A filosofia moderna, que tanto se vangloria de ter empreendido o suposto “triunfo da razão”, começou com uma grande trapaça. O primeiro filósofo moderno, René Descartes, instituiu a “dúvida universal” como método filosófico, tendo como pressuposto uma constatação bastante subjetiva — e muito conveniente: a de que tudo o que aprendera até ali não passava de enganação.

Segundo Descartes, durante mais de 20 séculos a humanidade teria sido totalmente burlada: Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Boécio, Alberto Magno, Tomás de Aquino e tantos outros, mesmo separados pelo tempo, conseguiram a façanha de ludibriar povos de diferentes épocas e lugares, erigindo, assim, a falaciosa cultura ocidental. Precisou brilhar na França o iluminado e ocidentalíssimo Descartes para revelar-nos a todos os segredos dessa pegadinha bimilenar.

Ora, não é preciso muito esforço para perceber que a trapaça cartesiana reina no meio de nós: seja em nossos corações seja no areópago dos tempos modernos, que é a internet. Eis o ponto de partida deste 12.º episódio de Studiositas.

Poder, autoridade e explicação da realidade

Hoje vamos falar um pouco a respeito de René Descartes, considerado o primeiro filósofo do mundo moderno. No encontro passado, vimos que os filósofos modernos ambicionavam encontrar no pensamento filosófico as certezas que achavam nas matemáticas.

Vamos entender as origens históricas desse movimento.

Em 1517, um frade agostiniano chamado Martinho Lutero dividiu a Cristandade. E o que podia parecer apenas um problema teológico e eclesiástico, na verdade, redundou num verdadeiro caos social. Muitos não se dão conta de algo óbvio: nenhum poder político está constituído sobre si mesmo. Para que um poder possa se sustentar minimamente, é preciso que ele possua uma verdadeira — ou aparentemente verdadeira — autoridade.

O general de um exército pode ser um homem idoso e fisicamente frágil, mas é capaz de dar ordens a uma tropa de homens no auge de sua juventude e força física. De onde vem esse poder? É preciso que haja dentro dos soldados — além de todo o intrincado sistema de disciplina, leis e punições — uma forte convicção do que está fazendo ali. Não existe poder político ou militar sem pessoas que creiam neste poder.

Mas, de onde vem a autoridade daquele general? E a autoridade de um rei, de um presidente da república? E a de um pai de família?

A questão da autoridade intrigou a Escola de Frankfurt desde seus primeiros estudos. E foi aí, nessa matéria, que seus pensadores acharam uma das causas do fracasso da revolução marxista: os trabalhadores estavam presos a algum tipo de autoridade, contra a qual não podiam se revoltar.

Inicialmente, estamos apenas mostrando como a autoridade sustenta o poder — político ou militar.

Como, por exemplo, o presidente Xi Jinping consegue fazer com que um bilhão de habitantes da China lhe obedeçam? Estariam todos os chineses de acordo com o dirigente da nação? Certamente não todos; mas existem aqueles que estão. Pelo menos para um grupo relevante de chineses, Xi Jinping mantém a autoridade, e por isso segue adiante a ditadura do seu Partido. É certo, portanto, que pelo menos entre os membros da agremiação as pessoas estão de acordo com aquilo que seu dirigente faz.

Desse modo, quando Martinho Lutero prega suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, questionando a autoridade romana, a Europa se dividiu. De repente, havia príncipes que seguiam a “autoridade universitária” dos mestres protestantes, enquanto outros continuavam fiéis à autoridade do Papa e dos bispos. Cem anos mais tarde, o continente europeu, assim rachado, mergulhou num conflito que foi o primeiro ensaio de uma “guerra mundial” — a Guerra dos Trinta Anos. Milhares e milhares de mortos no campo de batalha por causa do esfacelamento daquela autoridade, elemento espiritual que dava unidade e coesão para a Europa, promovendo, sempre que possível, um relacionamento pacífico entre as nações.

É neste contexto que nasce Descartes. Um período em que, de uma forma geral, os filósofos tentam construir seu pensamento sobre outra autoridade que não a religiosa, a fim de escapar do conflito entre catolicismo e protestantismo. Inicia-se então a busca por uma certa solidez e objetividade na ciência. É a época em que surgem não somente Descartes, mas também Galileu, Spinoza e outros.

