Além das paixões veementes, que afetam nossa vontade, e do pecado de ignorância, que afeta nossa inteligência, outro grande obstáculo nos impede de conhecer a verdade: a malícia.

Considerada o pecado típico dos demônios, a malícia consiste em desejar um bem inferior no lugar de um bem superior. É uma tentativa deliberada de inverter a hierarquia dos bens, supervalorizando o que é menos importante em detrimento do que verdadeiramente importa.

Essa é justamente a matriz psicológica do mundo moderno que, com base no tão alardeado “antropocentrismo”, pretende reinterpretar tudo sob perspectivas ilusórias, colocando ideologias revolucionárias acima da própria realidade. Não por acaso, num mundo assim, o óbvio precisa ser dito a todo momento.

É sobre isso que vamos falar neste sexto episódio de Studiositas — nossa formação permanente e exclusiva para alunos: uma oportunidade de focarmos a nossa vontade para realmente conhecermos as coisas como elas são.

Preâmbulo

O evangelista São João nos recorda que há três coisas no mundo: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (cf. 1Jo 2, 16). A concupiscência dos olhos é o que nos leva à dispersão e à curiosidade; ou seja, o ser humano, diferentemente dos outros animais, tem uma espécie de impulso para conhecer. Porém, depois do pecado original, esses impulsos podem estar todos desordenados. E aqui está algo de que as pessoas não se dão conta: o mal consiste exatamente nessa desordem.

O mistério do mal é “somente” uma desordem?

As pessoas ainda tem um conceito bastante maniqueísta de mal. A palavra “maniqueísta” refere-se a uma seita da época de Santo Agostinho, que acreditava na existência de dois deuses: um bom e um mau. Em seu conceito, portanto, o mal teria substância, seria um ser. Mas sabemos que o mal não é um ser. O mal é uma desordem.

Para nós, a palavra “desordem” pode parecer fraca para descrever todo o drama que sofremos com a maldade. Nós pensamos em torturadores, no horror dos campos de concentração e dos gulags, nas missas satânicas e nas religiões pagãs antigas com seus sacrifícios de crianças. Enfim, para todo tipo de opressão, ditadura, crueldade e injustiça que já aconteceu na humanidade, assim como para todo o sofrimento que existe no inferno, a palavra “desordem” parece um eufemismo, que não descreve precisamente o fenômeno do mal.

No campo filosófico verdadeiro, porém, o mal é exatamente isso: desordem. Para entendermos, lembremos que no Gênesis está escrito que Deus vai criando as coisas dia após dia: primeiro dia, segundo, terceiro… ao sexto dia cria o homem até que, por fim, “Deus viu tudo quanto havia feito, e era muito bom” (Gn 1, 31). Sendo assim, existe uma bondade na estrutura das coisas.

Falar nessa “bondade estrutural” pode soar como um otimismo ingênuo, meio Pollyanna [1]. Todavia, o que temos aqui é bem mais profundo: Deus é a fonte do ser. Não existe algo que “tenha ser” e não venha de Deus. Portanto, tudo o que é — todo ser verdadeiro, com consistência, ou seja tudo aquilo que existe metafísica e filosoficamente —, é bom.

Acontece que existem desordens. Enxergar isso é importante nestes estudos que estamos fazendo. Vamos lembrar que não estamos estudando para sermos “inteligentinhos”, para sermos mais um nerd “sabe-tudo”. O problema real é que devemos estudar para não virarmos demônios. Explico: é que se não tivermos inteligência ordenadora, vamos colocar os os bens todos fora de ordem, assim como Satanás.

Ora, imagine cada um que os bens que temos na vida são mais ou menos como esses livros espalhados em cima da minha mesa. Então temos aqui a saúde, o dinheiro, a família, a comida, o sexo, o sono, casa, carro, e até mesmo Deus, a nossa fé e a vida espiritual. Tudo isso são bens. Suponha, porém, que você é um pai de família e chega um assaltante com uma arma na mão à sua casa e diz: “É o seguinte: ou você acessa agora a sua conta bancária e transfere um milhão de reais para mim, agora, ou eu mato sua esposa”. E então? A vida da sua esposa é um bem, o dinheiro na conta igualmente. Mas, se você não tiver inteligência ordenadora, vai fazer um grande mal!

