No antigo calendário litúrgico, o dia 1.º de agosto é dedicado a uma santa família do Antigo Testamento, que morreu martirizada durante a perseguição do rei Antíoco IV Epifânio, por volta do ano 150 a.C.: trata-se da comemoração dos Santos Macabeus, que, embora não conste mais no calendário reformado, é uma celebração tradicional, antiquíssima e quase universal, sendo recordada também nos ritos ambrosiano e bizantino. O prefácio da Missa de hoje no rito de S. Ambrósio chega a contar em detalhes o martírio desses irmãos: 

É justo e salutar, em honra do vosso nome, Senhor, celebrar anualmente com toda admiração os vossos santos mártires Macabeus, irmãos pelo nascimento, semelhantes pela paixão. Concebeu-os a mãe em seu útero e coração, a fim de que os que havia gerado ao mundo segundo a carne, pelo espírito de fecundidade os gerasse a Deus onipotente para a vida. Porquanto os que nasceram carnalmente para a morte, religiosamente morriam para a vida. Cortam-se-lhe as línguas, arranca-se-lhes o couro cabeludo: e entre estes <tormentos> os gloriosíssimos jovens não se lamentavam, para serem mais cruelmente punidos; mas antes exultavam, para mais gloriosamente expirarem e serem assim consolo e exemplo uns para os outros. Depois de todos eles, foi, por fim, a vez da mãe pelo sangue e pela fé: não porque fosse ela a última, mas para que entregasse antes a Deus os frutos do seu ventre e alcançasse, segura, o prêmio de sua oferenda (tradução e grifos nossos).

O relato completo, porém, do que aconteceu a esses irmãos e a essa mãe encontra-se nas próprias Escrituras, no cap. 7 do Segundo Livro dos Macabeus

“Martírio dos Sete Macabeus”, por Antonio Ciseri.

Os filhos, num total de sete, “foram um dia presos com sua mãe” e instados a comer carne de porco, “por meio de golpes de azorrague e de nervos de boi” (v. 1). Um azorrague era uma espécie de açoite feito com tiras de couro e que possuía, em cada ponta, um instrumento cortante ou pedaços de articulações de carneiro. 

O espírito daquela família, no entanto, era resoluto. Nenhum dos terríveis golpes de azorrague diminuiu-lhes o fervor em cumprir a vontade de Deus: “Estamos prontos a morrer, antes de violar as leis de nossos pais” (v. 2), disse um deles, sem medo.

As torturas se seguiam, como em um conto de terror: “O rei ordenou que aquecessem até a brasa assadeiras e caldeirões” e “que cortassem a língua do que falara por todos e, depois, que lhe arrancassem a pele da cabeça e lhe cortassem também as extremidades, tudo isso à vista de seus irmãos e de sua mãe” (v. 3-4).

O que fizeram, então, aqueles rapazes, vendo seu irmão ser cruelmente torturado até o suplício? Não renunciaram a seu propósito, nem titubearam, mas “exortavam-se mutuamente a morrer com coragem” (v. 6). Animados pela esperança na ressurreição dos mortos, eles entregavam bravamente sua vida a Deus, um após o outro.

Chegando o momento de infligir a morte ao filho mais novo, Antíoco recuou por um instante. Ele insistia com o caçula, “prometendo-lhe com juramento torná-lo rico e feliz, se abandonasse as tradições de seus antepassados, tratá-lo como amigo e confiar-lhe cargos” (v. 24). Mas nem assim o jovem cedia. Então o rei tentou conversar com sua mãe: mandou que ela se aproximasse e o fizesse mudar de opinião, a fim de conservar a própria vida.

Mas o que fez aquela mulher, que tinha visto seus outros seis filhos serem torturados e mortos diante de si? O que fez aquela mãe dolorosa, que a essa altura já tinha dilacerada a alma? A Escritura diz que “ela consentiu em persuadir o filho” (v. 26), mas que, em seguida, exortou-lhe, falando em língua materna: “Meu filho, não temas este algoz, mas sê digno de teus irmãos e aceita a morte, para que no dia da misericórdia eu te encontre no meio deles” (v. 27.29).

Esta santa mulher, mesmo acabrunhada pelo sofrimento de perder todos os seus filhos, estava consciente de haver algo muito pior que a morte do corpo. Depois, “seguindo as pegadas de todos os seus filhos, a mãe pereceu por último” (v. 41). Naquele dia, uma família inteira entregava-se em sacrifício a Deus. Eles preferiram morrer a violar as leis de seus pais, a abandonar as tradições de seus antepassados.

Mas o que eram essas leis e tradições, e pelas quais esses santos deram a vida? Não se tratava de meras convenções humanas, e por mais dignos de honra que fossem seus antepassados, não foi simplesmente por eles que os mártires macabeus derramaram o próprio sangue. Essa família tinha consciência da origem das leis de sua religião: era o próprio Deus que as havia instituído. Por isso, desobedecer a elas era desobedecer a Deus. Foi para não ofendê-lo, portanto, para não pecar, que essa mãe e esses filhos enfrentaram as mais cruéis das torturas. Eles traziam bem vivas no coração as palavras do salmista: “Vosso amor vale mais do que a vida” (Sl 62, 4).

