Nas últimas formações, falamos de razão objetiva e razão subjetiva: os pensadores gregos e teólogos medievais viam a primeira; os filósofos desde Kant negando-a, sustentavam a segunda.

Só que muitos ainda não viram a fase nova em que entramos, especialmente com a Escola de Frankfurt: a ordem agora é “pôr tudo abaixo”, bem ao estilo do demônio Mefistófeles (da obra alemã Fausto, de Goethe), numa frase que Karl Marx adorava citar: “Eu sou o espírito que sempre nega! E com razão, pois tudo que existe merece ser destruído” [1].

Infelizmente, vemos a repercussão disso na cultura em geral, nas escolas e universidades e até mesmo na Igreja.

Neste 10.º episódio do nosso Studiositas, retomaremos o fio da meada, esclarecendo o que vimos há poucas semanas e relembrando o que realmente estamos fazendo com esta formação permanente (para além do “conteúdo” que lhe é transmitido todas as semanas).

Algumas orientações gerais

Gostaria de iniciar com um feedback dos alunos: muitos avaliaram que as duas últimas aulas foram um pouco mais difíceis de acompanhar.

É importante, no entanto, reiterar que não é parte fundamental do que estamos fazendo aqui “entender toda a aula”. Façam, como já recomendamos, a experiência de assistir, ouvir — ou ler — cada aula mais de uma vez. E, ainda que se compreenda apenas um trecho de cinco minutos, ótimo: se debruce nele, medite sobre esse pedaço.

O método que adotamos é exatamente o mesmo dos filósofos antigos: estamos perseguindo um tema e os alunos se perderam no caminho? Ora, então voltemos e tomemos uma outra via, com o mesmo destino, até proporcionar a todos, no final da jornada, a experiência de enxergar a realidade.

É fato que estamos o tempo todo “pensando”, mas isso não significa que estejamos sempre enxergando a verdade. Na maior parte do tempo, somos apenas prisioneiros de nossos pensamentos, fantasias e paixões. A mente trabalha constantemente. Mas está instalada na verdade? Está buscando a verdade? Ou estaria apenas girando em torno de si mesma?

Muitos têm essa experiência — às vezes bastante cansativa — de ficarem aprisionados num problema. Durante o dia, contamos para nós mesmos aquela mesma história, inúmeras vezes, como se estivéssemos num daqueles sonhos repetitivos: estamos naquele estado de semi-vigília, pouco antes de acordar, e começamos a sonhar que despertamos, nos levantamos, começamos o dia e, de repente, vemos que na verdade ainda estamos na cama — às vezes, o ciclo se repete.

Essa sensação de estarmos presos num pensamento do qual não conseguimos sair é bastante comum para muitas pessoas que vivem um sofrimento interior. É como se não conseguissem sair de uma prisão que elas mesmas criaram. E quando dizemos “que elas mesmas criaram”, não é que o fizeram por vontade própria: pode ser consequência do temperamento, de traumas, de problemas familiares.

Mas o que precisamos fazer quando estamos enredados nessa teia? Ora, precisamos nos lembrar, como disse Nosso Senhor, que “a verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

“Um povo que andava nas trevas viu uma grande luz” (cf. Mt 4, 16; Is 9, 2). Esta é a experiência de realmente começarmos a sair dessa prisão egoica, essa coisa de “estar preocupado comigo mesmo” o tempo todo.

As pessoas acham que estão fazendo um bem para si próprias, quando estão sempre imersas em seus próprios problemas. Mas, na verdade, não estão se fazendo bem nenhum; é necessário sair disso.

Então, como fazer?

Há pelo menos seis anos estamos, através de nosso apostolado, ensinando as pessoas a rezar — esta é uma forma de sairmos de nós mesmos: através da luz sobrenatural da fé.

Fé e razão levam à contemplação da verdade

O que estamos fazendo em Studiositas é algo menos convincente e, em geral, menos atrativo: estamos mostrando que, além da luz sobrenatural da fé, existe a luz natural da razão.