Ao pedir desculpas por alguma coisa, as pessoas costumam dizer que não fizeram “por mal”. Mas, eu insisto mais uma vez, ninguém faz nada “por mal” — nem mesmo os demônios. As pessoas fazem o mal porque escolhem um bem desordenado.

Percebam que todos os seres espirituais, tanto os anjos quanto os seres humanos, querem as coisas sob o aspecto de bem. De certa forma, até os seres unicamente materiais querem as coisas sob esse aspecto: quando um cachorro quer algo, deseja-o porque está vendo um bem naquilo, ainda que num nível meramente sensível e animal. O problema é que, quando eu vejo um bem, preciso pô-lo em ordem, dentro de uma hierarquia — e essa hierarquia de bens não é óbvia.

Nós precisamos contemplar a verdade de cada um desses bens e ordená-los, porque senão vamos começar a ser maus; e a maldade está no fato de querermos algo de menor valor acima daquilo que tem um valor maior. O pai de família apresentado acima poderia dizer, por exemplo: “Não! Eu lutei tanto por esse dinheiro, pode matar a minha mulher”. Outro, ante uma forte tentação sexual, poderia terminar colocando o sexo acima da sua família e da sua amizade com Deus. E assim por diante.

Tipos de pecado: ignorância, fraqueza e malícia

Quais são os tipos de pecado que estávamos analisando? Vimos que há o pecado de ignorância: quando há a obrigação de conhecermos algo, de estudar para colocar certas coisas em ordem, mas somos negligentes com esse dever. Um médico tem obrigação de conhecer a arte da medicina que exerce; um motorista tem a obrigação de conhecer minimamente as leis de trânsito e o funcionamento do veículo que está conduzindo — senão essa ignorância é culposa. Imagine que um sujeito está trabalhando numa construção, operando um guindaste que tira toneladas de peso acima do chão, mas ignora que, ao apertar um botão, ele pode derrubar esse peso na cabeça das pessoas. No caso de um desastre como esse, ele não poderia se desculpar dizendo que “não sabia”.

Há também os pecados de fraqueza, que são o que a maior parte das pessoas pensa quando se fala em pecado. Acontecem quando, diante de uma carga passional muito grande, não temos força suficiente para opormos a nossa vontade àquele impulso. Lembre-se de São Pedro, que diante da empregada do sumo sacerdote disse: “Não conheço este homem”, negando a Jesus. Este é um pecado de fraqueza: Pedro teve uma paixão veemente chamada “medo” e não foi capaz de segurar essa paixão e pagar o preço do conhecimento de Cristo. Assim acontece também com a paixão veemente da atração sexual; do uso das drogas e das compulsões em geral; e também da raiva, do desejo desordenado por vingança.

Mas existe também um terceiro tipo de pecado em que as pessoas, em geral, não prestam atenção. É um pecado que deveria ser mais raro, mas está se tornando cada vez mais comum: o pecado de malícia.

O pecado de malícia acontece quando a pessoa sabe com clareza o mal que está fazendo, e o faz de forma premeditada e deliberada. Ou seja, não é um ato movido por ignorância ou paixão. É esse o tipo de pecado que os demônios cometem. E não só eles: os seres humanos também o cometem, mas é algo muito próprio da psicologia demoníaca.

Quando Lúcifer e os demais demônios pecaram, eles sabiam perfeitamente que seriam condenados ao fogo eterno. Eles sabiam que sua revolta resultaria em uma vida eterna miserável e desgraçada no inferno, sabiam que não prevaleceriam sobre Deus. Para ilustrar: Lúcifer jamais teve a idiota ilusão de que poderia vencer o Deus onipotente; tampouco agiu passionalmente, como se, por uma ira violenta e desgovernada, tivesse cometido uma “bobagem”.

Isso quer dizer que o Diabo, como qualquer bom filósofo ou estudante — e aqui está algo que espero de vocês, e logo vamos entender melhor — fez a coisa sine studio et ira [2]: ou seja, não havia nenhuma paixão que levasse Lúcifer a cometer sua revolta, nada que o atraísse e nem alguma ira que lhe causasse repulsão. Ele estava, passionalmente falando, num ponto neutro, porque é um anjo.