O que essa história tem a ver conosco, não é preciso muito para perceber… O exemplo desses jovens é um testemunho luminoso da coragem que precisamos ter em nossos dias para obedecer àquilo que Deus nos ensina através da Igreja que Ele mesmo deixou sobre a terra. No tempo desses Santos Macabeus, o que havia era a lei de Moisés e o oráculo dos profetas; foi em respeito a esse tesouro que eles morreram como mártires. Nos nossos tempos, porém, como diz a introdução da Carta aos Hebreus, foi o próprio Filho de Deus quem veio ao nosso encontro, deixando à Igreja a autoridade de ensinar em seu nome; é, pois, para conservar essa doutrina — muito mais elevada, perfeita e superior do que a antiga — que nós devemos estar dispostos a morrer.

Pode parecer “antiquada” essa teologia do martírio, mas ela é uma das respostas mais contundentes à crise moral que enfrentamos hoje, dentro e fora da Igreja. Não sem razão o Papa Pio XII, em um célebre discurso a mulheres (que já publicamos na íntegra aqui), recorreu justamente à história dos Santos Macabeus para ilustrar o heroísmo que muitas vezes o cumprimento da vontade de Deus nos exige:

Pode haver situações em que o homem, e especialmente o cristão, não pode ignorar que deve sacrificar tudo, inclusive a própria vida, a fim de salvar a própria alma. Todos os mártires no-lo recordam. E os há em grande número, também em nossos tempos. Mas será que a mãe dos Macabeus e seus filhos, santas Perpétua e Felicidade, sem embargo de seus recém-nascidos, Maria Goretti e milhares de outros, homens e mulheres venerados pela Igreja e que se opuseram à “situação”, sofreram inutilmente — e até por engano — uma morte sangrenta? Certamente não. E eles, com seu sangue, são os testemunhos mais expressivos da verdade contra a “nova moral”

Ao se referir à “situação” e à “nova moral”, o Papa Pio XII se referia à chamada moral de situação, segundo a qual “cada indivíduo em cada instante e conjuntura é dono de fazer o que lhe pareça melhor, sem ataduras de nenhum gênero”; Deus, nesse sistema moral, “só dá valor à intenção reta e à resposta sincera; a ação não lhe importa”. 

Na prática, isso significa que os Santos Macabeus poderiam muito bem ter se empanturrado de carne de porco; que os primeiros mártires cristãos poderiam muito bem ter jogado o quanto de incenso quisessem diante da estátua do Imperador; que São Thomas More poderia muito bem ter aceitado o adultério de Henrique VIII; que São José Sánchez del Río poderia muito bem ter cedido à pressão de seus perseguidores e negado a Cristo Rei… Bastava, veja só, que eles trouxessem no coração uma “boa intenção” e uma “sinceridade” meio abstrata, e estava tudo certo. 

Dedução lógica de tudo isso? Os pobres mártires sofreram “inutilmente”.

Mas é evidente que esse tipo de raciocínio não se limita a interpretações do passado; tudo é calculado para dar ao homem de hoje a “liberdade” (que está mais para libertinagem) de fazer o que lhe der na telha. Assim, diante das múltiplas situações (e algumas até muito difíceis, não negamos) com que se deparam os homens de hoje, seria lícito e perfeitamente aceitável que se contrariasse um “mandamentozinho” aqui e ali só para não se “enrascar”, só para não ficar numa situação embaraçosa, só para não sofrer um “martírio branco” diante dos outros. 

Porque o cristianismo custa, porque o Evangelho é exigente — e porque não queremos nos confessar fracos, miseráveis e até obstinados, dependendo do caso —, o pecado é visto por tantos de nós como algo “inevitável”: “todo o mundo faz”, “as coisas são assim mesmo”, “ninguém é de ferro” e, afinal, “o que importa é o coração”, “Deus não vai nos tratar assim também, a ferro e fogo” etc

Dedução lógica? Quem procura fazer a vontade de Deus é bobo, ultrapassado e está sofrendo à toa. Daqui a repulsa de tantos à vida religiosa, à busca de Deus e à obediência aos Mandamentos.

Para romper com essa forma mundana de pensar, nada melhor do que olhar com fé para o exemplo dos mártires. Os Santos Macabeus podiam muito bem ter cedido à tentação de comer carne e procurado “racionalizar” depois, usando alguma “justificativa” para sua traição. Mas, se o fizessem, seriam lembrados hoje na liturgia? Mais do que isso: teriam feito a coisa certa? Teriam salvado suas almas? 

Certos teólogos modernos arriscariam a dizer que “sim”, que no fundo é preciso compreender cada situação, e que o “certo” e o “errado” são muito relativosMas, afinal, iremos seguir as novidades do momento ou as leis e tradições de nossos pais? Iremos nos guiar pelas picadas que alguns decidiram abrir no meio do mato ou pela estrada segura que percorreram os santos? Iremos seguir as últimas modas teológicas ou a Palavra eterna que diz: “Seja o vosso sim, sim; e o vosso não, não; o que passa disto vem do Maligno” (Mt 5, 37)?

Certamente é mais difícil aceitar o que nos ensina o Senhor e nos submeter ao que Ele diz, ao invés de simplesmente fazer o que bem entendermos, tentando nos “desculpar” depois com alguma história mais ou menos bem elaborada. Acontece que viver de desculpas pode até trazer facilidades, mas não traz a salvação. Esta só nos vem quando entramos em contato com a Verdade, por mais dura e dolorosa que ela às vezes nos pareça num primeiro momento. É só conhecendo a ela que seremos verdadeiramente livres (cf. Jo 8, 32). Nesta e na outra vida.

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