Na metáfora feita pelo Papa São João Paulo II em sua famosa encíclica Fides et Ratio (“Fé e Razão”): “A fé e a razão são como as duas asas com as quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade.” Ora, voar com somente uma asa definitivamente não funciona!

O então Cardeal Ratzinger disse o mesmo de uma outra maneira — para termos o referente no mundo real, lembremo-nos que temos uma só inteligência; a nossa alma e inteligência são uma só coisa.

E o que é a inteligência?

Assim como os olhos dão ao corpo a capacidade de ver o mundo sensível, a inteligência dá ao espírito o poder de contemplar a verdade. Nossos olhos, para ver o mundo, podem ser iluminados pela luz artificial de uma lâmpada ou pela luz natural do sol. A inteligência, para apreender a verdade, pode ser iluminada pela luz sobrenatural da fé ou a luz natural da razão.

Esclarecido esse pressuposto, o Cardeal Ratzinger diz o seguinte: “A fé sem a razão fica cega, e a razão, sem a fé, enlouquece”.

Muito se diz que é importante ter “uma fé cega em Deus”. É um conceito equivocado de fé. Afinal, a fé também é uma forma de conhecimento, através de uma luz em nossa inteligência — mas uma luz que vem do alto, que vem de Deus.

Muitos restringem a fé apenas a um “sentimento de confiança”, como o sentimento de uma criança que está no regaço materno. Isso é a fé fiducial — uma experiência espiritual importante, claro, mas que não define o que seja a fé propriamente dita.

Temos a fé em sentido pleno quando começamos, já aqui nesta vida, a participar da natureza de Deus.

É o que acontece quando, ainda que de forma frágil e muito incipiente, a nossa pequenina inteligência humana começa a conhecer Deus como Ele se conhece — passo fundamental para começarmos a amar a Deus como Ele se ama. Isto é, a fé nos torna divinæ consortes naturæ — “participantes da natureza divina” (2Pd 1, 4).

O que Deus faz no Céu, o que é a felicidade da Trindade Santa? Para falarmos simples desse mistério de profundidade infinita: no Céu, Deus conhece a verdade e a bondade infinita, que é Ele mesmo, e então a ama. Eis a verdadeira felicidade!

Uma utopia platônica?

Na aula passada, vimos Horkheimer afirmando que Platão, desde o início de sua obra A República, estava preocupado em mostrar como seria possível construirmos uma sociedade ideal, a fim de sermos felizes aqui mesmo na terra.

Chegamos, porém, à seguinte conclusão: ou Horkheimer nunca havia lido, de fato, A República de Platão, ou estava sendo desonesto — como o frankfurtiano era um homem inteligente, plenamente capaz de entender pelo menos o fundamental do pensamento platônico, só nos resta a segunda opção. Ora, a finalidade da Escola de Frankfurt é destrutiva, e explicar o motivo por que eles querem isso, neste momento, nos levaria muito longe.

Dito isso, vimos que em A República, através dos diálogos de Sócrates a respeito de como deveria ser a organização política, Platão está fazendo uma crítica à sociedade ateniense — superficial e decadente.

Ao mesmo tempo, Sócrates mostra-nos um caminho pelo qual podemos melhorar a nossa própria situação ontológica. Ao falar, por exemplo, de como devem ser os filósofos, ele afirma: “Convivendo o filósofo somente com o que é ordenado e divino, torna-se, por sua vez, divino e ordenado quanto o permite a natureza humana” [2].

É evidente que Platão não acreditava em visão beatífica, algo que só é revelado com Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas é interessante notarmos que o filósofo enxerga claramente o que faz com que uma pessoa “tenha uma experiência de felicidade” — embora limitada a quanto permite a natureza humana. Platão não pretende, portanto, embarcar numa vã tentativa de construir a organização política perfeita; mas afirma que podemos procurar participar de coisas ordenadas e divinas, na medida que nos permite a nossa natureza humana.

Seria isso uma utopia de Platão? Não, pois ele destaca: “o quanto permite a natureza humana”. O autor não tinha a pretensão de criar alguma “felicidade perfeita” na terra. E ainda faz o alerta: “...a calúnia pulula por toda parte”.

