Comumente se diz que a ciência moderna, com seu rigor metodológico e clareza racional, teria começado com Isaac Newton, suposto ícone do triunfo da ciência sobre as ideias “supersticiosas” e “obscurantistas” da Idade Média.

Porém, vários estudos recentes demonstram que a historiografia sobre a vida e a obra de Newton não passou de uma grande propaganda. Afinal, por que motivo uma biografia realmente séria omitiria o fato, hoje amplamente documentado, de que Newton tinha laços muito estreitos com a Alquimia? Por que se esconde que, no próprio pensamento de Newton, a força da gravidade estaria vinculada a uma espécie de “entidade pessoal” que move as coisas à distância?

Será que o racionalismo, o surgimento da ciência moderna e a suposta busca “das coisas como elas são” não fizeram parte de um grande mito racionalista? O que está por trás dessa narrativa que tentou varrer para debaixo do tapete as superstições dos iluminados? E o que isso tem a ver com a nossa situação atual?

Eis o ponto de partida deste 13.º episódio do programa Studiositas, nossa formação permanente exclusiva para alunos.

Recapitulação

Hoje continuaremos investigando aquilo que nosso recorrente interlocutor, Max Horkheimer, chama de razão subjetiva, contrapondo-a à razão objetiva dos filósofos antigos, gregos e cristãos, segundo a qual há, no próprio ser das coisas, uma racionalidade.

Todavia, no mundo moderno, passa-se a desacreditar na racionalidade como algo próprio do ser. A racionalidade, portanto, seria algo que os humanos imprimem às coisas — eis a gênese de uma Filosofia utilitarista. Nesse sentido, os grandes interlocutores de Horkheimer são os utilitaristas, especialmente John Dewey.

Não podemos nos esquecer que, no cerne da análise de Horkheimer, está o que o autor diagnostica como a doença mental do Ocidente contemporâneo, capaz de criar horrores como o nazismo. Esse “fantasma” do pragmatismo faria, por exemplo, com que a sociedade americana — nessa época ele morava nos EUA — fosse, em sua visão, um laboratório para futuras espécies de fascismo.

Podemos dizer que Horkheimer olha para a sociedade americana como os esquerdistas hoje olham para a sociedade brasileira: enxergando “pequenos Hitlers” em cada cidadão médio, que só não realiza as mesmas atrocidades por falta de meios. Esses são os pressupostos e a convicção do autor de Eclipse da Razão.

Como teríamos chegado a isso?

Horkheimer faz uma longa análise do que ele chama de razão instrumental. Segundo ele, numa linguagem breve e popular, Hollywood é responsável por inocular todo o veneno da ideologia da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria, de modo que isso constitui os elementos básicos para que, futuramente, seja implantada uma grande ditadura fascista para escravizar a humanidade.

É interessante apontarmos que Adorno e Horkheimer realmente dedicam-se a investigar essa cultura de massa. O que estamos fazendo aqui, porém, é procurar entender quem é o interlocutor de Horkheimer e, sobretudo, aproveitar essa conversa com o autor para fazer a mesma análise e enxergar, do nosso ponto de vista, o que há de errado com a nossa cultura.

Veja: não há dúvida de que realmente há alguma coisa errada em nossa cultura. No entanto, a solução de Horkheimer e da Escola de Frankfurt é muito pior do que os sintomas daquilo que buscavam curar — é um tratamento que vai matar o paciente.

Para não perdemos nosso horizonte, recordemos que, na aula passada, fizemos uma longa exposição a respeito de René Descartes. Descobrimos que o pensamento cartesiano pode ser identificado com o início da Filosofia moderna. Nas palavras do Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ (sacerdote, filósofo e professor jesuíta brasileiro, falecido em 2002), é a partir da publicação das Regulæ ad directionem ingenii (“Regras para a direção do espírito”) de Descartes que tem início a modernidade moderna.

Começa, portanto, o tempo em que, ainda de acordo com Lima Vaz, não podemos mais fazer Filosofia sem ao menos dialogar com os pensadores modernos.

De fato, devemos estabelecer esse diálogo, mas existe um mito em relação a essa modernidade moderna: de forma costumeira, relacionamos esses referidos pensadores como homens que, sendo modernos, dariam valor único e exclusivo ao pensamento científico e à objetividade racional. No entanto, tudo isso é fruto de uma poderosa jogada de marketing.

Se perguntarmos às pessoas como elas caracterizam o mundo atual, ecoando o discurso escolar padrão, responderiam: “antes havia a Idade Média, na qual, devido à influência da Igreja, acreditava-se em anjos, demônios e outras superstições; mas, de repente, houve um desencantamento do mundo. Com a revolução do método científico e da dúvida metódica cartesiana, o mundo abandonou aquela mentalidade supersticiosa e passou a valorizar o pensamento racional.”