Importante ressaltar a sanha matematizante que dominou muitos pensadores da época. Começou-se a sonhar com a possibilidade de transformar a Filosofia numa Mathesis Universalis — uma espécie de Matemática através da qual se pudesse mostrar a verdade da mesma forma que se demonstra o axioma “dois mais dois é igual a quatro”. Esse mundo “mecânico”, como sonhado pelo empirista inglês Francis Bacon, seria totalmente decifrável como que por fórmulas matemáticas — como se Deus tivesse feito o universo como um suíço que faz um “relógio”.

Surgiu, pois, um problema muito sério, uma tremenda ruptura com tudo o que já se fizera no campo da Filosofia. Até esse período, nenhum filósofo — sejam os católicos, como Agostinho e Tomás de Aquino, ou os pré-católicos, como Platão e Aristóteles — tinha a mínima ilusão de que pudesse conhecer as coisas de forma definitiva e inabalável.

Sabia-se que a Matemática não era capaz de expressar a realidade como um todo, mas somente um de seus aspectos — como vimos no encontro passado. Recordemo-nos da comparação de Chesterton, que imagina uma criatura que, “dada às matemáticas”, viesse da Lua e se propusesse a fazer conjecturas sobre o corpo humano: ao perceber que a duplicação é uma característica essencial de nossa biologia — há um braço esquerdo e um braço direito; há uma perna esquerda e uma direita —, vendo o coração no lado esquerdo, concluiria haver outro do lado direito. E estaria redondamente enganado.

Resumindo: os filósofos modernos, que surgiram no século XVII, romperam com a tradição filosófica, e a humanidade, de repente, caiu numa generalizada estupidez. As pessoas quiseram deixar as convicções arraigadas para “começar do zero” e, more geometrico — ao “modo geométrico” —, explicar toda a realidade na base de convicções absolutas e matemáticas.

Descartes e a dúvida metódica

Quando Descartes escreve as suas Meditações sobre a Filosofia Primeira (observação: embora seja um livro de Filosofia moderna, foi escrito em latim, e está bem editado pela editora da Unicamp, contando com o texto original latino), ele tem essa pretensão de “começar do zero”.

Ele inicia a sua primeira meditação da seguinte forma: “Faz alguns anos já, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí” [1]. Ou seja, começa com a constatação de que fora “enganado” por seus professores (ele havia estudado no prestigiado colégio dos jesuítas em La Flèche).

No original, Descartes diz: “Animadverti jam ante aliquot annos quam multa ineunte aetate falsa pro veris admiferim” [2] — atenção a este “falsa pro veris”, ou seja, “admiti coisas falsas como verdadeiras”. Vejam que, partindo dessa constatação de que foi enganado, ele instaura, de certa forma, sua famosa dúvida metódica, ou seja, um método que consiste em duvidar de tudo para, então, partir de alguma certeza. É desse método que surge aquela história do questionamento radical: “será que o mundo existe?”

Importante pontuar que o autor se utiliza de coisas que, absolutamente, não foram inventadas por ele. A historiografia atual mostra que grande parte da genialidade atribuída a Descartes vem originalmente de autores mais antigos. Se não podemos chamar exatamente de plágio, certo é que o autor faz muitas citações sem nota, passando a impressão de que está chegando a todos aqueles pensamentos por si próprio [3]. Descartes utiliza, por exemplo, muitos argumentos da escola pirrônica, o ceticismo antigo, que partem de demonstrações sobre “os nossos sentidos enganosos” — como quando enfiamos um cabo de vassoura na água e temos a impressão de que está “quebrado”, quando se trata apenas do fenômeno da refração da luz.

Esse é o ponto de partida cartesiano. Deve-se duvidar de tudo: que o mundo existe e que os nossos sentidos nos “entregam” um mundo verdadeiro e confiável.

Daí, dessa dúvida, surge-lhe a primeira certeza: não seria possível, ao menos, “duvidar de que ele estivesse duvidando”. Desse modo, há naquela dúvida um pensamento. Daí, sua conclusão: “penso, logo existo” — “Cogito ergo sum” — o “eu” que está pensando é a prova de que pelo menos este mesmo “eu” existe. A partir disso, dessa firme certeza, Descartes pretende deduzir todas as coisas.

Para quem não conhece o autor, pode parecer que se trata de um cético radical, que conseguiu construir todo o seu pensamento a partir desses princípios matemáticos, do cogito ergo sum.

Descartes, porém, percebe que está diante de um caminho sem saída e, desde o início, apela duas vezes à necessidade da existência de Deus. Quer dizer, sem provar a existência de Deus, o filósofo acaba “trapaceando”, fazendo exatamente o contrário daquilo que dissera desde o início: que desenvolveria todo o seu pensamento somente a partir do pensamento lógico, do more geometrico. Mas como alguém que promete isso invoca a existência de Deus sem se dar o trabalho de prová-la?