Sine studio et ira: julgar sem parcialidade ou raiva

Antes de continuar com a história de Lúcifer, vamos entender o que significa sine studio et ira. Quando nos propomos a analisar um problema, mas sentimos que gostamos do que estamos analisando ou que temos muito a ganhar com aquilo; ou, ao contrário, quando sentimos repulsa ou raiva do objeto, o melhor que podemos fazer é: não decidir ou pedir conselho para alguém.

Vamos exemplificar: não há aquelas situações em casa nas quais você fica com raiva de uma pessoa? Aparece um prato quebrado na cozinha e você imediatamente diz: “Só pode ter sido fulano”? Só que depois da sua presunção, julgamento e condenação, alguém que você não esperava vem e assume a culpa. Isso acontece porque você julgou levado por uma paixão veemente: neste caso, a sua raiva. A raiva distorce a realidade, mas temos de estudar qualquer coisa que seja sine ira, “sem ira”.

Por exemplo, nestes tempos vocês estão vendo na minha mesa um monte de livros sobre a Escola de Frankfurt, com autores como Horkheimer, Durkheim, Marcuse, Adorno etc. Pois bem, se eu quero estudar seriamente essa corrente de pensamento, preciso fazê-lo sine ira. Esses autores desgraçaram com o mundo atual e prejudicaram muito a Igreja; mas para estudá-los eu preciso suspender essa ira e tentar enxergar o que há de razoável naquilo que eles analisaram, preciso me colocar no lugar deles. Não é questão de inocentá-los, não deixo de ver a profunda malícia que há ali atrás. Mas, se quero estudar, preciso primeiro me desarmar para depois ver no que eles estão errados. É disso que trata o sine ira.

Agora, imagine um rapaz apaixonado por uma moça. Toda a família vê os defeitos e a falta de virtudes dela, alerta o rapaz… mas ele, por estar apaixonado, não lhes dá ouvidos e se casa com ela. Algum tempo depois, a paixão vai embora e o rapaz percebe que terminou amarrado em um “toco podre”. E por quê? Porque decidiu cum studio, ou seja, com esse ímpeto, essa parcialidade, essa busca.

Portanto, nos estudos, nós temos de procurar o máximo possível de neutralidade passional. Quando isso não é possível, é porque não estamos maduros nem ordenados o suficiente para lidar com aquilo. E aí procuramos conselho com outras pessoas. Quantas vezes eu faço isso aqui no site! Depois de gravar uma aula que me agradou ou desagradou muito, sempre pergunto à equipe o que eles acharam. Quando não temos essa virtude para lidar com neutralidade, então devemos pedir conselho.

Afinal, se queremos ter uma vida decente, ser bons, santos, então precisamos colocar a vida em ordem! O princípio ordenador é a inteligência que vê a verdade e põe as coisas em ordem. Enquanto isso, o mal é a desordem. Nós temos desordens passionais que não são necessariamente culposas, mas estão presentes e temos de nos dar conta disso. É por isso que nesta formação precisamos procurar a virtude, estar em estado de graça, comungar, rezar etc. Porque senão essas paixões vão sempre criar “monstrinhos” na nossa cabeça e aí não estudaremos coisa alguma; só adotaremos alguma ideologia de nossa preferência pessoal. Seremos como a já referida dona Praxedes, personagem de “Os Noivos” (I promessi sposi), de Alessandro Manzoni: aquela que tinha poucas ideias, mas era muito afeiçoada a elas.

Fechado esse parêntese, voltemos para a questão da decisão de Satanás. O que é o pecado de malícia, o pecado do demônio? Os demônios sabiam perfeitamente que sua decisão não daria certo: eles não entraram nessa desgraça, nessa “fria” (ou nessa “quente”, como preferirem), por ignorância. E também não foi por paixão: o Diabo e aqueles que o seguiram se revoltaram não por uma raiva súbita, mas por malícia.