Descartes, ao expressar seu conceito de dúvida metódica no livro Meditações Sobre a Filosofia Primeira, diz ter notado que, na infância, tinha tomado muitas coisas falsas por verdadeiras e, portanto, deveria colocar absolutamente sob suspeita. A partir dessa dúvida generalizada é que ele deveria construir, do zero, o seu conhecimento. É assim que o homem moderno pensa e se reconhece: como um crítico mordaz, que duvida de tudo e busca a verdade pelo método cartesiano.

Assim são o próprio Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento. Recordamos que esse termo para “esclarecimento”, Aufklärung, é o que define também o Iluminismo — o período “das luzes que vem da razão”. Nesse paradigma, os autores afirmam: “[...] a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo” [1]. Desencantamento, em alemão, Entzauberung, quer dizer o “desenfeitiçamento” de um mundo que antes dava crédito a crendices e agora abre alas às luzes da razão. Há que se duvidar das coisas espirituais para fazer verdadeira ciência.

O mito do desencantamento

Adorno e Horkheimer compraram gato por lebre. Ao contrário do que se diz, aconteceu com a ciência moderna e sua ideologização aquilo sobre o qual Santo Tomás de Aquino já havia alertado: o homem foi feito para crer; e, quando a fé verdadeira lhe é tirada, ele passa a crer em qualquer coisa.

Olhando de perto o surgimento da ciência moderna, perceberemos que muitos de seus pioneiros eram envolvidos com ocultismo e feitiçaria. Francis Bacon, por exemplo, chamado de “pai do empirismo” engajou-se em estudos de ocultismo. O próprio René Descartes passou a vida cercado de amigos alquimistas e membros da Ordem Rosacruz; inclusive, fugiu da França católica pois não queria ser perseguido [2]. Descartes então se refugiou na Holanda protestante onde continuou desenvolvendo não somente suas ideias científicas, mas também aquelas espiritualmente heterodoxas. A maior parte das obras de Isaac Newton, símbolo do cientificismo moderno, versam sobre Alquimia e, como dissemos, por trás da Lei da Gravitação Universal havia, segundo ele, uma espécie de entidade, um ser que move as coisas à distância.

É esse o tão papagaiado e aplaudido triunfo da razão[3]?

Muitos desses ilustres cientistas, citados com toda pompa e circunstância em nossos livros de História, acreditavam verdadeiramente em artes mágicas, na manipulação de forças cósmicas para que agissem segundo sua própria vontade.

O já citado Francis Bacon, sempre presente no panteão dos pais da ciência moderna, criador do método da indução, utiliza uma linguagem bíblica para falar em combater os ídolos (falsas noções) daqueles que se dedicavam a fazer uma ciência correta. Ao analisarmos, porém, seus escritos, descobrimos que Bacon não queria combater o pensamento mágico; tinha apenas pretensão de livrar a magia das mãos dos supersticiosos.

Maxime Leroy, em Descartes, le Philosophe au Masque (“Descartes, o Filósofo Mascarado”) descreve que, naquela época, havia um famoso livro de feitiçaria chamado Le Petit Albert, que ensinava coisas como: “se você for em uma forca onde um ladrão acabou de ser executado e decepar a mão desse cadáver, conseguirá fazer uma poção mágica que lhe dará o poder da invisibilidade”.

É esse o clima daqueles anos iniciais da ciência moderna!

Diga-se que muitos esforços intelectuais dessa época visavam combater a ideia católica de que magia só funciona por intermédio do diabo. Afinal, consideremos que um sujeito siga a receita dessa poção da invisibilidade, faça um picadinho da mão do defunto, adicione asa de morcego, pó de pirlimpimpim e, puff, a magia realmente funcione.

Ora, a explicação católica para esse tipo de fenômeno preternatural é que a mágica funcionou por poderes demoníacos. Não por causa da mão do ladrão, de qualquer outro ingrediente ou da acurácia ritualística. Funcionou porque há um demônio interessado em seduzir o mago, colocando-o no caminho de uma falsa religião — isto, sim, é superstição.

Combatentes da superstição

A palavra superstição tem um significado católico. A origem do termo é a seguinte: quando a Igreja começou a evangelizar os povos pagãos, o cristianismo era inicialmente um fenômeno das cidades.

As pessoas que viviam no campo — ou nos pagos, daí o termo pagão —, pela dificuldade de acesso, demoraram mais para receber o Evangelho. Portanto, eram considerados os que ainda ficaram com superstiti, “sobra de crenças”. O termo superstitio — como é citado na Suma Teológica — refere-se, portanto, ao resquício de crendices pagãs entre aquelas pessoas mais rudes.

