As bases do ateísmo foram lançadas por vários filósofos, como Karl Marx, Ludwig Feuerbach, Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre, segundo os quais o “deus” do homem seria... ele mesmo.

Sartre, por exemplo, partindo do pressuposto de que Deus não existe e de que não há uma inteligência ordenadora deste mundo, defendeu que não existe uma essência humana, mas apenas uma existência, a partir da qual o ser humano vai se “construindo”.

Mas até que ponto esse tipo de filosofia é factível? Será que é mesmo possível viver tendo a si próprio como Deus? O que isso significaria na prática, levado até às últimas consequências?

É isso que investigaremos neste episódio do nosso programa Studiositas.

Estudar não é ser um “idiota culto”

Estes nossos encontros fazem parte de um verdadeiro processo formativo, para nos levar, de fato, a estudar. O problema é que as pessoas não sabem em que consiste isso.

Muitos pensam que estudar seja apenas adquirir ideias, da mesma maneira que, convencidos por uma propaganda de marketing, somos levados a adquirir um novo livro e, assim, vamos montando a nossa biblioteca. Podem até ser livros muito bons; mas, se alguém acha que estudar é apenas ler livros ou simplesmente tê-los, está tremendamente enganado. Na verdade, a pessoa que “estuda” assim se torna somente um “idiota culto”, pois não alcança aquilo que é necessário para todo processo de formação humana, a contemplação da verdade.

Em nosso último encontro, eu disse duas vezes uma frase que hoje iremos desenvolver mais, e que é a alma desta nossa formação permanente: se você quer conhecer e pensar a verdade, a primeira coisa é compreender que você é pensado! Deus pensou você. Somente Deus mesmo vê a verdade em sua totalidade.

O conhecimento técnico-positivista e sua “verdade manipulável”

As pessoas que se dispõem a estudar, hoje em dia, encontram-se diante de dois abismos: o positivismo e o progressismo.

Primeiro, há aqueles que possuem certa ingenuidade positivista, cientificista. São os que pensam a verdade como algo adquirido e manipulável — inclusive, em escala industrial. O conhecimento é sempre objetivo, técnico e cumulativo. Essa era a filosofia “da moda” na virada do século XIX para o XX. Mas as duas guerras mundiais acabaram com isso.

Aqui no Brasil, porém, nós vivemos essas guerras de forma bem remota. A carnificina das trincheiras e os campos de concentração foram algo distante para nós. Nós assistimos aos documentários sobre Auschwitz da mesma forma que vemos um filme de terror — não vivemos o drama cotidiano das duas guerras e, portanto, no campo das ideias, ainda estamos um pouco atrasados quanto à reação a esses acontecimentos.

Antes das guerras, na Europa, predominava esse mundo positivista, seguro de si. As pessoas acreditavam que tudo se reduzia ao conhecimento técnico; e nesse viés, havia a noção geral de que o conhecimento da verdade estava “progredindo”. Pois bem, no meio dessa civilização supostamente esclarecida, iluminada, racional, científica e industrial, surgiu a barbárie do nazismo: a tragédia de uma guerra com milhões de mortos, constantes bombardeios e populações inteiras de civis mortos.

Isso foi um grande golpe no otimismo positivista. Mas, como citamos acima, aqui no Brasil essa ideia démodé ainda sobrevive, principalmente, no meio militar. Os nossos militares, estupidamente, permanecem com a convicção arraigada de que vão salvar o país com conhecimento técnico. São apegados ao lema de nossa bandeira, Ordem e Progresso, que eles mesmos trouxeram do “pai” do positivismo, Augusto Comte.

Além disso, como muitos militares são maçons, insistem nos jargões anticatólicos: “Somos a favor da ciência! A Igreja representa um tempo de trevas, enquanto nós trazemos a razão”.

No entanto, assim como todo português — e nós brasileiros somos mais portugueses do que pensamos —, esses militares são capazes de ser, ao mesmo tempo, positivistas, cientificistas, iluministas, maçons e ainda irem à igreja comungar! Porque, na cabeça deles, nada disso é incoerente. E ai de quem questioná-los, pois será tratado como “radical”. Então, é comum ver aqueles que bradam: “Família, valores, Deus, pátria!” mas fecham os olhos para o adultério, o aborto, os anticoncepcionais… Então, temos aqui esse pessoal démodé que ainda não tomou conhecimento de que a Primeira Guerra Mundial representou o débâcle do positivismo.