O pecado de malícia: a desordem premeditada

O pecado de malícia acontece quando, com um ato voluntário, premeditado — de caso pensado — a sua vontade livremente coloca um bem menor acima de um bem maior. Aí podemos dizer com convicção: “Você é mau!” Porque esta é a definição de maldade: cometer pecados não por fraqueza, não por paixão ou ignorância, mas deliberadamente.

Para ilustrar o pecado de Lúcifer, partamos de um filme extraordinário que foi lançado recentemente nos Estados Unidos e espero que chegue o quanto antes ao Brasil: Nefarious (2023). É um filme sobre um caso de possessão diabólica, mas o roteiro e a produção foram acompanhados por exorcistas. A primeira coisa que pensei quando assisti foi: “Que filme inteligente! Quem o fez entende de psicologia demoníaca”.

Em Nefarious, não há nada daquilo com que estamos acostumados por conta de filmes como O Exorcista — a menina vomitando sopa de ervilha, com a cabeça retorcendo e girando na mesa, nada disso. É uma história sobre um preso condenado à morte, possuído pelo demônio, conversando com um psiquiatra; e eles conseguem nos segurar “na ponta da cadeira” por uma hora e meia de diálogo. Esta é a propaganda do filme. Agora, vamos ao ponto que nos interessa nessa história.

O psiquiatra, que é ateu, está conversando com o demônio e lhe faz uma objeção óbvia: “Certo, você é um anjo, um ser espiritual, superinteligente, que decide se opor ao Deus onipotente, sabendo que levará uma surra e será condenado para sempre… Fale-me mais sobre isso.” Ou seja, o psiquiatra pensa: que tipo de raciocínio é esse? Ou aquele suposto demônio não é inteligente coisa nenhuma, ou os demônios não podem existir — porque não é possível que um ser inteligente caia numa enrascada dessas.

Mas então o demônio lhe responde: “Sim, Ele nos criou livres. Mas a liberdade, para Ele, é fazer o que Ele quer. Então, de que adianta termos liberdade e não podermos fazer o que nós queremos? Nós nos revoltamos porque não aceitamos essa escravidão.” Mesmo fazendo a ressalva de que demônios não “raciocinam”, vejam como o tentador faz esse processo de raciocinar junto com o psiquiatra, que acaba dizendo: “Faz sentido”. Ou seja, ele concorda com Satanás. E se pensarmos bem, essa é a descrição e “fotografia” do mundo moderno.

Na matriz psicológica e intelectual do mundo moderno, existe uma revolta diabólica. Explico: não estou falando essas coisas gratuitamente, nem por hipérbole ou retórica. Vamos analisar a coisa objetivamente.

O que é liberdade? A primeira coisa a que devemos ficar atentos é que a palavra liberdade quer dizer várias coisas. Aqui, precisamos analisar a falácia do termo médio, usada pelo demônio. Segundo a lógica de Aristóteles, ela consiste em usar um termo médio com dois significados diferentes: “Toda manga é uma fruta; minha camisa tem manga; logo, minha camisa tem uma fruta” — a palavra manga foi usada em dois sentidos diferentes, portanto esta é uma falácia. Nós usamos a palavra “liberdade” em dois sentidos diferentes: um deles é como livre-arbítrio, ou seja, ter poder de escolha; mas liberdade também significa o estado no qual você se encontra de poder escolher, a capacidade de não estar em amarras. Ora, existe uma forma de usar o livre-arbítrio para abolir a liberdade enquanto estado. Por exemplo, eu posso livremente entrar numa jaula, livremente fechar a porta dessa jaula e livremente destruir a chave — eu usei o meu livre-arbítrio, mas não posso dizer que gerei liberdade, porque estou enjaulado! Eu livremente escolhi… mas o ponto é: nem tudo que eu escolho livremente gera liberdade.

Há coisas com as quais usamos o nosso livre-arbítrio para gerar a nossa própria escravidão: podemos usá-lo para decidir consumir drogas, mas não podemos dizer que estamos gerando liberdade; estamos gerando adicção. Qualquer um que vê um drogado enxerga isto: um sujeito está se destruindo e perdendo sua liberdade e sua própria humanidade, menos o próprio drogado que está lá, fascinado com a sua “liberdade”.