A Igreja combatia as superstições, inclusive essas crenças mágicas: a noção de que, por meio de conhecimento esotérico e segredos arcanos tremendos seria possível acessar algum poder cósmico ou força oculta para manipular a realidade.

O que muitos desses pensadores fazem, porém, é inverter esse sentido tradicional de superstição, conforme a definição católica. Francis Bacon sugere que é preciso distinguir a feitiçaria — que realmente seria uma superstição — da magia pura. Começa então a surgir no ambiente europeu esse culto da magia com ares de cientificidade. É nesse ambiente que surge Descartes.

O francês, como dissemos, foi educado no Colégio La Flèche, dos jesuítas. É um dado importante, pois ele conhecia muito bem o peso intelectual dessa ordem. Estamos falando aqui de jesuítas da antiga estirpe, antes da supressão da Companhia de Jesus, alguns anos antes da Revolução Francesa. Os revolucionários sabiam que os jesuítas eram um enorme freio à difusão de suas ideias, e por isso concluíram — acertadamente — que, para se implantar a Revolução, seria necessário primeiro abolir a Societas Iesu.

Sabendo, portanto, quem eram os jesuítas, Descartes saiu do La Flèche e foi se aventurar pela Europa: passou pela Holanda, Alemanha, Polônia, entre outros países. Nesse tempo, é abundante a sua correspondência com amigos rosacrucianos.

A Ordem Rosacruz era uma espécie de seita esotérica pré-maçônica. Eles acreditavam que o homem seria capaz, pelo conhecimento, de dominar a natureza — o que é, de certa forma, a matriz filosófica da ciência moderna.

Importante fazermos uma observação aos incautos: não estamos afirmando que a ciência moderna é uma “forma de feitiçaria”. Estamos apenas narrando o que de fato aconteceu em sua origem, para mostrar que as coisas diferem da narrativa de Adorno e Horkheimer, segundo a qual o mundo moderno nasceu de um Entzauberung, um desencantamento — com o fim da “feitiçaria” e o florescer de uma razão pura. Claramente, não foi isso que aconteceu, e é espantoso o esforço dos biógrafos e historiadores de esconder que todos esses primeiros cientistas eram ocultistas de toda espécie: alquimistas, magos, rosacrucianos. Foram pessoas que estavam na raiz da maçonaria e da Revolução Francesa.

Embora um pouco antigo, de 1929, o mencionado livro de Maxime Leroy mostra que vai sendo criada, ao longo dos anos, uma certa hagiografia ao redor de Descartes, tentando salvar a sua reputação. Por um lado, há aqueles que querem pintá-lo como devoto católico. Alegam, por exemplo, que ao ter aqueles famosos sonhos, ele teria prometido fazer uma peregrinação a Nossa Senhora de Loreto, a fim de que Deus o inspirasse na elaboração de seu novo método científico. Leroy, no entanto, aponta que não há qualquer evidência de que ele tenha cumprido esse voto.

A verdade, evidenciada nas suas correspondências, é a seguinte: Descartes não queria terminar queimado na fogueira da Inquisição e, nas cartas aos jesuítas, escrevia aquilo que os membros da ordem gostariam de ler. Leroy conclui que Descartes, o Philosophe au Masque (filósofo mascarado) mentia descaradamente para os jesuítas, enquanto mantinha amigos alquimistas, feiticeiros e rosacrucianos. Ainda que não haja evidência de que Descartes acreditasse em esoterismo ou o praticasse, Josephson-Storm mostra a impressionante quantidade de vezes que ele trata desses assuntos, e sem os desmentir — o que mostra, ao menos, quão em voga estavam esses temas.

Entre os biógrafos que tentam preservar sua reputação, é comum dizer que ele escreveu “para certo químico”. Analisando de quem se trata, percebemos que o tal “químico” era um alquimista. De fato, na época não havia diferenças entre Química e Alquimia. Há quem diga que se tratava de um “estágio ainda rudimentar da ciência”. Podemos conceder isso. Só não podemos falar, portanto, de Aufklärung, de uma era de predomínio da razão sobre a feitiçaria.

Lembremo-nos de toda a “brincadeirinha” romântica de Goethe com Fausto, de toda a admiração que Marx tinha pelo personagem de Mefistófeles e de suas poesias referindo-se positivamente a Satanás. Tudo isso são apenas recortes convenientes. É necessário, porém, contar a história completa, não apenas recortes.

Não adianta vir com a conversa fiada e caricatural de que “o Padre Paulo é um medieval que usa batina e acredita no diabo” debatendo com representantes do pensamento científico, partidários da “dúvida metódica”, homens críticos que não creem em nada que não sobreviva ao crivo da razão. Só acredita nisso quem não conhece a biografia desses pretensos cientistas.