Assim, de um lado, temos essa ala de influência cientificista e positivista, para qual a verdade é algo que pode ser submetido a análises quantitativas, em um laboratório; é algo que pode ser empiricamente provado. Então, em nome da ‘ciência’, defende-se vacina, anticoncepcional, aborto, e o que mais for possível fazer “tecnicamente”. E aí, podemos contestar, dizendo que a moral não está no campo da ciência: físicos, químicos, biólogos, matemáticos ou médicos não têm competência alguma para dizer aquilo que é bem ou mal, moral ou imoral. Isso seria como dizer que um arquiteto tem competência para prescrever um remédio. Alguém confiaria nesse receituário?

As pessoas não entendem que estão apropriando-se da autoridade da ciência (ainda que cada vez menor, porque está cada vez mais manipulada por interesses espúrios), para defender coisas que pertencem a um outro campo do conhecimento, como a moralidade.

Um “detalhe” que a ciência moderna decidiu ignorar

Há outro grupo, os progressistas, que, ao contrário dos positivistas, não acreditam que a verdade exista. São aqueles que dizem que a verdade é somente um constructo, um jogo de poder; e que, portanto, faz mais sentido “construir a nossa verdade”. Conceitos como o de “família” e “ser humano” podem ser “desconstruídos” e reconstruídos conforme for conveniente.

Por mais que a ideia de verdade para um positivista tenha seus problemas, o progressista lhe diria que ele ainda é refém de uma ideia mítica de que existe um Deus que pensou a realidade, a qual, por sua vez, seria estruturada num ser, numa ordem, e que poderíamos descobrir a verdade que está na realidade para, então, fazer ciência. Atenção: estou aqui descrevendo o pensamento cristão, ou “o pensamento medieval”, como diz o jargão que eles preferem usar.

Foi exatamente o pensamento cristão que proporcionou o surgimento da ciência: sabemos que existe uma inteligência criadora que ordenou todas as coisas e, por isso, o cientista pode procurar qual é a lógica estabelecida por aquela inteligência. Como dissemos em encontros anteriores, se houve um maremoto não é porque “Poseidon estava com raiva”, mas porque há uma lógica científica e material naquele fenômeno; uma lei definida por Deus na criação de todas as coisas.

A verdadeira ciência consiste em, com muita virtude e esforço pessoal, descobrir a ordem lógica, inteligente e profunda, que Deus estabeleceu nas coisas; e, assim, obedecer àquela lógica. Quando vemos que nosso pensamento não está adequado àquela lei, precisamos reformular as nossas ideias. Eis a ciência autêntica.

Como mencionado, os cristãos estabeleceram os fundamentos da ciência moderna; mas aí os iluministas e seus seguidores, até chegar ao positivismo, tiraram da equação um “pequeno detalhe”: Deus. Quando o ser humano começou a aventura de criar uma ciência etsi Deus non daretur — “como se Deus não existisse” —, o que aconteceu? Retirou-se o pressuposto de toda busca científica: a racionalidade presente nas coisas; porque existe uma inteligência ordenadora e criadora que deveria ser buscada, de modo que, sem isso, não há ciência.

Imagine as consequências de tirar Deus dessa equação. De que modo seríamos capazes de conhecer a verdade? Quem, ironicamente, descreve esse processo muito bem foi o marxista, revolucionário, gnóstico e ateu Max Horkheimer [1], em seu livro Eclipse da razão [2]. É uma de suas poucas obras em inglês [3], escrita quando ele recém havia chegado aos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial; foi uma espécie de apresentação do seu Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt. Na obra, Horkheimer descreveu muito bem que os positivistas pensavam as ideias como se fossem instrumentos de uma fábrica, algo totalmente manipulável. Assim como numa carpintaria, o martelo e o serrote estão à disposição como instrumentos de trabalho; para os positivistas, também as ideias e os achados científicos são objetos que se usa e manipula. Assim, perdeu-se a noção do que é a verdade, porque ela é foi instrumentalizada.

Horkheimer e Adorno exploraram bastante essa caricatura da racionalidade moderna. Eles escreveram Dialektik der Aufklärung (em português, Dialética do Esclarecimento) [4], sobre esta noção da razão como um instrumento no parque industrial da prosperidade do mundo moderno, bancário e capitalista. Há ainda outro livro traduzido para o português: Origens da Filosofia Burguesa da História [5].

Não quero fazer uma simplificação do pensamento complexo de Horkheimer, mas estou apenas destacando algo interessante: com razão, ele mostra a estupidez positivista de achar que a verdade é algo manipulável; e assim como se usa os instrumentos de uma fábrica para a confecção de um produto, também seria possível instrumentalizar ideias para implantar projetos como o fascismo e a manipulação das massas. Como ele dá esse “salto” entre o capitalismo e o fascimo? É complexo, mas há uma lógica em sua análise, ainda que não seja perfeita. Por razões várias, eu tenho outra análise sobre esse tema — mas não se preocupe, isso são apenas “notas de rodapé”; o importante é saber de onde eu tirei isso e acompanhar o meu raciocínio.