É verdade que, através destes nossos encontros do Studiositas, queremos estudar para usarmos tanto a nossa inteligência (luz natural da razão) quanto a nossa fé (luz sobrenatural) para contemplarmos e amarmos a verdade. No entanto, devemos sempre nos lembrar de que estamos no mundo real. Devemos, pois, nos esforçar o quanto pudermos nos estudos, mas sem nunca cairmos em nossas próprias utopias. Recordemo-nos: aqueles que iludiram-se ao ponto de desejarem construir o paraíso aqui na terra acabaram cavando, para si e para os outros, a cova do inferno.

Ansiosos por fazer o paraíso terrestre, os marxistas mataram mais de cem milhões de pessoas. Mas essa tragédia não se resume ao campo político: aqueles que quiserem transformar a sua família ou sua paróquia num paraíso, estejam certos: tornarão a vida de todos num inferno.

Platão diz que “a calúnia pulula por toda parte”. A palavra em grego para calúnia é justamente diabolé — ou seja, o diabo, esta divisão, está em todo lugar. Portanto, tenhamos cautela; fujamos sempre desses ideais utópicos.

Das “trevas” ao irracionalismo

Precisamos entender o seguinte: o diabo é o pai da mentira, e colocou na cabeça de muitos católicos que seríamos de alguma forma irracionais, obscurantistas, medievais. Muitos de nós acreditaram na narrativa — encontrada em tantas salas de aula — de que a Igreja sempre foi inimiga da racionalidade e da inteligência humana.

Muitos aprenderam com o professor de história que os mil anos entre a queda do Império Romano do Ocidente e a queda do Império Romano do Oriente, a chamada Idade Média, foi uma verdadeira Idade das Trevas. Um período de monges “tenebrosos” e de uma instituição opressora chamada Igreja Católica, que, maliciosamente, mantinha as pessoas na ignorância. Até que vieram os sábios que questionaram essas “trevas” e provocaram o Renascimento e a Idade das Luzes.

Ora, “renascimento” de quê senão do paganismo? Foi isso que fez surgir a ciência moderna, de Galileu et caterva, até que, finalmente, os bravos cientistas conseguiram desbancar a Igreja ignorante para enfim instaurar um regime de liberdade com a Revolução Francesa e o Iluminismo. Esse Iluminismo — em alemão, Aufklärung —, o chamado “século das luzes” (séc. XVIII) veio, afirmam os apologistas, trazer as pessoas definitivamente para a “inteligência”. Era como se dissessem: “Católicos, parem de atrapalhar a humanidade! Nós agora somos racionais!”

Até este ponto da narrativa, nós tivemos acesso em sala de aula: resumidamente, havia a Igreja contra a razão, mas então veio a ciência e libertou o ser humano. Eis, de certa forma, o senso comum do homem moderno. Acontece que, com as duas grandes guerras, principalmente a Segunda Guerra Mundial, aquele aparentemente maravilhoso triunfo da razão foi posto em xeque.

Antes, porém, é importante recordarmos que esse mesmo racionalismo já tinha gerado o período do Terror na França pós-Revolução, com a científica guilhotina matando seres humanos como uma máquina de moer carne. A Revolução Francesa, tão alardeada como um novo tempo de prosperidade e maravilha para a França, desencadeou, além de um morticínio, um verdadeiro caos político e social, ocasionando, no século seguinte, nada menos do que nove mudanças de regime: república, império, a Comuna de Paris, outra república, segundo império…

Em certo momento, finalmente, houve um período de prosperidade. E a humanidade, iludida, pensou que, de fato, a razão triunfaria no mundo. Mas aí vieram a Primeira e Segunda Guerras e os milhões e milhões de mortos estirados sob os escombros da mais desenvolvida civilização.

Então, num movimento reverso, ganha força na sociedade moderna um pensamento irracionalista, marcado pela crítica da razão. E trata-se de uma crítica destrutiva — motivo pelo qual pegamos como referência a obra Eclipse da Razão, de Max Horkheimer.

É essa terceira fase, irracionalista, que o católico comum não está acostumado a enxergar.