A História como propaganda

Descartes parte da França e viaja pela Europa. Nesse ínterim, tem aqueles sonhos estranhos que acabam por mudar sua vida. Depois, de volta a seu país natal, participa de uma conferência promovida pelo núncio apostólico em Paris. Nesta ocasião, desmascara um certo sujeito que propõe um método científico falho e, no fim da conferência, tem uma conversa com o Cardeal Bérulle [4], fundador da Sociedade do Oratório de Jesus (Congregatio Oratorii Iesu) na França.

Após a conversa com o Cardeal, decide partir para a Holanda. Nas cartas para amigos católicos e para os jesuítas, que questionam o fato de ele ter se refugiado num país protestante, ele responde que a agitação da corte de Paris não lhe permite o ócio filosófico. Ora, os registros que temos de sua vida na Holanda não são nada bucólicos: Descartes era frequentador assíduo de festas na corte, tornando-se muito bem relacionado.

Na verdade, Descartes quis se refugiar nos Países Baixos para livrar-se dos jesuítas, que certamente o repreenderiam caso o pegassem difundindo erros doutrinários. Quando, em 1633, Galileu é condenado por Belarmino, um cardeal jesuíta, Descartes abandona a ideia de publicar seu Tratado do Mundo, obra de física na qual aborda sua própria tese sobre o heliocentrismo. O francês prefere seguir o seu caminho “mascarado”, sob o lema larvatus prodeo (“mascarado eu progrido”), dissimulando o seu pensamento para conseguir publicar seus livros.

Por exemplo, em todos os seus escritos em latim, como essas Meditationes, a revisão era feita por teólogos protestantes holandeses, que analisavam o texto latino e até acrescentavam seus próprios trechos — fato que é bem documentado.

Era, enfim, um sujeito que estava cercado de amigos protestantes, feiticeiros, alquimistas, rosacrucianos, e que precisava mentir e dissimular para manter sua reputação numa sociedade católica.

Quando, finalmente, seus escritos são publicados num ambiente católico, as reações são controvertidas. Mas os jesuítas enxergam os problemas e imediatamente soam o alarme, mostrando os erros daquele tipo de pensamento.

Anos mais tarde, quando surge no primeiro plano a figura de Newton, a Companhia de Jesus já se achava com os dias contados. E é isso, a queda dos jesuítas, o que torna possível, por exemplo, um Kant, que fez todo um esforço para dar uma base filosófica à ciência newtoniana.

Mas, afinal, qual era a ciência de Newton?

Para aqueles que gostam de referências, vamos a alguns livros a respeito de Newton e sua relação com a Alquimia e o Ocultismo — para mostrar que não estou criticando a ciência newtoniana por preconceitos católicos: The Janus Faces of Genius: The Role of Alchemy in Newton’s Thought (“As Faces de Jano do Gênio: O Papel da Alquimia no Pensamento de Newton”) e The Foundations of Newton’s Alchemy (“As Fundamentações da Alquimia de Newton”), de B. J. T. Dobbs; Newton the Alchemist (“Newton, o Alquimista”), de William Newman; Isaac Newton and the Transmutation of Alchemy: An Alternative View of the Scientific Revolution (“Isaac Newton e a Transmutação da Alquimia: Uma Visão Alternativa da Revolução Científica”), de Philip Ashley Fanning.

Para tratarmos do mundo moderno de forma mais ampla: Magic and Magicians in the Middle Ages and the Early Modern Time: The Occult in Pre-Modern Sciences, Medicine, Literature, Religion, and Astrology, de Albrecht Classen (“Mágica e Magos na Idade Média e no início da Idade Moderna: O Oculto nas Ciências Pré-Modernas, na Medicina, Literatura, Religião e Astrologia”). Aqui, vemos claramente que a fascinação pelo ocultismo remonta à Idade Média. Vale dizer que é no surgimento do nominalismo e na vinda do Oriente daqueles pensadores fugidos dos turcos que está a origem do chamado “Renascimento”.

Voltando à bibliografia, temos ainda: Isaac Newton’s Freemasonry: The Alchemy of Science and Mysticism (“A Maçonaria de Isaac Newton: A Alquimia da Ciência e Misticismo”), de Alain Bauer; The Metaphysical World of Isaac Newton: Alchemy, Prophecy, and the Search for Lost Knowledge (“O Mundo Metafísico de Isaac Newton: Alquimia, Profecia e a Busca do Conhecimento Perdido”), de John Chambers. Neste, é interessante descobrirmos que Newton, além de todas as suas outras atribuições, também foi um escritor apocalíptico: analisando todo o seu sistema cósmico, com a gravitação universal e outros conceitos, o cientista, acreditem se quiser, teria calculado uma data para o fim do mundo.