Vamos pensar a realidade: quando, dentro de uma sociedade industrial, começamos a usar a verdade de forma utilitarista, então, da mesma forma que um martelo tem a sua utilidade, a ideia de família também tem a sua. Ora, nesse cenário tem, por exemplo, o sujeito que está consumindo pornografia e evitando filhos, mas que diz: “Olha… a ideia de família é boa!”. Quer dizer, ele trata a ideia como algo útil, mas que não afeta a sua vida.

Na longa história do pensamento ocidental, quando os cristãos fundaram as universidades, acreditava-se na verdade — há um Deus que pensou a realidade; realidade esta que, justamente por isso, é racional — então, as pessoas debruçaram-se sobre o real e descobriam algo sobre essa verdade, e isso é fazer ciência. Depois, essa descoberta vai sendo aperfeiçoada, de modo que a ciência vai progredindo. Mas havia um parâmetro, um referencial lógico ao qual deveríamos obedecer e nos adequar. No entanto, ao longo da história, decidiram retirar Deus do cenário, alegando que a ciência é objetiva.

Desse modo, começaram a ver que, manipulando os conhecimentos práticos, científicos e tecnológicos, aquilo ainda “funcionava”; e assim deixaram de lado a objetividade ontológica das coisas. A verdade em si mesma não mais interessava, uma vez que já se tinha um conhecimento útil.

Um exemplo é a física de Newton. Quem entende um pouco de filosofia, talvez se recorde do que Kant diz a respeito: “Não interessa se a Física de Newton é verdadeira, mas que ela funciona”. Ou seja, não importa se ela está na verdade ontológica, na estrutura do real, — naquilo que chamamos de númenon —, ou se ela é somente algo que funciona para um objetivo restrito às nossas categorias mentais — faz-se um cálculo pelo qual o homem consegue chegar à Lua. Então, não adianta dizer que a relatividade de Einstein pôs abaixo as Leis de Newton, se o cálculo newtoniano funciona para determinado fim. Isso quer dizer, então, que se deixou de lado a verdade para buscar uma razão meramente instrumental.

Aqui no Brasil, nós vimos recentemente nas últimas eleições, um show de horrores dessa razão instrumental, por meio da manipulação da verdade. Muitos ditos conservadores, quando questionados se acreditavam naquilo que estavam falando, era como se respondessem: “Não sei, mas isso é importante”. Esse é um fenômeno abundante no mundo de hoje.

Há alguns dias, o Frei Clodovis Boff, na Conferência para apresentação de seu livro A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação, publicado pela Ecclesiæ, afirmou que há ateus que se dizem “cristãos culturais”. Eles não acreditam em Deus, mas reconhecem que o cristianismo foi importante porque produziu imponentes catedrais, grandes pensadores da filosofia etc… e agora que a influência cristã praticamente não existe, a Europa está vindo abaixo.

O que é isso senão razão instrumental? Ou seja, a verdade não é uma realidade objetiva, que exige uma mudança de vida, mesmo que isso seja um processo doloroso e lento. Para essas pessoas, importa apenas que a verdade é útil, como uma caixa de ferramentas, à qual se recorre, ou não, de acordo com o momento histórico. Assim são os herdeiros contemporâneos do positivismo.

O rei, porém, “está nu”, porque Max Horkheimer, marxista ateu, e Jean-Paul Sartre, existencialista ateu, demonstraram que esse jeito “instrumentalista” de pensar produziu Auschwitz e os campos de concentração, assim como vários outros horrores, ditaduras, extermínios e desgraças.

Quando digo que aprendo com Sartre ou Horkheimer, não estou dizendo que eles são respeitáveis. Eles são monstruosidades, que veem o argueiro no olho do outro, mas não a trave que está no olho deles. Afinal, enquanto mostram que o positivismo produziu o fascismo de Hitler, ignoram o fato de que a filosofia marxista — da qual um era simpatizante e o outro defensor explícito — gerou os gulags e mais de cem milhões de mortos no século XX. Isso é apenas um “detalhe” que passou “despercebido” na análise deles. Aí, alguém vai dizer: “Mas e você, católico, que produziu a Inquisição?” Quer saber de Inquisição? Pois bem, assista ao meu curso a respeito do tema. Nele, você encontrará a explicação histórica, onde condeno tudo que é condenável, e mostro tudo que foi verdadeiramente a Inquisição — não essa ideia caricatural transmitida por um professor militante.

Voltemos ao nosso raciocínio. De fato, quando, ao invés de servirmos a verdade, ela começa a nos servir, tornando-se mero instrumento, então começamos a manipulá-la. Enquanto a técnica é manipulada para, por exemplo, fabricar carros na linha de montagem da Ford, está tudo bem; mas o problema ocorre quando se começa a manipular bebês nos laboratórios. Então, tudo começa a ficar mais complicado!