Aqui está a questão: tanto a liberdade que nós temos quanto a que os anjos e demônios têm são liberdades criadas. Não é a liberdade do Criador — estruturada e estruturante, daquele que é a fonte do próprio ser. É claro que Deus é infinitamente livre porque é a fonte de todo ser e de todas as possibilidades; e como Ele não se contradiz nunca, não destrói a si mesmo. Mas quanto às liberdades criadas, a primeira coisa que temos de entender olhando a nossa profunda verdade (e isso é fundamental no Studiositas) é o seguinte: nós somos pensados. Este é o dado mais importante que precisamos meditar e enxergar — antes que pensássemos, nós fomos pensados.

Existe um “pensamento” que nos sustenta no ser. Digo “pensamento” entre aspas porque falar do pensamento de Deus é uma abstração, como se fossem duas coisas distintas. Deus nos pensa: projetou-nos, dá-nos o ser, pelo próprio fato de Ele nos conceber como parte de seu plano divino de amor. Então vejam: a dependência que nós temos de Deus não é uma dependência escravizante.

Para usar uma linguagem kantiana, Deus é a própria condição da possibilidade do meu existir. Ele nos amou e quis que existíssemos antes mesmo de existirmos de fato. Pode ser que Deus não ame o que você faz, o que você anda aprontando, assim como Ele não ama nada que o Diabo faça — mas as coisas foram criadas boas: “Deus viu tudo quanto havia feito, e era muito bom” (Gn 1, 31).

Deus fez Lúcifer e “viu que era bom”, porque Lúcifer era realmente bom. Aliás, em certo aspecto, Lúcifer ainda é “bom”: enquanto ser, senão ele seria um “não-ser”. O problema é que ele é um ser extremamente mau e desordenado na sua deliberação e na sua vontade, que jamais voltará atrás. O Diabo quis se colocar, voluntariamente, acima de Deus. Eis o que é a malícia.

Foi preciso ilustrar isso para enxergarmos que aquilo que foi exposto no início da aula — que o mal é uma desordem — não é um eufemismo. É grave colocar-se acima de Deus.

Quando digo que a matriz do mundo moderno é diabólica, é porque, como Adão e Eva no paraíso, o homem está sendo cada vez mais seduzido pela ideia do “sereis como Deus”. Queremos poder escolher qualquer coisa, sendo cada um como “deus glorioso”, apesar de Deus, sem Deus e contra Deus.

Aqui, não se trata de uma pequena desordem, mas de uma desordem consciente e volitiva chamada pecado de maldade; é aquele pecado no qual a vontade é plenamente livre de qualquer ignorância ou paixão.

Não se cai no pecado de malícia por ser escravo de algum vício (como em bebida ou sexo), nem por causa de nossas manias ou desordens passionais. Na conclusão da malícia, a inteligência está iluminada pela verdade e a vontade está livre, mas você diz, mesmo assim: Non serviam! (“Não servirei”, “Eu não aceito”).

É como diz Nietzsche: “Se houvesse deuses, como poderia eu suportar não ser um deus?” [3], ou como diz o nosso ilustríssimo Karl Marx, citando Prometeu Acorrentado, do grego Ésquilo, em sua tese de doutorado:

A filosofia não pode esconder isso de ninguém. A confissão de Prometeu — numa palavra, odeio todos os deuses — é sua própria confissão, seu próprio dito contra todos os deuses celestiais e terrenos que não reconhecem a autoconsciência humana como a divindade suprema. Não pode haver nenhum outro deus ao lado dela [4].

Percebam, portanto, essa ideia da “autoconsciência humana como divindade suprema” [5]. Não é exatamente o que se ensina hoje às crianças como “catecismo” secular em nossas escolas? Diz-se a elas: “O que é o mundo moderno? É o seguinte: nós saímos de mil anos de trevas, quando reinava o teocentrismo. Mas aí veio o humanismo, o antropocentrismo”. Quando ouvimos “humanismo”, isso parece uma coisa muito bonita — o homem agora está no centro. Mas no centro de quê? Ora, se é no centro da criação, podemos aceitar. Afinal de contas, o próprio Deus se fez homem. Mas não é isso que o pensamento moderno quer dizer com antropocentrismo — é só ir cavando nesses autores que, em algum momento, disfarçada ou explicitamente, como Marx, encontramos sua confissão: “autoconsciência humana como divindade suprema”.