Percebam, portanto, que não faltam livros sobre esse aspecto nebuloso da obra de Newton, aspecto que a intelectualidade mainstream tanto se esforçou por ocultar.

Não queremos fazer a canonização dos católicos dessa época; há de se esclarecer que também dentro da Igreja Católica havia influência desses assuntos mágicos. Era uma época de muita curiosidade com relação a esse tema. Só para citar um exemplo, o rei da França na época de Descartes recebeu seu horóscopo, escrito pelas carmelitas, das mãos do Cardeal Bèrulle!

O que estamos descrevendo é que existe toda uma máquina de propaganda interessada em pintar, numa simplificação maniqueísta, os católicos como “supersticiosos” e os próceres da ciência moderna como senhores da racionalidade objetiva.

Acontece que, há muito tempo, biógrafos e historiadores têm tomado a História não como um serviço à verdade e à ciência, mas como arma de uma propaganda cujo fim é convencer o público de que podemos construir uma sociedade sem Deus, apelando exclusivamente à ciência e à técnica. Mas isso é realmente possível? Tirar Deus da equação social foi realmente sábio? O que se colocou no lugar d’Ele?

Há quem defenda que o mundo de hoje está enlouquecido, com pensamentos fascistas e ditatoriais, por culpa de “crendices”, da religião, dos cristãos e da Igreja Católica; quando, na verdade, é exatamente o contrário: ao tirar Deus da equação, o homem foi cumulado de poder e agora quer confeccionar o mundo à sua própria imagem.

É fato, pois, que a sociedade moderna está doente, e a finalidade dessa aula é justamente examiná-la, para ver se definimos um diagnóstico. Então, após essa narrativa histórica [5], façamos agora uma análise filosófica mais profunda.

A virtude e as distinções da razão

Não é possível buscarmos a verdade sem sermos homens verdadeiros. É preciso insistir nisso: um homem de mentira não pode buscar a verdade. Ora, Descartes é um monumental exemplo do contrário: o sujeito mentia e fazia jogo duplo para ter sucesso material, ainda que suas ideias, fonte de seu prestígio, não correspondessem à realidade [6].

O que Descartes fazia, muitas vezes, não era ciência, mas “ficção científica”. A tal dúvida metódica parece mais elemento de um romance psicológico cujo protagonista encarna, aos olhos do autor, o cientista ideal. No entanto, a dúvida metódica tornou-se uma bandeira de propaganda e, só por isso, até hoje tremula alvissareira nos pátios de todas as grandes universidades.

Retomemos o fio da meada: vimos que a verdade é objetiva, que há uma racionalidade presente no ser. Portanto, em primeiro lugar, o nosso pensamento, não é capaz de mudar as coisas, mas de apenas conhecê-las, ao contrário do que pensam os tecnicistas modernos que, como os velhos feiticeiros, creem que a natureza está aí para ser dominada e modificada para atender aos caprichos humanos.

Os filósofos antigos distinguiam três tipos de razão: a teórica, a prática e a poiética. A primeira buscava conhecer a verdade em si, independente da utilidade daquele conhecimento; a segunda visava um conhecimento cujo fim é a realização humana, de acordo com as virtudes que lhes são próprias; a terceira, menos apreciada pelos antigos, buscava um conhecimento meramente técnico ou artístico. Na razão teórica, o sujeito busca conhecer o objeto; na razão prática, busca transformar-se a si mesmo; e na razão poiética, ele pretende mudar o objeto. Na razão teórica, o objeto conhecido muda o sujeito; na poiética ou técnica, o sujeito muda o objeto (por exemplo, confeccionar um sapato, construir uma casa). Então, de certa forma, isso é um poder: conhecimento enquanto poder sobre as coisas.

Razão e feitiçaria

Francis Bacon ficou conhecido pela frase: “Conhecer é poder”, normalmente associada a esse domínio técnico do mundo. Josephson-Storm, em The Myth of Disenchantment, mostra que Bacon não disse exatamente isso; ele teria dito, na verdade, que “o conhecimento de Deus é poder”. E, neste caso, está muito correto.

A dinâmica natural, quando falamos no conhecimento de Deus, é que as coisas criadas mudam para se adequar aos desígnios do Criador. Porém, se aplicarmos a nós mesmos essa lógica propriamente divina, como não raro acontece, cairemos no erro de achar que a realidade toda deve se moldar ao arbítrio humano.

Vejam, portanto, que o problema não está no conhecimento técnico. O problema está em dispensarmos as razões teórica e prática em favor unicamente da razão técnica, pois isso é, em última análise, querer ocupar o lugar de Deus.

