Todos os anos, a semana em que celebramos Corpus Christi é sucedida pela semana do Sagrado Coração de Jesus. São duas festas móveis da Igreja, ou seja — diferentemente do Natal, que é sempre no dia 25 de dezembro, ou do dia de São José, que é sempre 19 de março — tanto a solenidade do Corpo do Senhor quanto a de seu Sagrado Coração variam de acordo com a Páscoa, Pentecostes e a Santíssima Trindade. Com a diferença de que uma é celebrada na quinta-feira e a outra, na sexta seguinte.

Mas a proximidade entre todas essas festas — e mais especificamente as duas com que começamos o texto — não é casual. Em primeiro lugar, terminadas as festas mais importantes do ano, relacionadas à Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor; concluído todo o ciclo pascal, que vai desde o início da Quaresma até Pentecostes, a Igreja propõe à nossa meditação, na liturgia, alguns mistérios sobre os quais é preciso que nos debrucemos com mais cuidado. Daí a Santíssima Trindade, no oitavo dia de Pentecostes, e Corpus Christi, para que reflitamos por mais tempo, e com mais atenção, sobre o mistério da Santíssima Eucaristia. 

Logo a seguir, no entanto, surge o Sagrado Coração de Jesus, mas como uma continuidade da festa do Corpo do Senhor, conforme o próprio pedido de Cristo a Santa Margarida Maria Alacoque, de que se instituísse na Igreja uma solenidade a seu Coração justamente na sexta-feira depois da oitava de Corpus Christi. Não estamos falando, portanto, de duas festas “encaixadas” aleatoriamente no calendário litúrgico, mas de um arranjo proposital. Depois de adorar o Corpo do Senhor, a Igreja quer que adoremos mais especificamente o seu divino Coração. Depois de adorar o que Cristo sacrificou por nós, oferecendo-se no altar da Cruz e dizendo: “Isto é o meu corpo”, somos chamados a contemplar o lugar do porquê, a sede do seu amor divino-humano. Somos convidados a mergulhar ainda mais no mistério da Encarnação, agora indo até o centro da humanidade santíssima de Jesus.

Uma terceira festa especial

Outra prova litúrgica desta ligação íntima entre as duas solenidades está numa festa que, hoje, não consta sequer no calendário do usus antiquior do rito romano, mas que é possível recordar celebrando uma Missa votiva, ou mesmo acrescentando orações devocionais às práticas de piedade com que estamos habituados: a festa do Coração Eucarístico de Jesus — que, até a década de 1960, era prevista para a quinta-feira dentro da oitava do Sagrado Coração de Jesus.

Trata-se de uma festa bem recente no calendário da Igreja: fôra instituída pelo Papa Bento XV, em 9 de novembro de 1921 (um dos últimos atos de seu pontificado, diga-se de passagem). Os textos litúrgicos próprios — antífonas, orações e leituras — eram muitíssimo belos, ricos em matéria para a nossa meditação. 

Embora esta e outras festas tenham sido removidas do calendário romano geral por João XXIII (ou seja, antes mesmo da reforma litúrgica que se seguiu ao Concílio Vaticano II), o Papa havia disposto que a festa poderia ser mantida nos calendários locais se houvesse “razões especiais” para tanto. Foi o caso do nosso país, como se pode ver no “Próprio do Brasil” contido nas últimas páginas do Missal Romano Quotidiano de D. Gaspar Lefebvre (p. [25]ss):

Intróito (Jo 13,1; Sl 97,1)

Sciens Jesus quia venit hora eius ut tránseat ex hoc mundo ad Patrem: cum dilexísset suos, qui erant in mundo, in finem diléxit eos. Allelúia, allelúia. Ps. Cantáte Dómino cánticum novum: quia mirabília fecit. ℣ Glória Patri.

Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim, aleluia, aleluia. Sl. Cantai ao Senhor um cântico novo: porque Ele fez maravilhas. ℣ Glória ao Pai.