Para Marx, Deus é apenas uma ideologia para escravizar os outros e, por isso, é preciso se livrar dessa ideia para que a “autoconsciência do homem” torne-se a coisa suprema. Mas isso não passa de uma trapaça, uma desonestidade intelectual tremenda: essa alardeada autoconsciência do homem só é aceita quando seu resultado está de acordo com o autor da sentença; quando o resultado dessa autoconsciência contradiz quem a propôs, perde-se o direito de existir, e é preciso que os divergentes sejam eliminados, retirados do caminho — por serem considerados “reacionários”, contrarrevolucionários.

Os demônios sabem que a revolta contra Deus gera escravidão. No filme Nefarious, quando o psiquiatra está conversando com o demônio através do possesso, ele diz para o anjo caído: “Mas nós, agora, estamos mais livres do que nunca”. Neste ponto, o diabo contesta o psiquiatra, mostrando-lhe como, na verdade, toda a matriz da modernidade está escravizando os seres humanos: “Vocês acham que estão livres, mas isso é somente propaganda. Hoje, o planeta tem 40 milhões de escravos, mais do que o Império Romano teve em toda a sua história, e, destes, pelo menos 20 são escravos sexuais. E vocês se acham num mundo livre!”

Eis um sujeito satisfeito com seu mundo moderno, ufanando-se da suposta liberdade de nossos tempos... Mas basta um pouco de consciência para ver como nós estamos perdendo a nossa liberdade cada vez mais, e em ritmo acelerado.

O conceito de autodeterminação parece ser algo bonito e que funciona, mas ele só tem sentido dentro das regras do ser, das regras do Criador. Se alguém quer autodeterminação para se colocar dentro de uma jaula, fechar a porta e jogar fora a chave, isso vai gerar apenas sua própria escravidão. É isto que grande parte da humanidade tem feito.

Voltamos então a Nefarious, quando o demônio finalmente explica a razão de sua rebelião contra Deus: “Nós sabemos que não podemos atingi-lo, porque, como você mesmo disse, Ele é onipotente” — ou seja, parece (e é) algo idiota, não é? Uma criatura inteligente e que sabe que não vai atingir a Deus se revoltar contra Ele querendo vingança. Que sentido tem essa guerra? Mas o demônio conclui: “Nós sabemos disso, mas queremos fazê-lo ‘sofrer’, ‘machucá-lo’, levando para o Inferno aqueles que Ele ama”.

Deus livremente nos ama. Ele nos quer no Céu e, já que o Diabo sabe que não pode atingir o Criador, ele procura nos atingir com a sua revolta, como dizem as Sagradas Escrituras: “Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2, 24).

O objetivo das nossas formações

Como é possível formarmos uma pessoa verdadeiramente através deste tipo de estudo que estamos propondo? Dirijo-me então a cada um dos alunos que estão assistindo a este episódio: não me interessa, minimamente, colocar ideias bonitas na sua cabeça. A intenção do Studiositas não é que você pense como eu: quero é que você mude de vida! Quero que mude de atitude diante da verdade e do bem. Lembre-se: você não vai sair desta formação mais “culto”. Ou sairá daqui “irreconhecível” para os seus amigos — mudado para uma pessoa melhor —, ou então deixe-me lhe dar um conselho: Caia fora! Esta formação não é para você.

Tanto a Igreja quanto os filósofos antigos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, nunca se interessaram em formar pessoas simplesmente “cultas”, mas sempre em formar pessoas, transformá-las, mudar-lhes a vida. Se não for assim, você não vai ver a verdade, porque ver a verdade liberta — “A verdade vos libertará” (Jo 8, 32) —, mas dói ao mesmo tempo. Precisamos ter a humildade de aceitar a verdade e dizer: “Um outro me pensou; antes que eu fosse capaz de pensar, alguém me pensou”. Outra alternativa não é possível. Portanto, se fui pensado, a verdade sobre mim é fundamentalmente essa verdade primeira de que minha vida deve estar sintonizada com Deus.