A razão técnica, sozinha, sem a razão teórica — que a enraize no ser da coisa — e sem uma razão prática — que dê ao sujeito as virtudes necessárias para obedecer à verdade — acaba se tornando muito semelhante à feitiçaria.

Ou seja, é um conhecimento compreendido apenas como instrumento de poder. E uma vez obtendo esse conhecimento poiético, sem os freios conceituais da razão teórica, e sem os freios morais da razão prática, nada impede o homem de se tornar um ditador totalitário, como Stalin, ou um capitalista ganancioso, que não se envergonha de oprimir o próximo para obter ganhos pessoais. Tal “feitiçaria” só pode levar às ideologias mais loucas possíveis, como a “ideologia de gênero” que, pela propaganda, tenta mudar até as realidades mais patentes, como os gêneros masculino e feminino.

Justamente porque a razão poiética não tem o freio do conhecimento da verdade (razão teórica) nem o freio do conhecimento das virtudes (razão prática), aqueles que têm mais poder, para se resguardar da massa de “poderosos em potencial”, planejam criar, sutilmente, um “governo mundial” — censurando as redes sociais, calando o excesso de opiniões divergentes, diminuindo a população, generalizando o “direito” ao aborto, ensinando as crianças que “menino não é menino” e “menina não é menina”. Enfim, fazem toda uma engenharia escravizadora. Afinal, só uma pequena elite é que pode ter o privilégio esotérico de moldar o mundo conforme a própria vontade.

Eis a suma da razão feiticeira, tão predominante nessa era da pura ciência.

Pergunta sobre a consciência de Descartes

“Até que ponto Descartes sabia que estava propondo algo inconsistente ao apresentar o método da dúvida metódica?”

Descartes não podia “não saber”, pois ele prometeu duvidar de tudo, mas, na prática, selecionou o que colocaria em dúvida. Por exemplo: quando ele diz que vai duvidar de tudo, esse “tudo” não inclui ele mesmo. Ora, se é possível duvidar de seus próprios sentidos, levantando a possibilidade de que eles poderiam ser a ilusão de algum gênio mal, porque não duvidar intrinsecamente de si próprio e de suas intenções?

Como dissemos, a “lição de casa” de qualquer filósofo é duvidar de si mesmo. Há que se duvidar se está sendo honesto nessa busca, se está disposto a aceitar a verdade, seja ela qual for. Descartes não mostrou honestidade tampouco disposição para obedecer a uma verdade dolorida. Sua intenção era simplesmente elaborar um pensamento original para poder vendê-lo. Com que finalidade? A investigação histórica não chegou a essa clareza.

Mas podemos afirmar com clareza que ele era intelectualmente desonesto porque, em vários momentos ele contradiz o seu conceito de “dúvida metódica”. Por exemplo: ele dividia o mundo em: espiritual (res cogitans) de um lado, e material (res extensa), do outro. Todavia, alguém que aderisse à “dúvida universal” decerto questionaria se essas dimensões da realidade não seriam produtos falsificados de um demônio enganador. Para solucionar essa questão, Descartes manda a dúvida às favas. Diz ele: “Deus existe! A prova de que Ele existe é que tenho uma ideia inata de Deus. E, portanto, já que Deus existe, Ele não poderia me enganar. Logo, o que está lá fora não é uma ilusão”.

Descartes usa esse expediente porque sabe ser impossível a dúvida universal. Fazendo um exercício básico: eu sei que existo, que tenho 55 anos de idade, e que estou vivo até agora exatamente porque não vivi uma dúvida universal. Não duvidei, por exemplo, de minha mãe, quando ela me disse que tal coisa era comida e tal coisa era veneno. Por isso estou aqui.

Agora não posso criar um “eu abstrativo”, um “real irreal”, e fazer de conta que não sei nada. Sim, eu sei de algumas coisas. E uma delas é que os seres humanos só obtêm conhecimento confiando serenamente nas próprias experiências.

Fundar o conhecimento do zero é uma pretensão descabida. O mais cético pode afirmar: “não podemos conhecer nada, porque tudo é duvidoso”. Ora, mas nessa afirmação já não há um conhecimento?

Veja, é impossível viver honestamente, por cinco minutos, sob o prisma da dúvida universal. O problema de Descartes é criar esse “eu abstrato”, que na teoria nada conhece e nada sabe, mas que, na vida concreta, levanta-se no salão de baile e vai falar com os convivas como uma pessoa normal.

Concluímos, desse modo, que toda essa busca por um pensamento completo, a partir do qual se teria uma certeza absoluta, é apenas uma ambição pecaminosa, um hybris, como diriam os gregos.