O existencialismo de Sartre: conclusão do trauma pós-guerra

Em outubro de 1945, logo após a Segunda Guerra Mundial, o senhor Jean-Paul Sartre, ateu existencialista, fez uma conferência que depois recebeu o título: L'existentialisme est un humanisme [6] — O existencialismo é um humanismo, traduzido pela editora Vozes [7].

O ilustre conferencista começa falando sobre aquilo que abordamos na aula passada, a liberdade do homem: “il n'y a pas de nature humaine, puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir”, “não existe natureza humana porque não existe um Deus para concebê-la”. (Vamos pensar um pouco nessa frase. Embora estejamos colocando muitas ideias, no final, tentaremos amarrar as coisas para vocês meditarem. Por isso, ouçam esta aula mais de uma vez, pausem e pesquisem sobre o que estamos falando aqui. Precisamos entender o que está acontecendo e o que precisa ocorrer conosco e com os outros. Estas aulas são importantes e necessárias, mas não são fáceis, não são temas que podem ser compreendidos ouvindo somente uma vez).

Para entendermos o que Sartre quis dizer, vamos partir do experimento industrial. Tomemos como exemplo o meu celular. Algum engenheiro o concebeu. Então, quando o celular não funciona direito, eu o levo à assistência técnica, onde irão comparar o comportamento dele com aquilo que foi previsto em seu projeto, para então me dizer o que está quebrado, e qual peça é preciso trocar. Eles só podem fazer isso porque alguém concebeu o ideal esquemático e funcional do celular.

Não é possível dizermos que algo está certo ou errado se não compararmos a coisa realmente existente com a sua respectiva ideia. Nós fazemos isso o tempo todo! Você vai ao médico, que olha seu pâncreas e vê que ele não está funcionando como deveria, porque existe um ideal esquemático de como deveria ser o desempenho de um pâncreas. Então ele diz: “Você está diabético”. Se o médico não tivesse esse parâmetro, não poderia categorizar o seu pâncreas como doente. Se não houvesse um ideal do funcionamento de um modelo de celular, o técnico da assistência não poderia reconhecer o que há de disfuncional. Está claro que não tem como as coisas serem de outra maneira? Você não pode identificar algo como certo ou errado sem um ideal daquilo.

Se alguém pensou naquele objeto, ele primeiro teve essência na cabeça dessa pessoa, para depois ter existência. Thomas Edison projetou a ideia de lâmpada incandescente e, a partir dessa ideia, foi fazendo experiências, de tal forma que, no mundo real, ele foi fazendo algo comparável àquela ideia que pairava na cabeça dele. Assim que funciona: primeiro, alguém concebe algo na essência e, depois, dá existência àquilo.

Ora, mas para essas pessoas aqui “é óbvio que Deus não existe”. Em A Gaia Ciência, de Nietzsche, há uma frase: “Você não sente o fedor do cadáver divino?” [8]. Os seres humanos estão há séculos vivendo como se não houvesse Deus, que deixou de ser a força motora na sociedade. Deus foi relegado à esfera privada, reduzido a um ritual pessoal, que se faz em casa ou na igreja aos domingos, mas que não faz parte da vida social. O mundo moderno não está concebido a partir de Deus. As pessoas vivem num ateísmo prático, mesmo que muitos nem notem. Na obra de Nietzsche, o homem louco vai à praça e diz às pessoas: “Deus não existe!” Elas olham para ele com estranheza, e o “profeta”, vendo que ninguém se convencera, percebe que veio “antes do tempo” e volta para casa [9].

Pois bem, aquilo que, na virada do século XX, era para Nietzsche uma profecia apressada, após a Segunda Guerra Mundial, encontra tempos plenamente maduros. Aquelas pessoas agora se questionavam: “Se Deus existisse, como Ele permitiria essa carnificina de milhões de pessoas? Se Deus é bom, como Ele permite esse mal?” Os europeus viveram na pele a destruição de suas cidades, de suas casas, de suas vidas e de suas famílias; por isso, grande parte passou a não mais tolerar o discurso cristão de que Deus é bom. Sartre então parte daí, como se dissesse: “Finalmente, vocês enxergaram: Deus não existe”.

A livre invenção do que é o ser humano

Se não há Deus e ninguém pensou você, então você não tem essência, só existência — nisso consiste o existencialismo. E se não há um Deus que pensou você, então você mesmo tem de se construir.