Já falamos numa aula anterior que, para começarmos um estudo, devemos nos lembrar que a verdade é a adequação da inteligência ao objeto. No caso do ser humano, é a inteligência que tem de mudar e se adequar ao objeto. No caso divino, é o objeto que tem de mudar e se adequar à inteligência de Deus. E foi justamente essa adequação que Satanás e seus demônios não aceitaram.

Quando Jesus diz que Satanás é o pai da mentira, existem dois significados para isso: é o pai da mentira porque mentiu para Eva; e é o pai da mentira porque ele mesmo é uma mentira, ou seja, é a inadequação do objeto ao intelecto divino. Lúcifer não é o que Deus pensou dele — ele é uma revolta, uma soberba: o desejo de uma eminência que não lhe é devida. Não lhe era devido ser Deus, mas ele quis isso.

Somos soberbos sempre que desejamos algo que não nos é devido. Veja nossos legisladores: todo o sistema político moderno é baseado nessa ideia de que os nossos representantes são senhores do bem e do mal — com um simples decreto, eles fazem algo virar ou deixar de ser crime. Ora, isso é uma eminência que não lhes é devida, é algo que pertence a Deus. Os legisladores deveriam ser aqueles que, buscando honestamente a verdade, procuram adequar as leis humanas àquilo que é o princípio da lei eterna de Deus.

Não devemos ir contra a estrutura da realidade, porque isso tem um preço — e a conta já está aparecendo: os seres humanos nunca tiveram uma capacidade tão tremenda de morte, escravidão, destruição e maldade quanto nestes tempos. E nós nos achamos o suprassumo da civilização; olhamos para as civilizações anteriores de cima para baixo, com a empáfia de quem pensa: “Hoje, nós somos a democracia, somos livres, vivemos em tempos maravilhosos!”, sem nos dar conta de que temos no currículo milhões e milhões de mortos em nosso passado recente, em nosso presente e — Deus nos livre —, se as coisas continuarem como estão, teremos ainda mais morticínio no futuro.

A civilização moderna virou uma máquina de moer carne. O saldo de guerras, campos de concentração e extermínio, abortos, assassinatos, é assustador. Todos os anos, no Brasil, temos um número de assassinatos equivalente ao de um país em guerra civil! A morte tornou-se uma banalidade.

Conclusão

Resumindo aquilo que apresentamos nesta aula: começamos dizendo que o mal é uma desordem, o que poderia parecer um eufemismo. Mostramos, no entanto, que o verdadeiro pecado de malícia — aquele em que a inteligência não está prejudicada por uma ignorância e a vontade não está prejudicada por uma paixão veemente — é um ato típico dos demônios: a pessoa, de caso pensado, quer um bem inferior no lugar de um superior.

Vimos que esse termo supostamente requintado — desordem — demonstra bem a crueldade de alguém que, por exemplo, joga a própria mulher nas mãos de um assassino para salvar a conta bancária; ou de quem destrói a sua vida inteira, incluindo sua saúde e sua família, por causa do prazer de consumir cocaína; ou do ditador que escraviza milhões de pessoas por um bem chamado projeto pessoal de poder. E que, como nos lembra São Gregório Magno, na raiz de todo pecado está a soberba: o desejo de uma eminência indevida — de querer ser deus do próprio mundo e ditar as regras do bem e do mal.

Nós, porém, temos de pensar o contrário, precisamos enxergar o seguinte: o mundo está cheio de verdade e de ordem, e nós precisamos entender que tudo isso foi pensado por uma inteligência superior à nossa, antes de nós. Devemos nos lembrar que estamos aqui para estudar, mas, se queremos fazer isso bem, precisamos enxergar: antes de conseguirmos pensar, nós mesmo fomos pensados. Antes de escolhermos, fomos escolhidos. Antes de querermos, fomos queridos. Existe essa inteligência ordenadora, esse Logos, e existe esse amor eterno, esse Espírito, que como dois Paráclitos, vêm a este mundo enviados pelo Pai.