Via de regra, reconhecemos somente a transição da Idade Média para o Racionalismo (Renascimento, Iluminismo, Revolução Francesa, Revolução Industrial e tempos modernos) — “trevas” e “razão”.

O que a maior parte dos católicos ainda não sabe, simplesmente porque não estudou, é que nesta terceira fase, fase em que estamos, a razão está sendo duramente criticada, e o grande objetivo é meramente a destruição — “Bem-vindos à Escola de Frankfurt!”

Mas o que exatamente significa “destruir tudo”?

Ora, destruir a autoridade da família, a moral sexual, a identidade dos sexos, a identidade de gênero etc. Destruir de tal forma que tudo se dissolva.

Mas por que desejam fazer isso? Qual é a proposta, o objetivo, a justificativa?

A inspiração vem do Sr. Karl Marx, que por sua vez gostava de recitar sempre, principalmente em sua juventude, uma frase de Fausto, de Goethe, que ele sabia de cor: Alles, was entsteht,/ Ist wert, daß es zugrunde geht [3] (“Tudo que está de pé [tudo que existe] é digno de ir para o chão [ser destruído]”). Na tradução brasileira da Editora 34, respeitando a forma poética, está assim: “Tudo que vem a ser/ É digno só de perecer”[4]. Essa frase é dita em Fausto por Mefistófeles, o demônio com quem o personagem-título faz um pacto.

Na aula passada, lembramos uma outra frase de Mefistófeles, com que ele se definia: Ein Teil von jener Kraft, die stets das Böse will und stets das Gute schaff [5] (“Sou parte daquele poder que sempre quer o mal mas sempre cria o bem”) [6].

Tudo isso pode ser traduzido no conceito que Eric Voegelin chamou de fé metastática, que citamos na aula passada: queira o mal, promova a destruição, e você terminará fazendo o bem. Essa é a fé da Escola de Frankfurt e dos marxistas; é a fé que desvenda o que está agora acontecendo com o mundo. Estamos diante de alquimistas que só se interessam pela fase do solve, pensando que, desse modo, num “belo dia”, chegará a fase do coagula — ou seja, querem malignamente devastar a cultura para que um dia, dessa desolação, por mágica, brote o bem.

Nesse sentido, o que eles pensam que deve ser feito na Igreja? Ora, destruir a identidade sacerdotal, a liturgia, a catequese, a moral católica, os dogmas dos concílios. É preciso destruir a arquitetura sagrada, construindo igrejas disformes; é preciso promover liturgias feias e músicas ruins. Tudo isso para que, um dia — “quem sabe?” —, surja um novo cristianismo.

Naturalmente, não se trata de algo racional.

Para usar a linguagem de Horkheimer, antes nós tínhamos a já referida razão objetiva — aquela dos filósofos antigos, como Sócrates, Platão e Aristóteles; e também dos filósofos cristãos, tal qual Agostinho e Tomás de Aquino. É a razão de quem afirma que há uma inteligência criadora, um Logos que fez todas as coisas e que, portanto, imprimiu em tudo alguma inteligibilidade. Nesse sentido, o ser humano pode passar a vida como filo-sophos — “amigo da sabedoria”. Não seríamos propriamente sophos (sábios), pois essa ambição extrapola a capacidade humana; somente Deus, Logos criador, é sofos. A sofia (sabedoria) é, deste modo, um atributo divino que ao homem só cabe perseguir e contemplar — jamais possuir.

Então, o ser humano não é sábio, mas deve amar a sabedoria e passar a vida buscando aproximar-se dela. Desta forma, Platão — ainda que não acreditasse em salvação fora deste mundo — conclui, como já referimos, que, ao menos convivendo com o que é ordenado e divino, o homem tornar-se-á, por sua vez, também ordenado e divino, na medida que nos permite a natureza humana.

Por nossa vez, como cristãos, nós cremos não somente nisso, mas também na possibilidade de conhecer as coisas pela participação na inteligência divina, que se chama fé; de participar do amor divino por aquilo que chamamos caridade.