Mas isso pode parecer bastante complicado. Ele diz que o homem tem de “se escolher”, só que isso causa vertigem: “L'existentialiste déclare volontiers que l'homme est angoisse”, “o existencialista declara, de boa vontade, que o homem é angústia” [10]. A condição humana é angustiante. Os cristãos, então, seriam pessoas que se refugiam, de forma infantil, em suas devoções, como forma de se reconfortar diante dessa vertigem existencial.

Portanto, a conclusão existencialista é que, se Deus não existe, não existe uma “natureza humana”, segundo a qual o homem precisa se adequar a um projeto divino. Ele diz assim: “l'homme est condamné à être libre”, “o homem está condenado a ser livre” [11], condenado a ser livre quer dizer o seguinte: você vai ter que se inventar [12].

Nessa linha de pensamento, é claro que há uma reação contundente contra quem, por exemplo, “insiste” em ser católico. É como se nos dissessem assim: “Deus não existe, mas vocês, tolos, continuam se comportando como se Ele existisse”. Eles agem como se os católicos quisessem oprimir as pessoas com algo inventado, um Deus de amor e de bondade, que na verdade não passa de uma ideologia criada para encarcerar a humanidade num comportamento castrador, repressor e desequilibrado. É como se nos tornássemos menos humanos por não aceitarmos a “angústia da liberdade”.

Sabendo como essas correntes pensam, conseguimos perceber que esse positivismo cientificista dos nossos pretensos conservadores não vale para nada; pois quem diz ser “conservador”, sem acreditar em Deus, é simplesmente um manipulador. Alguém que usa o bordão “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, mas não crê nisso nem muda de vida, está interessado apenas em manipular os outros para o seu projeto de poder.

Quanto aos progressistas, nós temos o direito de não estar de acordo com eles, de dizer: “Basta! Parem!”; porque eles não vão parar, enquanto não tirarem os filhos de seus pais, para colocá-los nas escolas concebidas por eles, a fim de que tenham “novos horizontes” e sejam “livres para se autoconstruir”. Como diz Sartre, citando Dostoiévski (fora do contexto original): “Si Dieu n'existait pas, tout serait permis”, “se Deus não existir mais, tudo é permitido” [13].

Se Sartre estivesse vivo, ele diria: “Deus morreu, somos livres! Então, tire essa sua correntinha de consagração a Nossa Senhora! Pare com isso! É exatamente isso que os católicos são, escravos. Eles usam essa cadeia porque aceitaram um pensamento de acorrentados, mas nós somos livres!”

Uma falsa escolha para uma falsa noção de liberdade

Precisamos entender que esse falso impasse entre o positivismo cientificista e o ateísmo anárquico-revolucionário é somente uma falsa escolha; porque todos eles partem do pressuposto de que Deus não existe e não pode existir.

Como mencionamos na aula passada, Jean Paul Sartre está usando a palavra “liberdade” de forma equívoca. Assim como a palavra “manga” pode designar uma fruta ou a parte de uma camisa, também a palavra “liberdade” pode ter dois significados.

“Liberdade”, para Sartre, significa “poder escolher”. O problema é que essa liberdade omnímoda — segundo a qual só somos livres se pudermos escolher absolutamente tudo — é contraditória em qualquer pessoa que não seja o próprio Deus.

Uma experiência fundamental

Agora, vamos partir da realidade: você acha que é Deus? Essa pergunta não é irônica, só a estou fazendo porque, se você disser que “sim”, então não consigo lhe ajudar, é o fim da nossa conversa. Isso porque precisamos partir de uma experiência fundante e fundamental, que é a seguinte: ainda que algum de nós não saiba se Deus existe ou não, é certo que você não é Deus, não é o Criador do céu e da terra.

A prova de que você não é o criador da realidade é a seguinte: já quebrou o braço alguma vez? Já bateu o carro? Foi à falência? Endividou-se? Teve uma doença com a qual não conseguia se levantar da cama? Enfim, já teve alguma coisa que gravemente impediu a sua vontade? Se você for uma pessoa adulta minimamente normal, que já sofreu contrariedades e constatou que a sua vontade não pode ser feita sempre.

Há momentos em que a sua vontade é absolutamente contrariada e você fica impotente diante da realidade, certo? Isso mostra que você não é Deus. E se não é Deus, quer dizer que existe algo que “pré-existe” em relação a você, assim como é bastante razoável dizer que eu também não existi desde sempre. Isso também é uma experiência fundante e fundamental. Nós não nos comportamos como quem tenha existido desde sempre; isso significa que a realidade nos precede na existência. Ela não segue nossas vontades, caprichos e desejos.

Na aula passada, vimos Marx citando Demócrito e concluindo que não pode haver nenhum outro Deus além da divindade suprema, que é a autoconsciência humana [14]. Marx não conseguiria viver cinco minutos assim! Isso não passa de uma abstração totalmente alheia ao mundo real. Existe algo anterior e maior do que todos nós, que possui uma racionalidade, uma lógica interior, à qual precisamos nos adequar.