Essa ambição surgiu justamente quando o Magistério da Igreja, por causa das crises religiosas, perdeu sua autoridade. No meio daquela confusão dos diabos que foi a Guerra dos Trinta Anos, muitos pensadores concluíram que a solução era se livrar da autoridade divina e tomar para si esse posto.

Pergunta sobre a Paralaxe Cognitiva

“Isso que Descartes faz em sua filosofia pode ser considerado um exemplo de paralaxe cognitiva?”

Para aqueles que desconhecem essa expressão, ela foi cunhada por Olavo de Carvalho para denunciar uma característica básica da filosofia moderna: o fato de que certas filosofias até funcionariam muito bem, exceto para o sujeito filosofante. Ou, numa definição mais técnica: paralaxe cognitiva é o afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real anunciado pelo indivíduo [7].

Podemos ilustrar com alguém que diz conhecer certas coisas mas que proíbe os outros de as conhecer. No caso de Descartes, porém, penso que o problema é um pouco mais grave: trata-se de simples trapaça.

Ilustrando melhor: pense num sujeito que diz conhecer certas coisas mas proíbe os outros de as conhecer. Esse é o caso de um Kant, exemplo categórico de paralaxe cognitiva. Crendo fazer Filosofia, o alemão estava fazendo razoável Literatura, postando-se como um narrador onisciente que sabe o que ninguém mais sabe. Por se enxergar como observador privilegiado, o homem era capaz de dizer: “David Hume acordou-me de meu sonho dogmático e nós não sabemos como são as coisas de verdade”, para em seguida afirmar: “deixe-me descrever como elas são de verdade!” É como cravar a impossibilidade de se explicar uma vaca, para dali a pouco escrever, impávido colosso, um tratado de gnosiologia.

Pergunta sobre a propaganda racionalista

“De onde deriva essa facilidade de se propagar a ideologia racionalista? Por exemplo, com tantas biografias a respeito da faceta alquimista de Newton, por que ele continua sendo mostrado como um representante icônico da ciência?”

Primeiro, precisamos entender algo que as pessoas não se dão conta facilmente: não é possível organizar uma sociedade sem um conjunto de crenças comuns.

Por mais que os inimigos da Igreja tentem negar, as leis possuem um certo fundamento espiritual, seja ele falso ou verdadeiro. O mundo moderno veio contrapor-se ao medieval. E a autoridade das leis do mundo medieval vinha do fato de que Deus, criador de todas as coisas, estabeleceu uma ordem na Criação. Nesse sentido medieval, portanto, o esquema filosófico do Direito era assim: Deus criou as coisas e determinou a lei eterna que rege todas elas; cabe ao ser humano captar algo dessa lei e aplicá-la. Temos com isso o chamado Direito Natural.

Ora, quando, no mundo moderno, esse detalhe chamado Deus deixa de ser o centro da organização social, os homens vêem-se impelidos a criar uma nova instituição de autoridade, em torno da qual tudo se ajeitaria. Essa instituição passou a ser a Universidade, produtora da Ciência e criadora do caldo cultural contemporâneo.

Mas é evidente que uma coisa tão frágil quanto a ciência moderna não serve como eixo firme para sustentar a ordenação de uma sociedade, com todo o seu necessário arcabouço de leis, costumes e valores.

A ciência, não custa lembrar, nunca abarca e explica a realidade inteira. No máximo, debruça-se sobre pequenos recortes do real: na Economia, analisa-se o homem enquanto agente econômico; no Direito, enquanto sujeito de direitos e deveres; na Medicina, enquanto organismo que tem ou não tem saúde; na Biologia, enquanto um animal numa cadeia de organização do ecossistema.

Excluindo toda a complexidade do mundo para focar num pedaço abstrato, laboratorialmente controlado, é claro que a ciência funciona, e isso dá ao cientista uma grande confiança. E a distorção perigosa surge exatamente dessa confiança: o sujeito que domina as operações próprias do recorte que ele estuda, passa a achar que domina ou pode dominar a realidade inteira. Daí a associação automática que fomos induzidos a fazer entre cientista e credibilidade.

Mas o fato é que eles, cientistas, não sabem do que estão falando — pelo menos não como imaginam. Repito: trata-se, quando muito, do conhecimento móvel de um recorte bem restrito e abstrato. E digo móvel porque a ciência, em sua dinâmica natural e saudável, está sempre fazendo novas descobertas e reformulando suas hipóteses.

É em cima dessa areia movediça que se quer construir a autoridade no mundo moderno.

Acontece que a resposta padrão a quem questione essa autoridade capenga é a censura ou a calúnia. É isso o que acontece hoje na mídia, nas redes sociais, e, na verdade, o que sempre aconteceu, por outros meios, desde o início da ciência moderna e das universidades. Antes, porém, a tarefa era mais fácil. Hoje, com a internet, tornou-se mais difícil fechar a torneira das opiniões divergentes.