Evidentemente, não se trata de reclamar que Descartes tenha acreditado na existência de Deus. É ótimo que ele tenha acreditado. Só estamos evidenciando o fato de que ele não respeitou as premissas que ele mesmo estabeleceu.

A trapaça de Descartes

O problema principal do pensamento cartesiano está em querer fundamentar todo o conhecimento numa certeza absoluta, coisa que, como já vimos, não é dada aos seres humanos. Não é possível partirmos “do zero”, fazendo de conta que não sabemos nada; também não é desejável que duvidemos “de tudo”; e sequer é possível encontrar, na experiência comum, algo similar à alegação de Descartes de que “foi enganado desde a mais tenra infância” e, por isso, chegou a duvidar da própria existência deste mundo.

Como seria possível o mundo não existir? No sentido mais concreto de nossa experiência, não enxergamos as coisas, não somos capazes de pular, comer, dormir? Um cético, muito “crente” no próprio ceticismo, diria que “tudo pode ser apenas um engano criado por um gênio maligno, por um demônio”; ou, na expressão de Descartes “por um deus enganador”.

Onde está o erro?

Para quem deseja se aprofundar nessa questão, recomendo o livro do Olavo de Carvalho, Visões de Descartes: Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade [4]; são aulas sobre esse assunto que auxiliam bastante a nossa reflexão.

Primeiro, vamos pensar: quem é o filósofo que está propondo essa dúvida metódica? Percebam que não podemos fazer filosofia sem tentar reproduzir a experiência que levou um filósofo a chegar a determinada conclusão. Desse modo, para estudarmos Descartes, só há um caminho: devemos ler, por exemplo, as Meditações e nos colocarmos no lugar do autor. E quando assim o fizermos, perceberemos o seguinte: qual foi a sua primeira frase? Aquela sobre como, desde criança, ensinaram-lhe coisas erradas, e que tudo o que ele construiu sobre esse conhecimento mostrou-se falso. Mas seria essa realmente a nossa experiência comum? Ou comum seria a experiência que tivemos eu, o Olavo e tantas outras pessoas que buscam pensar: a experiência de que, dentro de nós, há uma tendência de nos enganarmos?

Perceba que o real pressuposto de Descartes, ao escrever essas Meditationes, é o seguinte: “Eu sou uma pessoa virtuosa, que busca a verdade e nunca cai em autoengano. Sou virtuoso e bom, mas quem está ao meu redor está me ludibriando. Desde criança, sou vítima desses engodos, ensinaram-me coisas más. Por isso, decido agora rejeitar toda a educação que recebi para construir o meu conhecimento do zero.”

Vocês percebem que isso não corresponde ao mundo real?

Façamos um exame de consciência: o que é que encontramos com muita frequência dentro de nós? A tentativa de duvidar de coisas que sabemos ser verdadeiras.

Um exemplo: sei que deixar de rezar para dar atenção a bobagens é errado. Mas quem de nós já não teve essa luta interior, de autoengano, em que dizemos, falsamente: “agora não posso rezar porque surgiu tal problema urgente”.

Descartes decreta que duvidar é a coisa mais honesta que ele poderia fazer. Mas, às vezes, o apreço pela dúvida é exatamente a trapaça. A primeira coisa que quem se proponha a ser filósofo deve entender é a necessidade de viver uma ascese interior — ou seja: ao invés de nos preocupar se os outros estão nos enganando, devemos estar atentos para saber se não estamos nos enganando a nós mesmos.

Fomos “mordidos” pelo pecado original e temos essa tendência. Estamos predispostos a negar que algo é pecado, sabendo que é pecado; a afirmar que é importante o que não tem importância. Senão, invocamos a “dúvida” como forma de trapaça ou egoísmo. Fingimos que estamos nos questionando moralmente ou intelectualmente quando já sabemos muito bem a resposta.

Aqueles que são alunos há algum tempo do site padrepauloricardo.org, quantas e quantas vezes não ouviram a definição de pecado? Para que aconteça o pecado, é preciso que haja advertência e consentimento. Quando caímos em pecado, é porque a nossa consciência nos advertiu primeiro. Em algum momento, aconteceu em nosso interior o seguinte diálogo: “Estou querendo algo que é errado… Mas vou fazer mesmo assim!” Isso é o pecado.