Algum discípulo de Kant pode dizer: “Mas não somos nós que criamos a lógica de tudo?”. Não, também não é possível viver cinco minutos assim! No mundo real, nós nos comportamos da seguinte maneira: diante de um problema, nós “quebramos a cabeça” tentando encontrar uma lógica que já está presente na realidade, pois nela estará a solução. É assim que fazemos, por exemplo, quando o nosso carro está com algum defeito: acende uma luz no painel, indicando que há algo de errado, então levamos ao mecânico, que desmonta o veículo, investiga e faz testes até resolver o problema e, então, o carro volta a funcionar satisfatoriamente. Nesta simples experiência, estamos enxergando que existe uma lógica racional no mundo real. A nossa inteligência não é a ordenadora do mundo, como defendeu Immanuel Kant. Não somos o logos que ordena o mundo; não somos Deus.

Também não é possível viver cinco minutos como pretendia Jean-Paul Sartre, para quem o mundo é um caos desordenado, que somos capazes de ordenar em nossa mente, com a nossa “liberdade”. Isso é apenas manipulação linguística, porque existencialista algum vive isso na prática. No dia a dia, se há um problema em seu pâncreas, se ele está desordenado porque o corpo não está produzindo insulina, é preciso tomar uma série de medidas: medir o índice glicêmico durante o dia, tomar uma injeção de insulina e assim por diante. Com isso, você está dizendo que o seu corpo tem uma lógica, e comportando-se como se alguém, de fato, tivesse pensado o seu pâncreas. Quem não concorda com isso, deveria parar de ir ao médico, porque, afinal, segundo os existencialistas, cada ser humano escolhe o pâncreas do jeito que quiser.

Ateísmo por conveniência

Vê-se claramente que os seres humanos se comportam diariamente pressupondo que existe uma ordem na realidade, que a nossa inteligência deve buscar, a fim de adequar-se a ela. Fazemos isso o tempo todo, do mecânico ao pâncreas, mas só não queremos fazê-lo quando isso afeta a nossa moral sexual ou exige de nós uma mudança de comportamento.

Quando a situação aperta e precisamos mudar, é mais fácil dizer que “vivemos num mundo pós-moderno, fragmentário, no qual não sabemos o que é a verdade, porque Deus não existe e ninguém pensou em ordem alguma. Afinal, o homem só tem existência, não tem essência”. Nós nos comportamos como se Deus existisse o tempo todo, exceto quando isso “aperta o nosso calo”, quando esse “detalhe” chamado Deus nos exige mudança de vida. Nessas horas, convém dizer que a “mudança de vida” é somente um discurso manipulador da Igreja Católica, que quer nos colocar em correntes, criando pessoas recalcadas, reprimidas, doentes e alienadas.

Vamos, então, aos problemas que precisamos considerar. Primeiro, é preciso admitir: realmente, tem muito “doido” na Igreja. No Brasil, então, eles abundam! É interessante notar que os europeus, que estão há três séculos sofrendo com a mentalidade revolucionária, criaram um certo inconsciente de “ateus revoltados”. Ilustro: um italiano bebe demais e blasfema; um brasileiro bebe demais, vai à Igreja, ajoelha-se na frente da imagem de Nossa Senhora, descabela-se e chora.

Um padre italiano já falecido, Padre Antonio Colussi, dizia: “O brasileiro tem um inconsciente religioso”. Quando enlouquece, o brasileiro vai à Igreja. Isso deve ter lá as suas razões culturais, que não vou explorar agora, mas a quantidade de “doido” que vê Nossa Senhora e diz receber revelações é um negócio sem fim; e você vê claramente que a pessoa tem um “parafuso a menos”. Dito isso, concedo que há, sim, muitos loucos dentro da Igreja — mas isso não é um fato representativo nem é a essência da Igreja. Infelizmente, sequer os reverendos padres e bispos atuais representam o que é a Igreja, que está visivelmente em crise.

O Frei Clodovis Boff, na já mencionada palestra, usou o exemplo de um estabelecimento comercial no Acre, onde ele mora: existe uma loja chamada Agroboi; mas não é voltada à agricultura (agro) nem à pecuária (boi), ela vende material de construção! O estabelecimento surgiu, originariamente, vendendo insumos de agropecuária, porém mudou de ramo e, como o nome já fazia sucesso e a loja tinha história, foi mantido o nome Agroboi. A partir dessa história, o frei conclui: “A Igreja virou isso!”