Mas como é possível desenvolvermos esses dons, na oração, se não entendemos que a graça supõe a natureza e se nunca exercemos nenhum ato de inteligência ou vontade?

Como a nossa inteligência poderá participar da inteligência divina e a nossa vontade da vontade divina se, ingenuamente, como protestantes deístas, estamos convencidos de que a inteligência só produz ídolos? Ou que “não podemos estudar demais para não perder a fé”?

Nessa concepção fideísta, a fé é reduzida à mera confiança sentimental. Como se para crer tivéssemos de “fechar os olhos e fazer força”. É uma visão baseada num assombroso desconhecimento da natureza humana; mas, não custa repetir, a graça supõe a natureza.

Portanto, antes da revolução racionalista, havia uma razão objetiva. Mas por que Horkheimer não pretende resgatá-la? Porque para ele isso é apenas mitologia. O frankfurtiano sequer se ocupa em provar a não-existência de Deus, porque para ele isso já é um pressuposto, um dado óbvio para o homem moderno. Portanto, excluindo da equação a inteligência organizadora do mundo, o que havia sobrado na modernidade? Havia-se proposto a razão subjetiva: é a própria inteligência do homem o princípio ordenador das coisas. E ele as ordena conforme os interesses vigentes. Eis o surgimento do pragmatismo.

Razão Subjetiva e suas consequências

Por um lado, portanto, havia os filósofos antigos e cristãos, que criam na existência de uma inteligência transcendente, criadora e ordenadora do mundo — quer a chamassem de motor imóvel, como Aristóteles, de demiurgo, como Platão, ou se referissem ao nosso Deus criador cristão. Nesse sentido, a inteligência humana seria um instrumento para enxergarmos com mais clareza esse ordenamento da realidade.

Acontece que houve uma secularização da sociedade, e Deus tornou-se cada vez mais um “fato privado”. Como, porém, a necessidade de se colocar uma ordem nas coisas ainda é premente, o novo paradigma, em que não se aceitam os concílios, os papas, os bispos ou o catecismo, delegou essa função ordenadora — ou reveladora da ordem — à ciência moderna.

Entra em cena, então, a razão subjetiva. Inicialmente, tentou-se desenvolver a ciência da natureza a partir da precisão da Matemática — Galileu diz que “Deus escreveu o mundo com caracteres matemáticos”. Com o perdão do trocadilho, a pretensão da ciência moderna era colocar Deus para fora da equação e encontrar um suposto resultado racional que explicasse a realidade.

Assim tentaram fazer, até que um certo pensador inglês, David Hume, apontou o seguinte problema: querer enquadrar tudo matematicamente, como tentou fazer, para um outro exemplo, Isaac Newton, não funciona. Ora, essa matematização do mundo demanda uma ordenação subjacente à realidade. Mas, não havendo Deus, qual seria o fundamento ordenador de tudo quanto existe? Essa questão colocou em crise o “esquema” racionalista subjetivo.

Afinal, por mais que se reitere que a ciência age independentemente da Igreja e descobre a ordem das coisas quase que de forma inquestionável — e essa ideia tenha se sedimentado no senso comum —, se o povo soubesse como realmente são feitas as conclusões científicas, não acreditaria nelas [7].

Certas conclusões científicas são mais ou menos como diz a ópera Rigoletto, de Giuseppe Verdi: La donna è mobile, qual piuma al vento — “a mulher é móvel (volúvel) como uma uma pena ao vento”. Assim também é a ciência: um dia dizem para não comermos ovos porque eles aumentam o colesterol, no outro, temos de comer, sim, porque os benefícios são inúmeros… As conclusões científicas são tão sólidas quanto um prego numa barra de sabão.

Voltando, enfim, à narrativa para entendermos o que é a razão subjetiva.

A solidez científica só se sustenta se tiver como pressuposto um Deus que pensou as coisas. O homem moderno, porém, já decretou que “Deus é uma mitologia”. Por isso, a ciência é pensada há décadas e décadas sob o princípio do etsi Deo non daretur — “como se Deus não existisse”.