Coleta

Dómine Jesu Christe, qui divítias amóris tui erga hómines effúndens Eucharístiæ Sacraméntum condidísti: da nobis, quaésumus; ut amantíssimum Cor tuum dilígere, et tanto Sacraménto digne semper uti valeámus: Qui vivis.

Senhor Jesus Cristo, que derramando prodigamente sobre os homens as riquezas do vosso divino amor, instituístes o Sacramento da Eucaristia, dai-nos a graça, Vos pedimos, de amar o vosso amantíssimo Coração e de usarmos o mais dignamente possível de tão grande Sacramento. Vós que viveis.

Epístola (Ef 3,8-19)

Gradual (Is 12, 6) 

Exsúlta et lauda, habitátio Sion, quia magnus in médio tui Sanctus Israël. ℣ Notas fácite in pópulis adinventiónes eius.

Exulta e louva, morada de Sião, porque o Grande, o Santo de Israel está no meio de ti. ℣ Fazei notórios entre os povos os seus desígnios.

Aleluia (Zc 9, 17)

Allelúia, allelúia. ℣ Quid bonum eius est, et quid pulchrum eius, nisi fruméntum electórum et vinum gérminans vírgines? Allelúia.

Aleluia, aleluia. ℣ Qual é o bem dele e qual é a sua formosura senão o pão dos escolhidos e o vinho que gera virgens? Aleluia.

Evangelho (Lc 22,15-20)

Antífona do Ofertório (Sl 30,20)

Quam magna multitúdo dulcédinis tuæ, Dómine, quam abscondísti timéntibus te! Allelúia. 

Quão grande é, Senhor, a abundância da vossa doçura, que tendes reservada para os que Vos temem, aleluia.

Secreta

Tuére nos, Dómine, tua tibi holocáusta offeréntes: ad quæ ut fervéntius corda nostra praeparéntur, flammis adúre tuae divínæ caritátis: Qui vivis. 

Protegei, Senhor, os que Vos oferecem holocaustos; abrasai-os com as chamas do vosso divino amor para que mais fervorosamente se preparem os nossos corações. Vós que viveis.

Antífona da Comunhão (Mt 28,20)

Ecce ego vobíscum sum ómnibus diébus usque ad consummatiónem sæculi: dicit Dóminus. Allelúia.

Estai certos de que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos, aleluia.

Pós-comunhão

Divínis donis Cordis tui satiáti: quæsumus, Dómine Jesu, ut in tui semper amóre permanére et usque in finem créscere mereámur: Qui vivis.

Saciados com os dons do vosso sagrado Coração, Vos pedimos, Senhor Jesus, a graça de não somente permaneceremos no vosso amor, mas também de nele crescermos mais e mais. Vós que viveis.

Assim, pois, os sacerdotes que celebram no usus antiquior têm total liberdade para usar os textos acima, os quais se encontram à disposição para download aqui. Também os que rezam o antigo Breviarium Romanum podem ter acesso aos textos próprios dessa festa, através do Officia Propria Totius Brasiliæ (Pars Æstiva), p. 12ss.

Para a vasta maioria, que celebra no rito reformado de Paulo VI, também é possível rezar uma Missa votiva do Coração Eucarístico de Jesus, servindo-se de um formulário presente no Missal redentorista, que pode ser acessado aqui.

Que “razões especiais” haveria para seguir ainda hoje essa devoção, tantos anos depois de sua remoção da liturgia? Para o Prof. Peter Kwasniewski, grande estudioso do tema, a razão verdadeiramente especial é que 

Estamos vivendo em um período de extraordinária dessacralização, que pede por um aumento de devoção aos mistérios de Nosso Senhor, Nossa Senhora e os santos.

Além disso, Bento XVI deu-nos o princípio: “Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar.” (Carta Con Grande Fiducia, que acompanha o Summorum Pontificum, de 7 de julho de 2007; expõe-se aqui uma questão de verdade e não de mera disciplina.)

Essas Missas devocionais não precisam de nenhuma justificação extrínseca para seu resgate. Elas se justificam por sua introdução autoritativa, por seu histórico de uso e por seu conteúdo intrínseco: justificata in semetipsa.

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