Por estarmos, como sociedade, baseados nessa pseudo-autoridade, é que nos encontramos em tamanho caos. Por isso, para manter alguma coerência social, os senhores do mundo moderno julgam necessário propagar ideias que, verdadeiras ou não, dão-lhes um mínimo de credibilidade.

Alguém pode dizer: “Padre, o senhor está propondo uma teocracia?” De forma alguma. Só estou constatando um fato: excluir Deus como o fundamento da ordem social não deu certo.

Pergunta sobre as distinções da razão na Igreja

“Como aplicar essas distinções entre as razões teórica, prática e técnica ou poiética dentro da Igreja?”

É notório que a Igreja está em crise, e exatamente porque as colunas que mantinham o edifício de pé estão sendo solapadas.

Fala-se, hoje, na Igreja, em pastoralidade. Veja, uma Igreja prática, acolhedora, que não condena ninguém e tudo aceita. Ora, essa demasiada ênfase pastoral, destituída de doutrina e conversão nada mais é do que o triunfo da técnica, da práxis, da razão poiética. É o discurso que defende uma “práxis libertadora”, sob pena de que sejam derrubadas as duas colunas dos dogmas, a fé e a moral.

Ao consultar os dogmas da Igreja no famoso compêndio Denzinger, vemos que lá está escrito “Enchiridion…” (a palavra grega para “Manual”) “...de Rebus Fidei Et Morum” (“das Definições de Fé e Moral”). Temos, portanto, a Fé, razão teórica; e a Moral, razão prática. Então, solapadas essas colunas, não existem mais limites. E é assim que, dentro da Igreja, vamos presenciando manifestações ditatoriais das mais absurdas.

Muitos detratores dizem que “o Padre Paulo é um fascista e um ditador”. Mas isso é simplesmente uma forma de reverter o jogo. Dizem que sou um “malvado rigorista”, que condena as pessoas, por ter formação em Direito Canônico. Ora, isso só prova que não leram o Código de Direito Canônico, porque noventa por cento das normas ali são destinadas a limitar o poder clerical.

Isso posto, é evidente que há muitos padres e bispos que, por desejarem um pouco mais de poder, odeiam o Direito Canônico. Logo, odiarão também a mim, na medida em que me guio pelo mesmo Direito. Afinal, quando exponho os limites canônicos; quando mostro que não se pode ensinar determinada doutrina; quando mostro que um bispo não pode determinar certa mudança litúrgica; quando digo que não se pode negar a comunhão para a pessoa em certa situação; quando, enfim, faço essas e outras considerações, apenas demonstro que há membros do clero usando sua autoridade de forma indevida — e isso pode mesmo causar-lhes ódio.

Mas o fato é que não os estou condenando: estou apenas lhes mostrando que eles pensam possuir um poder que não têm. Se por isso ficam com raiva de mim, só posso lamentar. Afinal, são as definições conciliares que os limitam, não eu e meu suposto autoritarismo. Compreendo que as advertências não devem soar agradáveis e que suscitam certa raiva. Porém, advertência nenhuma seria necessária se esses sacerdotes resolvessem mudar de vida — buscando menos razão poiética, essa vontade de fazer da Igreja aquilo que lhes dá na cabeça.

Vejamos, por exemplo, o recente caso do Caminho Sinodal Alemão. Ali está claríssima a utilização da razão poiética — ou, simplificando, da pura feitiçaria (diga-se, coisa pela qual os alemães são conhecidos há séculos). Esse processo germânico demonstra que eles não desejam mais a Igreja de Cristo: querem fazer a sua própria Igreja, intenção que fica explícita no lema “Wir sind Kirche” (“Nós somos a Igreja”). Desse modo, querem pôr tudo “do avesso”: aprovar a ordenação de mulheres, distribuir a comunhão para pessoas em pecado mortal, abençoar uniões sodomitas e tantas outras insanidades claramente anticatólicas.

Muitos incautos que apoiam esse movimento não enxergam que estão apoiando essas inconsistências do mundo moderno e suas escoras: as ditaduras, de direita ou de esquerda.

As pessoas dizem que sou de direita. Não sou de direita nem de esquerda: quero ser de cima. Quero colocar-me abaixo do poder de Deus e a Ele obedecer.

Por essa posição, pode ser que tanto os mais direitistas quanto os mais esquerdistas não gostem do que eu digo, pois essa perspectiva lhes tiraria poder. Paciência. Na verdade, nenhum desses dois lados, produtos da modernidade, têm poder real. São, no fim das contas, apenas propaganda.

Junte-se a nós!