A razão subjetiva, portanto, consiste na suposição de que o mundo, sem ordem inerente, pois lhe falta o Ordenador, ordena-se pelo contato com a mente humana.

Kant fazia isso de forma transcendental; não falava ainda de cérebro. Porém, desenvolveram-se os estudos do cérebro humano e foi se consolidando a noção de que não sabemos exatamente como é o mundo lá fora. Importa, pois, a imagem de mundo que criamos em nossa cabeça, imagem que organiza o caos exterior. Isso é o que se chama razão subjetiva.

Kant disse sua teoria em 1804. Mas ela foi sendo sucessivamente reformulada por outros filósofos, até que recebemos isso da seguinte maneira: o que é o certo e o errado? “É apenas uma convenção a partir de costumes, que podemos tranquilamente reformular”. Eis a gênese do relativismo.

Para Kant, essa organização se fazia automaticamente, pelo transcendental. Os estruturalistas dizem que se faz pela língua. Os pragmatistas dizem que é pela utilidade das coisas. E assim por diante.

Na falta de um Deus “organizador” — que seria apenas um fruto ideológico da Igreja com fins de dominação — deveríamos nós, pela nossa libertação, sermos nossos próprios deuses.

Na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, os autores afirmam claramente que nós, que estamos no mundo moderno, deveríamos dizer: Aude sapere, “ousa saber”. Ironicamente, eles se valem dessa narrativa para destruir o próprio esclarecimento. Afinal, seu programa de “esclarecimento” nada mais era do que o desencantamento do mundo — Entzauberung — , ou seja, alardear que o mundo não seria mais “mágico”: não fazia mais sentido falar de um Deus criador.

Uma vez cientes desse desencantamento, a ordem teria de ser estabelecida pelo próprio homem, e aqui está a história da razão subjetiva. Para esses pensadores, a questão da prova ou não da existência de Deus sequer entra em discussão. O certo é que existe este mundo concreto, e como não podemos viver no caos, devemos organizar a nossa existência da forma mais útil e proveitosa. Surge a segunda fase da razão subjetiva.

Mas os pensadores da Escola de Frankfurt fazem um alerta: a razão subjetiva permaneceria sendo uma forma de opressão, ainda que seu agente tenha mudado. A ordem, que antes era estabelecida pela Igreja, apelando a um deus mítico, agora seria estabelecida por meio de uma razão instrumental para vender produtos e tornar a humanidade escrava do capitalismo. Conclusão: é preciso destruir também essa razão subjetiva.

De fato, ao analisarmos, nas aulas passadas, essa história do projeto da razão subjetiva, percebemos que ele é contraditório por si mesmo. Afinal, não há como sustentarmos o conhecimento real das coisas sem nos valermos de uma razão objetiva — de um Deus que pensou e ordenou tudo quanto existe.

Teoria Crítica: a dialética do negativo

É importante frisar que toda essa linha de raciocínio não é o cerne do que queremos ensinar — mas é importante acompanharmos a narrativa histórica para entendermos como uma sociedade que cria, com razão objetiva, vai sendo desmontada até chegar à razão subjetiva.

Ao criticar também a razão subjetiva, em Eclipse da Razão, o adversário que Horkheimer tem em mente é Dewey e os pragmatistas americanos. E por que Horkheimer também critica essa razão subjetiva? Qual é sua real intenção? Afinal, qual das duas razões ele prefere? Resposta: nenhuma das duas.

A Escola de Frankfurt quer é a destruição das coisas.

Mas por quê?

É importante destacar que essa corrente de pensamento nasceu de uma crise interna do marxismo. O fato é que Marx havia teorizado que o capitalismo levaria os proletários a um tal estado de opressão que eles iriam automaticamente se revoltar. No entanto, veio a Primeira Guerra Mundial e, neste momento mais propício para a revolução marxista, nada aconteceu.

Juntaram-se, então, uma série de filósofos marxistas, promovidos pelo dinheiro do germano-argentino Felix Weil, e fizeram em 1923 a Primeira Semana de Trabalho Marxista. O objetivo do evento: investigar o que era preciso para desencadear a revolução, e o que a havia impedido.