Obviamente, ele não está se referindo à Igreja conforme foi fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre a qual as portas do inferno jamais prevalecerão; mas a um número enorme de pessoas que se acham católicas, mas são Agroboi. Nosso Senhor fundou a Igreja para que as pessoas se convertam, amem-no, recebam o Espírito Santo, transformem as suas vidas e cheguem ao Céu. No entanto, muitos agora na própria hierarquia dizem que a Igreja tem que se adequar ao mundo moderno. Então, se o mundo moderno quer casamento gay, ordenação feminina, divórcio, masturbação, então a Igreja deve aceitar tudo. Querem uma Igreja Agroboi: que mude todo o seu conteúdo mas continue com o nome de Igreja Católica.

Estou aqui fazendo essa paródia, citando o Frei Clodovis Boff, para chegarmos a um ponto importante: o que é a Igreja Católica e por que ela não é “escravizadora”? Por que ela não é essa caricatura que fazem dela?

Presos a essa “corrente”, somos verdadeiramente livres

A Igreja é um caminho de santidade. Quando São Luís Maria Grignion de Montfort criou a consagração à Nossa Senhora com as cadeias de consagração devocionais, ele não estava criando nenhuma caricatura ou paródia de seres humanos, mas, sim, mostrando que, quando a criatura obedece à estrutura do ser, que é Deus, e faz a sua santa e divina vontade, ela se torna verdadeiramente livre! Nosso Senhor Jesus Cristo disse “a verdade vos libertará” (cf. Jo 8, 32). Então, a verdadeira liberdade consiste em sermos escravos de amor, e é isso que aquela correntinha quer dizer!

Nós, católicos, aceitamos livremente a estrutura do ser. Não seremos “revoltados”, mas usaremos o nosso livre-arbítrio para fazer a vontade não do Sartre, do Horkheimer, do Partido ou da claque revolucionária, mas a de alguém que morreu na Cruz por mim. Não há melhor “negócio ou investimento” que poderíamos fazer, porque Jesus nos amou e, em sua sabedoria, Ele sabe o que é melhor para nós. Ora, isso só gera pessoas saudáveis espiritualmente, e não pessoas doentes.

O amor nunca adoeceu ninguém! Mas quem diz que ama e não tem uma “corrente”, um vínculo com nada ou ninguém, então não ama de verdade. Você diz que ama, mas descarta as pessoas como se fossem objetos de consumo? Hoje você tem uma mulher, amanhã tem outra; depois descobre que algum bem material é mais importante e descarta a pessoa; anos depois, experimenta ser homossexual, transsexual, parassexual, decide ter relacionamentos com animais, plantas… e quer dizer que tudo isso é amor?

O próprio conceito do amor é o de um vínculo, uma aliança com o outro: a pessoa se importa com quem ela ama. Mas, nesta concepção moderna do amor, as pessoas não se importam nem mesmo com si próprias. De que forma você, que não se ama, vai amar aos outros? Você, que não ama a si mesmo como Deus lhe fez e escolheu! Alguém pensou você. Essa é uma experiência fundante e fundamental da qual não conseguimos sair.

No início desta aula, comecei dizendo que, se queremos estudar, conhecer e pensar a verdade, precisamos entender que alguém nos pensou. Por que esse pressuposto é tão importante? Porque não dá para viver fora disso.

Nós nos comportamos o dia todo na certeza de que as coisas têm uma lógica, a qual precisa ser encontrada pela nossa inteligência. Quando não conseguimos encontrar essa lógica, concordamos que estamos diante de um problema a ser resolvido. Quem está com um molho de chaves na mão, sem conseguir abrir uma porta, acaba procurando um chaveiro; não telefona para a mulher a fim de dizer: “Ah, o mundo é pluriversal, a racionalidade é um fragmento, ninguém pensou o real, então nada é coerente: a chave não abre a fechadura, então quem sabe eu nem moro nesta casa, talvez ela nem exista…”. Ninguém faz isso.

Precisamos parar com essa falta de virtude, de usar argumentos filosóficos rebuscados, que, na verdade, só servem para implantar projetos de poder. As filosofias modernas são nada mais que armas de guerra contra os cristãos ou contra qualquer outro grupo que crie dificuldades para as ideologias. No entanto, quando é preciso resolver problemas concretos, ninguém age conforme os devaneios ideológicos, todos tomam atitudes que pressupõem a existência da verdade.

É fundamental entendermos isso. Fiz questão de gastar bastante tempo argumentando e apresentando a coerência interna do argumento dos ateus, para vocês entenderem que o que eles dizem tem “lógica”, só não é verdadeiro e não é vivível. Um sistema fechado em si mesmo pode ter uma lógica interna que funciona — mas, quando se abre esse sistema ao mundo real, podemos concluir que ele não se sustenta nem funciona; que é somente uma arma para imobilizar os outros.

