missa, porém se adora a Santa Cruz e, tradicionalmente, cantam-se os chamados impropérios, repreensões ou reprimendas de Cristo à falta de amor dos homens. Destaca-se o Triságio, uma tripla invocação de Deus três vezes santo: Santo Deus, Santo forte, Santo imortal, antífona muito conhecida por ser parte do Terço da Divina Misericórdia, embora seja muito mais antiga, remontando aos primeiros séculos da Igreja, quando não à era apostólica.

O Triságio está ligado à Paixão de Cristo desde o início. Uma tradição copta afirma que o hino seria obra de Nicodemos, o mesmo que, com José de Arimateia, enterrou o Senhor (cf. Jo 19, 39), a quem teria dito depois de o pôr no sepulcro: “Santo Deus, Santo forte, Santo imortal, tende piedade de nós”.

A tripla invocação é a resposta do povo aos impropérios, presentes na liturgia desde o século IX em memória da rejeição de Cristo por parte dos judeus. Com isso, porém, não se quer dizer que a culpa seja só dos judeus, pois todos os homens fomos, por nossos pecados, causa da Paixão. Popule meus, reclama Cristo, quid feci tibi? “Povo meu, que te fiz eu?” Responde mihi. “Eu te dei o amor, e recebi de volta o desamor”.

É o mistério celebrado na Sexta-feira Santa. Ora, assim como os impropérios são uma anamnese do caminho percorrido pelo povo eleito, todos somos convidados a fazer anamnese da própria vida, reconhecendo a presença constante da Providência divina e seus inúmeros benefícios. Eis abaixo os Improperia com sua partitura própria e em seguida a tradução que usamos no Brasil:


1. Povo meu, que te fiz eu?
Dize em que te contristei!
Que mais podia ter feito,
em que foi que eu te faltei?

℟. Deus santo, Deus forte, Deus imortal,
Tende piedade de nós!

2. Eu te fiz sair do Egito,
Com maná te alimentei.
Preparei-te bela terra:
Tu, a cruz para o teu Rei!

3. Bela vinha eu te plantara,
Tu plantaste a lança em mim;
Águas doces eu te dava,
Foste amargo até o fim!

4. Flagelei por ti o Egito,
Primogênitos matei;
Tu, porém, me flagelaste,
Entregaste o próprio Rei!

5. Eu te fiz sair do Egito,
afoguei o Faraó;
aos teus sumos sacerdotes
entregaste-me sem dó!

6. Eu te abri o mar Vermelho,
tu me abriste o coração;
a Pilatos me levaste,
eu levei-te pela mão.

7. Pus maná no teu deserto
teu ódio me flagelou;
fiz da pedra correr água,
o teu fel me saturou!

8. Cananeus por ti batera,
bateu-me uma cana à toa;
dei-te cetro e realeza,
tu, de espinhos a coroa!

9. Só na cruz tu me exaltaste,
quando em tudo te exaltei;
por que à morte me entregaste?
Em que foi que eu te faltei?

O conteúdo de cada um destes impropérios (seja no original latino, seja na tradução que usamos) deve nos levar à reflexão: qual não será a medida de nossa ingratidão para com Deus? Deus no-lo mostra de maneira inequívoca pelas reprimendas. Mas que se há de responder a uma verdade tão dolorosa? Não há melhor resposta que confessar a fé, reconhecendo em Deus aquele que é santo, forte e imortal, enquanto nós não passamos de pecadores, fracos e mortais.

Sábado Santo: Exsultet

No Sábado Santo, proclama-se o mais belo texto litúrgico de toda a liturgia latina: o Exsultet, também chamado Precônio Pascal, ou seja, anúncio e pregão da Páscoa. 

Trata-se de um canto de louvor entoado perante o Círio Pascal, vela que representa o sacrifício de Cristo, que se consumiu por nós até o fim. Por isso, o Precônio é um canto de ação de graças por um sacrifício que não se reduz à morte, mas é ele mesmo fonte de vida, e vida eterna.

Escute esta bela composição em língua latina e leia depois a tradução litúrgica do Precônio usada em Portugal (cuja partitura pode ser baixada aqui e cujo áudio pode ser ouvido neste link):

Exulte de alegria a multidão dos Anjos,
exultem as assembleias celestes,
ressoem hinos de glória,
para anunciar o triunfo de tão grande Rei.