No evento, dois filósofos importantes apresentaram suas opiniões: Karl Korsch, com o livro Marxismo e Filosofia, e Georg Lukács, com História e Consciência de Classe. Resumidamente, eles detectaram que o grande empecilho para que os trabalhadores não fizessem a revolução era o fato de que estavam “alienados” com a cultura ocidental. Conclusão inevitável: antes de mais nada, era preciso devastar essa cultura.

Eis a “finalidade” da Escola de Frankfurt, que surgiu um pouco depois, com o Instituto de Pesquisa Social. Coincidentemente, esses marxistas que começaram a criticar a sociedade ocidental (Horkheimer, Adorno, Marcuse…) eram em sua maioria judeus. Então, quando Hitler ascende ao poder, os membros do Instituto fogem, inicialmente para Genebra, depois para Paris e, finalmente, para os Estados Unidos.

Quando o Instituto de Pesquisa Social chegou aos Estados Unidos, esses intelectuais começaram a apresentar as suas conclusões a respeito do que oprimia as pessoas. E, neste ponto, retomamos o fio da meada: antigamente, as pessoas eram escravizadas pela Igreja.

Como os frankfurtianos definem, fundamentalmente, o que é a Igreja? É simplesmente um grupo que cria uma ideologia para fazer as pessoas trabalharem para uma elite.

Padres, bispos, papas, teólogos seriam responsáveis por criar uma ideologia e fazer os trabalhadores, as pessoas de classes inferiores servi-los — imitando, na terra, a hierarquia do Céu.

As pessoas, oprimidas por essa “situação insustentável”, terminaram gerando o mundo moderno, na pretensão de que, saindo do mito da razão objetiva, pudessem colocar o homem, em vez de Deus, no centro de tudo — o que chamamos antropocentrismo.

O problema, no entanto, é que esse antropocentrismo não foi o suficiente. As pessoas não eram mais subjugadas pelo sistema opressor por causa de Deus, mas agora por causa da “ciência”.

Na figura dos cientistas — positivistas, pragmatistas e toda a gama filosófica moderna —, estariam os novos “clérigos” opressores que amarram a mente das pessoas com sua ideologia. Para a Escola de Frankfurt, portanto, é necessário usar o que eles chamam de teoria crítica: a destruição de tudo pela dialética do negativo. Para eles, era a única maneira de sair desse inexorável ciclo de opressões.

O problema prático da teoria crítica — para entendermos o mundo atual — é que se “o povo” está alienado por uma ideologia que os escraviza, eles vão reagir a essa tentativa de “libertação”. Ou seja, a Escola de Frankfurt — Max Horkheimer, Wilhelm Reich, Herbert Marcuse ou um de seus seguidores brasileiros, como Fernando Haddad — pretende libertar o povo; mas o povo, alienado pela ideologia da vez, se voltará contra esses pensantes libertadores.

Para esses críticos, entretanto, não há problema algum em serem odiados. E isso explica, por exemplo, a sua real concepção de “povo” e “democracia”. Por não serem idiotas, eles sabem que o povo se voltará contra eles quando atacarem o conceito de família, desmontarem o conceito de gênero e a moral sexual. As pessoas vão se revoltar, mas essa reação já foi calculada e, por isso, eles colocam suas esperanças principalmente nas escolas.

Portanto, a estratégia frankfurtiana é manter-se no poder enquanto fazem o trabalho de desmontar as ideologias. De tal forma que esse povo, que hoje está contra eles, um dia se volte a seu favor.

“Mas o que a Escola de Frankfurt propõe em troca?” Nada! Esta é a dialética do negativo.

Consequências e contradições da Teoria Crítica

Os frankfurtianos não enxergam que a dialética do negativo conduzirá à sua própria destruição. Vejamos, por exemplo, a aplicação disso dentro da Igreja.