Nós precisamos mudar a nossa vida, estar dispostos a mudar para sermos outras pessoas, senão não vai dar certo o nosso projeto de estudo: seremos só mais alguns “moleques inteligentinhos”, muito semelhantes a um projeto de Lúcifer. Então, não estou dizendo essas coisas porque quero “xingar Marx”, ou porque quero acabar com algum projeto político. Sinceramente, essa arena política não está me interessando minimamente agora. Para quem estiver achando que quero seu voto, deixe-me dizer claramente: Eu não quero seu voto, mas muito mais: eu quero a sua vida! Eu quero que você mude, quero a sua alma para Deus.

É muita bobagem pensar que estou querendo preparar pessoas para a “próxima eleição”… Não estou desprezando a política (que tem lá o seu valor), mas, se o mal é a desordem, colocar a política acima de tudo é também uma desordem grave, é uma atitude má. Vamos cuidar de nós, senão nada mais funciona.

Pergunta: Olhando para o pecado da fraqueza, o que são exatamente as paixões? (01h06min02s)

Classicamente falando, as paixões são realidades moralmente neutras: nem boas, nem ruins. Para simplificar, são simplesmente a nossa reação animal diante de algo ou algum evento.

Um animal, quando vê uma coisa que estima sensorialmente como um bem, logo deseja aquilo. É um “amor” no seu sentido mais amplo, o de querer e desejar algo. Quando o animal vê algo como uma agressão, ele reage com raiva, repulsa ou medo; quando vê uma coisa que estima como bom, reage com desejo, esperança e uma certa ira de fortaleza, de querer tirar os obstáculos para alcançar aquilo. Essas são reações animais diante de objetos estimados sensorialmente como bons ou maus.

Acontece que, quando acrescentamos às paixões a realidade do espírito que vê a verdade, então introduzimos também as decisões morais.

Se eu for para o pantanal matogrossense e um jacaré me devorar, aquilo não é pecado nem crime. Mas se eu for lá para matar um jacaré, isso é um crime ecológico. Por quê? Porque o corpo do jacaré estimou a “carcaça” do Paulo Ricardo como apetitosa. Já o Paulo Ricardo estimou que com o jacaré podia ser feito, talvez, um bom dinheiro depois que eu lhe vendesse o couro ou a carne. Só que aquele jacaré é selvagem, não é criado legalmente em fazenda, então a lei não permite que eu o cace. Qual a diferença entre as duas situações? A lei supõe que você tem uma inteligência e uma responsabilidade que o jacaré não possui. Portanto, no exemplo, eu poderia ter superado a minha fome de comer carne de jacaré ou o meu desejo de ficar rico vendendo couro de jacaré olhando um outro bem que se supõe maior: um equilíbrio ecológico etc. Então se supõe, quando há uma inteligência ordenadora, que as paixões não são aquilo que vai ordenar a nossa vida. Enquanto isso, no animal, a vida é totalmente ordenada pelas paixões.

Então, qual é o princípio ordenador da vida? É claro que nós, seres humanos, não somos anjos: sempre teremos paixões, e quando elas são ordenadas de forma inteligente, nossos atos são ainda mais perfeitos e virtuosos. Não precisamos ser “não-passionais” — muitas vezes, para termos energia de fazer certos atos, precisamos de paixão.

Aquilo de que eu falava no início da aula, sine studio et ira, quer dizer que precisamos ter uma neutralidade na hora daquele ato que chamamos de julgar: quando avaliamos algo ou uma situação, temos de estar passionalmente neutros, porque as paixões terminam obnubilando o intelecto.

Há uma história de que, um dia, um escravo de Sócrates fez algo errado, e o filósofo olhou para ele e disse: “Olhe, se eu não estivesse com tanta raiva, eu bateria em você, mas, como estou com raiva, não posso bater”. Por quê? Porque, quando a inteligência está obnubilada pela paixão, é necessário antes se acalmar, avaliar a coisa sine studio et ira, e então avaliar qual é o castigo adequado, moderá-lo com a virtude da clemência e só depois aplicá-lo. No momento em que se está cego de raiva, é melhor não fazer nada.

Junte-se a nós!