Pergunta: Ao estudarmos alguns filósofos antigos como os sofistas, ou os cínicos, cujo grande expoente foi Diógenes, estamos diante do mesmo fenômeno (cientificista, existencialista, revolucionário) descrito aqui?

Sim e não. Sim, porque, de fato, é uma mente que não vê a incoerência do seu pensamento e, quando tenta ser coerente com o seu pensamento, vive uma vida insustentável. E não, porque os sofistas antigos ou os cínicos nunca chegaram realmente a fazer o que vemos hoje: pessoas que estão cientes do grau de destruição que o pensamento delas causa e, ainda assim, permanecem com a mesma opinião. Existe algo de verdadeiramente demoníaco no pensamento moderno, que não estava nos sofistas antigos.

Quando Jean-Paul Sartre insistiu na ideia de uma angústia existencial, dizendo que o suicídio seria a única forma de morte autêntica, muitos jovens parisienses começaram a se jogar de cima da Torre Eiffel. E então, quando perguntam a ele: “E o senhor, por que não comete suicídio?”, ele não deu uma única resposta minimamente convincente. Ora, uma pessoa assim tem alguma coisa de profundamente má, demoníaca. Ele sabia que estava escrevendo livros que promoveriam o suicídio de centenas de jovens, mas não se importou, agiu com indiferença . Quando o pensamento de Marx e de seus próceres criou um fenômeno assassino — como está descrito no Livro Negro do Comunismo, que calculou mais de cem milhões de mortos em consequência dessas ideias — e as pessoas continuam insistindo que o marxismo é a solução, há alguma coisa profundamente má nessa atitude.

Isso são coisas que os sofistas ou cínicos nem sonhavam. Eles só tinham uma vida de pessoas “normais”: de aproveitadores, no caso dos sofistas (se é que dá para reduzi-los a isso); ou de pessoas com a vida “impossível”, como os cínicos. Mas nada tinham a ver com essa máquina de destruição que são as ideologias modernas.

Conclusão: vivamos a aventura de pensar

Este episódio de Studiositas é um itinerário, uma aula que não subsiste por si mesma: é um processo, faz parte de um caminho educacional. Nossa intenção foi: dar uma chance para que nossos adversários defendessem a sua causa; mostrar que, de fato, há uma coerência tanto no positivismo cientificista quanto nos irracionalismos recentes, revolucionários e anárquicos.

Vimos, no entanto, que esse tipo de pensamento só é possível porque já partiram de uma decisão parti pris — já tomaram partido desde o início: não pode ter Deus na história. Porque com Deus se estará dando poder a todo o status civilizacional “medieval”, ou seja, à Igreja Católica tradicional. Eis a conclusão desses grupos que, por possuírem um projeto de poder ou por almejarem uma “liberdade” a qualquer custo, então não podem aceitar isso.

No entanto, se queremos realmente pensar, e não somente ler livros, precisamos parar e dizer para nós mesmos: “A partir dessas ideias aqui, aparentemente coerente, é possível viver cinco minutos? Conseguimos passar um dia inteiro agindo a partir delas?”. Desse modo, vimos que tais ideias são impossíveis, porque não funcionam na realidade. São simplesmente um instrumento de imposição de uma vontade aos outros, ou uma forma de justificar uma consciência para viver fazendo o que quiser.

Tudo isso não é possível: como vimos na aula passada, Deus não é escravizador. Liberdade não é somente livre-arbítrio, mas uma condição. As pessoas podem, livremente, escolher entrar numa jaula, fechá-la e jogar a chave fora. Quando se usa o livre-arbítrio para gerar algo que não é o estado de liberdade, o resultado disso é a escravidão.

Mas nós podemos, também livremente, escolher seguir a estrutura da realidade, da verdade presente no ser das coisas. Qualquer um de nós — políticos, cientistas ou qualquer outra pessoa —, desde pequenos, vivemos num ambiente em que, na prática, experimentamos um mundo que tem uma inteligência estruturadora. E o ato de obedecermos a essa inteligência estruturadora gera liberdade para nós.

Este nosso programa Studiositas tem a finalidade de levar vocês a essas experiências de pensar. Então, vivamos essa aventura de pensar. Assistam novamente à aula, não tenham pressa de ir logo para a frente, porque é somente assim que poderemos verdadeiramente dizer: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Porque a verdade é o Logos, a verdade é o Cristo: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele, todas as coisas foram feitas e por nós homens e para a nossa salvação desceu do Céu e se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria”.

Ele veio nos salvar! Não estamos sozinhos, não precisamos ficar batendo cabeça. Façamos uma aliança, uma corrente de amor. Amemos, e isso nos fará profundamente livres.

Junte-se a nós!