Existem várias “teologias da libertação”, mas um de seus ramos mais populares diz: “Temos que acabar com a opressão do clericalismo. É o povo quem deve mandar na Igreja, não os padres e bispos”. Mas quem serão os agentes a colocar isso em prática? Ora, os padres e bispos adeptos da teologia da libertação! Trata-se, portanto, de um processo autodestruidor, no qual se está usando a sua autoridade de padre e bispo para acabar com a própria autoridade de padre e de bispo. Logo, quanto mais o revolucionário tiver sucesso, menor será a sua autoridade e, por consequência, menor a efetividade de sua revolução.

Vemos claramente esse processo. Daí que esses padres e bispos, com essa autoridade solapada por eles mesmos, precisem recorrer ao autoritarismo.

Qualquer contradição não é mera coincidência. Tudo isso vem da Escola de Frankfurt. Em outro momento, podemos estudar esse tema com mais profundidade, ver o quanto isso é pertinente dentro da teologia da libertação etc. Mas isso seria simplesmente transmitir conteúdos e penso que não estamos prontos para isso.

Um aluno pode pegar esses exemplos sem jamais ter tido a experiência de enxergar, com profundidade, o que se passa; pode simplesmente tomar essa “informação bombástica” como motivo para “levantar uma bandeira”; e pode fazer isso sem medir as consequências. Mas não é essa adesão apressada e militante que resolverá o problema. A solução passa por verdadeiramente nos debruçarmos e meditarmos sobre a realidade.

Para isso, precisamos ler não somente a Escola de Frankfurt, mas também a teologia da libertação. Podemos enxergar o que há de verdade nessas teorias, nesses autores, e usar isso para o nosso próprio bem, no sentido de uma reforma interior, de uma mudança de atitude. Sendo pessoas melhores, já estaremos fazendo alguma coisa.

A finalidade do Studiositas não é usar trechos bombásticos de algo que o Padre Paulo falou para “causar” na internet. O conteúdo desta aula está, sim, repleto de informações históricas que precisamos saber, pois estão influenciando hoje a nossa vida política e eclesial.

Ora, vocês, alunos, enxergaram todas essas questões? Ótimo. Pois saibam que isso “não serve” para nada!

Uma vez que tivemos essa visão geral, voltemos a pensar: por qual motivo essas teorias todas não correspondem à realidade? No que, por exemplo, essa crítica feita pela Escola de Frankfurt pode nos ajudar a sermos pessoas melhores? Em que ponto eles têm razão?

Daqui a vinte ou trinta anos, tudo bem, vocês podem até pensar em mudar a sociedade, mas o que nos interessa no Studiositas, reiteramos, não é o conteúdo em si. Um conteúdo desses nas mãos de um irresponsável é como uma faca afiada nas mãos de uma criança. Quem insistir nesse uso “instrumental” vai se machucar e machucar os outros, além de causar destruição e divisão dentro da Igreja — algo que não nos interessa, nem à Igreja, muito menos ao próprio Deus.

É mais interessante refletirmos: no que podemos receber autenticamente, virtuosamente, as críticas dessas pessoas? No que a minha atitude mental — com base na crítica da Escola de Frankfurt — seria capaz de causar algo similar a uma Alemanha nazista? No que as minhas atitudes mentais de padre e as minhas pregações podem levar as pessoas a servir senhores que não o Senhor Jesus Cristo? Isso é usar a crítica da teologia da libertação de forma positiva, ainda que eles não sejam honestos e nem queiram construir coisa alguma.

Novamente, espero que tenha ficado claro o nosso projeto. Temos, enfim, bastante conteúdo — se o foco fosse esse, poderíamos até mesmo dar um curso inteiro sobre a Escola de Frankfurt. Afinal, há vinte anos estudo esses autores.

Mas este não é o foco do Studiositas.

O Studiositas é para outra coisa: aqui estamos interessados em você e em mim, para que possamos nos transformar a nós próprios pela luz da inteligência em contato com a verdade.

Por fim, pedimos encarecidamente mais uma vez: não fiquem pegando os conteúdos do Studiositas como bandeira, como “boas sacadas” para fazer postagens ou qualquer outra coisa. Não faça nada com isso; antes, faça com você mesmo: mude a si mesmo e aí, sim, você estará fazendo algo bom.

Junte-se a nós!