Acontece que nem sempre nos comportamos interiormente dessa maneira, com essa clareza líquida e certa. Às vezes — mesmo sabendo que algo é pecado — sabotamos a nossa advertência. É um processo de autoengano: mesmo sabendo que estamos cometendo um erro, tergiversamos: “Ah, mas será?! Talvez não seja bem assim… Imagine se Deus vai me condenar ao Inferno só por causa disso? Não pode ser…”

Os primeiros cristãos mártires, santos dos primeiros séculos, tinham o costume de confiar perfeitamente em Jesus, no ensinamento dos Apóstolos e na tradição da Igreja, ao mesmo tempo em que prudentemente desconfiavam de si mesmos. Imagine-se naqueles tempos. Você está andando pela cidade quando um oficial romano o intima:

— Ei, você, cristão! Por ordem do Imperador, todos os cidadãos devem fazer o seguinte: ao passar ali em frente à imagem de nosso excelso soberano, pegue um punhadinho de incenso e jogue no fogareiro; é um sacrifício a César. Faça isso e lhe darei um certificado. Então, você estará livre. Mas, se não o fizer, será preso e condenado. Será jogado às feras na arena ou crucificado de cabeça para baixo, como Pedro.

Quantos hoje não se autoenganariam dizendo: “Ah, é só um punhadinho de incenso… Será que mereço o Inferno só por isso? Quase um ‘nada’? Imagina! Deus não vai ficar chateado. Ele é amor…”. Daí, após jogar o incenso com os dedos cruzados, arrematariam a farsa: “Eu não fiz idolatria! Foi apenas um ato de macroecumenismo com a religião do Imperador Romano. Não podemos ser também tão intolerantes assim com as outras religiões…”.

Será que os os primeiros cristãos fariam isso? No entanto, é assim que nós, cristãos modernos, agimos a todo momento: trapaceando contra nós mesmos. Sabemos perfeitamente que algo é pecado, que não deve ser feito, mas sabotamos a própria consciência.

Toda essa reflexão já é o suficiente para anularmos o método cartesiano. René Descartes teoricamente está propondo uma dúvida universal, mas ele não duvida de sua própria honestidade!

Isso merece algum respeito filosófico?

O que é a Filosofia, conforme o projeto socrático, o projeto cristão de Santo Agostinho e Santo Tomás — e conforme o projeto deste nosso Studiositas? É formação de pessoas! Por isso, reiteramos que não nos interessa o conteúdo. Não estamos aqui para cumprir um currículo. O objetivo é que vocês sejam pessoas melhores! E, para que isso aconteça, tentamos fazer vocês pensarem. Estou dando conteúdo, falando de Descartes, mas com a finalidade de que enxerguemos que somos todos uns patifes, que estamos a toda hora trapaceando e dizendo a nós mesmos que não sabemos aquilo que verdadeiramente sabemos.

Vejamos, então, que Descartes parte do impossível pressuposto de que sua dúvida é universal. Mas uma dúvida universal não somente é impossível, como sequer é desejável. Levando o método às últimas consequências, cairemos num processo ad æternum: “Penso, logo existo”; certo, então tenho um “eu” que pensa e um “eu” que conclui a minha existência. Mas como saber que aquele “eu”, que começou a pensar, é o mesmo “eu” que, agora, está concluindo o raciocínio? Como garantir essa continuidade do “eu”? Como podemos saber que somos as mesmas pessoas que começaram a acompanhar essa aula no início? Ora, se a dúvida é universal, por que não duvidar da nossa própria vontade de buscar a verdade?

Sem a pretensão de refutar o autor com argumentos ad hominem, vejamos se Descartes realmente viveu conforme a sua filosofia. Supostamente católico, René Descartes foi para a Holanda, onde começou a servir ao protestante Maurício de Nassau. Lá, teve um affair com uma empregada. Do romance, nasceu uma menina. Alguns estudiosos apontam que ele se casou para batizar a filha na igreja protestante. Em seguida, seguiu para a Alemanha, onde se envolveu com o esoterismo da Ordem Rosacruz.

Ora, mas que tipo de católico é esse? Alguém que, num contexto de guerra religiosa, com católicos de um lado e protestantes do outro, adota as posições que lhe convém, nos momentos que lhe são propícios. Não por acaso, é a mesma pessoa que tinha como lema pessoal a expressão “Larvatus Prodeo” — “mascarado eu progrido”.