Rejubile também a terra,
inundada por tão grande claridade,
porque a luz de Cristo, o Rei eterno,
dissipa as trevas de todo o mundo.

Alegre-se a Igreja, nossa mãe,
adornada com os fulgores de tão grande luz,
e ressoem neste templo as aclamações do povo de Deus.

E vós, irmãos caríssimos,
aqui reunidos para celebrar o esplendor admirável desta luz,
invocai comigo a misericórdia de Deus omnipotente,
para que, tendo-se Ele dignado, sem mérito algum da minha parte,
admitir-me no número dos seus ministros,
infunda em mim a claridade da sua luz,
para que possa celebrar dignamente os louvores deste círio.

℣. O Senhor esteja convosco.
℟. Ele está no meio de nós.
℣. Corações ao alto.
℟. O nosso coração está em Deus.
℣. Demos graças ao Senhor nosso Deus.
℟. É nosso dever, é nossa salvação.

É verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação
proclamar com todo o fervor da alma e toda a nossa voz
os louvores de Deus invisível, Pai omnipotente,
e do seu Filho Unigénito, Jesus Cristo, nosso Senhor.

Ele pagou por nós ao eterno Pai
a dívida por Adão contraída
e com seu Sangue precioso
apagou a condenação do antigo pecado.

Celebramos hoje as festas da Páscoa,
em que é imolado o verdadeiro Cordeiro,
cujo Sangue consagra as portas dos fiéis.

Esta é a noite,
em que libertastes do cativeiro do Egipto
os filhos de Israel, nossos pais,
e os fizestes atravessar a pé enxuto o Mar Vermelho.

Esta é a noite,
em que a coluna de fogo dissipou as trevas do pecado.

Esta é a noite,
que liberta das trevas do pecado e da corrupção do mundo
aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo,
noite que os restitui à graça
e os reúne na comunhão dos santos.

Esta é a noite,
em que Cristo, quebrando as cadeias da morte,
se levanta glorioso do túmulo.

De nada nos serviria ter nascido,
se não tivéssemos sido resgatados.
Oh admirável condescendência da vossa graça!
Oh incomparável predilecção do vosso amor!
Para resgatar o escravo entregastes o Filho.

Oh necessário pecado de Adão,
que foi destruído pela morte de Cristo!
Oh ditosa culpa,
que nos mereceu tão grande Redentor!

Oh noite bendita,
única a ter conhecimento do tempo e da hora
em que Cristo ressuscitou do sepulcro!

Esta é a noite, da qual está escrito:
A noite brilha como o dia
e a escuridão é clara como a luz.

Esta noite santa afugenta os crimes, lava as culpas;
restitui a inocência aos pecadores, dá alegria aos tristes;
derruba os poderosos, dissipa os ódios,
estabelece a concórdia e a paz.

Nesta noite de graça,
aceitai, Pai santo, este sacrifício vespertino de louvor,
que, na solene oblação deste círio,
pelas mãos dos seus ministros Vos apresenta a santa Igreja.

Agora conhecemos o sinal glorioso desta coluna de cera,
que uma chama de fogo acende em honra de Deus:
esta chama que, ao repartir o seu esplendor,
não diminui a sua luz;
esta chama que se alimenta de cera,
produzida pelo trabalho das abelhas,
para formar este precioso luzeiro.

Oh noite ditosa,
em que o céu se une à terra,
em que o homem se encontra com Deus!

Nós Vos pedimos, Senhor,
que este círio, consagrado ao vosso nome,
arda incessantemente para dissipar as trevas da noite;
e, subindo para Vós como suave perfume,
junte a sua claridade à das estrelas do céu.

Que ele brilhe ainda quando se levantar o astro da manhã,
aquele astro que não tem ocaso,
Jesus Cristo vosso Filho,
que, ressuscitando de entre os mortos,
iluminou o género humano com a sua luz e a sua paz
e vive glorioso pelos séculos dos séculos.
Amém.

A Páscoa é isso, afinal — ler, narrar e proclamar as maravilhas de Deus na história da salvação, de modo que se torne ainda mais visível o dom de sua graça na vida da Santa Igreja e na de cada um de seus membros.

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