Os livros de fantasia podem fazer mal? Essa foi uma das dúvidas que surgiram durante as três primeiras aulas de nosso curso sobre “O Senhor dos Anéis”. A hipótese de alguém encontrar a verdade em um livro como esse — cheio de magos, dragões e elfos — ainda parece absurda a muita gente, algo compreensível se levarmos em conta o crescimento do ocultismo e outras seitas pagãs que encontram na literatura um excelente instrumento de propaganda.
Não seria melhor, então, estudar sociologia, política e coisas mais palpáveis do que “perder tempo” com fábulas inúteis e cheias de mentiras? — alguns se perguntam.
Sim, a fantasia pode mesmo servir ao mal. O próprio Tolkien admitia que, se levada ao excesso, as mitologias podem “iludir as mentes das quais veio” e produzir estragos na cultura [1]. Isso não significa, porém, que toda obra fantástica seja, por si mesma, uma coisa deplorável e da qual todos, sobretudo os cristãos, devam se afastar. Se bem usada, a fantasia tem o potencial de nos abrir para o mundo transcendente, aonde a lógica e a matemática sozinhas não são capazes de chegar. O homem precisa de poesia para viver.
G. K. Chesterton fala disso em um dos capítulos de sua “Ortodoxia”. De acordo com o escritor, o cientificismo pode ser muito mais perigoso do que os anões da Branca de Neve. Isso acontece, por exemplo, quando a ciência se fecha ao transcendente e tem a pretensão de reduzir tudo a alguns conceitos gerais. “A poesia”, diz Chesterton, “mantém a sanidade porque flutua facilmente num mar infinito”, ao passo que “a razão procura atravessar o mar infinito, e assim torná-lo finito” [2]. E o resultado, conclui o autor, é a “exaustão mental”.
A biografia de Tolkien mostra um homem profundamente preocupado com a realidade. Além de um acadêmico brilhante, Tolkien foi um pai presente e um marido fiel, que, entre as horas de serviço, sempre achava tempo para estar com a esposa e escrever cartas aos filhos. Para o autor de “O Senhor dos Anéis”, a Terra Média não era uma região longínqua, onde ele podia esconder-se das obrigações do mundo real. A Terra Média era o lugar em que ele encontrava as verdades que devem dirigir a vida de todo homem no mundo real.
Questionado uma vez sobre os riscos da fantasia, Tolkien lembrou que também as ciências — muito mais do que as fadas, aliás — serviram para criar “deuses falsos”, “teorias sociais e econômicas” que “exigiram sacrifício humano” [3]. E talvez não haja melhor exemplo disso que o do materialista Karl Marx.
Marx, ao contrário de Tolkien, rejeitava qualquer ideia de religião ou transcendência, considerando tudo como “ópio do povo” e “alienação”.
Vejam como Marx nutria desprezo por Deus e qualquer coisa que se referisse à religião. Para atrair seguidores, ele apresentava suas ideias com um caráter “científico” e, por meio da retórica, postulava a naturalidade da revolução, como meio de purificação do homem e nascimento de uma sociedade igualitária. Em seus escritos, os leitores são persuadidos de que o mundo é governado pela economia e de que a verdade nada mais é do que uma construção ideológica, usada pelas superestruturas para atrasar a revolução.
Não obstante a “cientificidade” de Karl Marx, os resultados práticos de sua teoria nunca chegaram perto de realizar aquele “ideal de justiça” do Manifesto Comunista. Ao contrário, os regimes comunistas só conseguiram produzir mais miséria, violência e desigualdade por onde passaram. E apesar de os marxistas insistirem na afirmação de que Marx foi deturpado, é realmente incrível como uma teoria que se pretendia “científica” falhou tantas vezes no confronto com o mundo real.
Na verdade, os críticos de Marx afirmam que ele ignorava a investigação científica e sua filosofia não seguia uma ordem coerente, mas se resumia a um punhado de jargões e afirmações proféticas com capa de ciência. No livro “Os Intelectuais”, o historiador Paul Johnson mostra Marx como um ideólogo que pretendia ser a todo custo o porta-voz da verdade, sem que estivesse, no entanto, sinceramente à sua procura. Karl Jaspers, citado por ele, diz que “o estilo dos escritos de Marx não é o do investigador, uma vez que ele não cita exemplos e fatos contrários à sua teoria, mas apenas o que ele claramente sustenta como sendo a verdade última” [4].
O cientificismo marxista era, afinal de contas, um sofisma capaz de convencer multidões. Até o filósofo marxista Louis Althusser achava a estrutura de “O Capital”, a grande obra de Marx, tão confusa que dizia ser imprescindível que os leitores ignorassem a primeira parte e fossem direto para a segunda parte do livro [5].
Um exemplo claro da vida pessoal de Marx, narrado pelo seu amigo Heinrich Heine, mostra como o revolucionário estava longe do ideal político que desejava pôr em prática. Conta Heine que certa feita chegou à casa de Marx e encontrou a filha caçula do amigo com “fortes cólicas que ameaçavam matá-la”. Enquanto pai, mãe e babá ficaram parados olhando, o poeta “preparou um banho, pôs a criança e, foi o que disse Marx, salvou a vida de Jenny” [6]. O ideólogo que queria salvar o mundo não conseguia cuidar da própria filha.
De fato, Marx praticamente abandonou a família em nome da revolução, algo um tanto diferente do católico Tolkien, que, para o profeta do socialismo, não passaria de um “alienado”. O paralelo entre esses dois personagens serve para ilustrar o equívoco daqueles que torcem o nariz à fantasia e negam sua contribuição à inteligência. Se o cristianismo da Terra Média é um reflexo, ainda que inconsciente, da fé de Tolkien, o que dizer então da violência presente nos mais variados sistemas comunistas do último século?
Marx propôs uma filosofia materialista para, a partir dela, construir o mundo da justiça e da igualdade. Mas o que conseguiu produzir foi a mais infeliz das utopias e um saldo de 100 milhões de mortos. Marx, mais do que Gollum, deixou-se dominar pelo poder do Anel. Tolkien, por outro lado, criou uma mitologia de seres fantásticos, como elfos, anões, magos e dragões, assim como todo conto de fadas deve ser. E com essa mitologia, transmitiu aquelas verdades eternas, que tornam a vida mais iluminada e dão ao homem um sentido pelo qual vale a pena lutar e morrer.
Eis por que vale a pena ler “O Senhor dos Anéis”, sem receio algum de que a fantasia possa fazer mal. Marx queria escrever ciência, mas escreveu ficção, ao passo que Tolkien queria escrever ficção, mas ensinou a verdade. Marx, e não Tolkien, era o verdadeiro alienado.
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