A filosofia e a construção do “eu”

Ao estudar Filosofia, uma das coisas mais importantes a se fazer é trabalhar o nosso “eu”. Não nos interessa, aqui, formar “filósofos”, como alegadamente se faz numa faculdade de Filosofia. Entendam: não temos nada contra quem faz faculdade; sabemos que alguns precisam do diploma para exercer a profissão de professor, por exemplo. Mas uma coisa é habilitar um professor de filosofia, outra é declará-lo um filósofo. Mutatis mutandis, é como conceder a alguém um “diploma de santo”.

O filósofo — eis o projeto socrático — é um amante da verdade, alguém que a busca sinceramente, e deve estar disposto a pagar o preço dessa procura — preço social, moral e intelectual. Infelizmente, não podemos encontrar esses predicados na biografia de Descartes.

O projeto filosófico consiste, em primeiro lugar, na construção de nosso “eu”. Acontece que esse “eu pensante” cartesiano não bate com seu “eu existencial”. Havia uma clara desconexão entre essa proposição mental e a realidade mesma. Mas, ora, um exercício de pensamento que não muda a vida do pensador não merece o nome de Filosofia. Chamemos de passatempo; de apreço pela logomaquia, a “guerra de palavras”; de sofismo; de diletantismo; de gosto por escrever livros. Chamemos de qualquer coisa, mas esse pensamento não é Filosofia e seu pensador não é filósofo.

O filósofo é aquele que, na busca pela verdade, está disposto a mudar o seu “eu”. Eis o princípio: “Verdade encontrada, verdade obedecida”.

O Olavo de Carvalho escreveu um outro livro, chamado A Consciência da Imortalidade [5], no qual discorre sobre os cinco níveis do “eu”. Ele diz que o nosso “eu substancial”, o “eu” que somos, no mundo real, é algo que nunca enxergaremos plenamente. Mas cada um de nós tem, em sua cabeça, uma imagem do “eu”, imagem projetada por nós mesmos: ele chama de “eu narrativo” ou “eu autobiográfico” (é aquilo que os psicólogos chamam de “ego”). Ou seja, temos um conceito de nós mesmos, que, às vezes, pode chocar-se com o eu substancial.

Suponha um padre que queira realizar bem sua vocação. Digamos que, para isso, ele precise estar disposto, por exemplo, a não passear de lancha no domingo, porque tem demandas na paróquia. Suponha que ele não queira deixar os paroquianos sem Missa, mas também queira muito passear de lancha. Há um conflito.

Caso esse padre tenha um “eu” bem construído, resolverá essa tensão. Talvez, porém, faça isso por meio de uma trapaça, fingindo não saber quais são seus deveres. Pode, quem sabe, usar um subterfúgio, alegando que Jesus, certa vez, mandou seus discípulos descansarem. Ora, pensa ele, “também sou discípulo; sou filho de Deus”. Mas então a secretária paroquial avisa o sacerdote que ele não providenciou um substituto e que, ao longo do ano, já havia tirado trinta dias de férias, e que andava se ausentando muito, cancelando Missas com grande frequência, mandando os ministros fazerem Celebração da Palavra. Enfim, como é possível resolver essa tensão interna? É um exemplo exagerado, mas serve para ilustrarmos como as pessoas constroem o próprio ego de forma dissonante, problemática.

As trapaças que as pessoas fazem consigo mesmas são psicologicamente dilacerantes! O sujeito está mentindo para si, mas não é capaz de enganar-se completamente: algo dentro dele percebe e denuncia-lhe o embuste.

Para fugir dessas dissonâncias e alcançar a harmonia desses “eus”, há que haver um compromisso de virtude e de busca da verdade. Uma busca prudente, misericordiosa, bondosa, em sintonia com Deus, não esse engodo de se considerar “muito bom num mundo que está imerso no erro”. Isso não vai funcionar.

Estamos permanentemente nesse conflito e constantemente cedemos ao vício do autoengano. Pecamos e, como a máquina de mentir que há em nossa cabeça, bolamos, rapidamente, uma autojustificativa. De pecadores, nos fazemos sábios e santos. O problema, porém, é que se queremos realmente ser sábios ou santos, não podemos nos “mimar”, não podemos apelar à retórica do fingimento.

Ao analisarmos esse problema da dúvida cartesiana, vemos que todo o palavreado dos filósofos modernos não passa de retórica. Ora, não foi a suposta filosofia construída por certezas apodícticas, para se opor ao obscurantismo medieval, que culminou no Terror em Paris, numa revolução que, em poucos meses, matou mais do que quatrocentos anos de Inquisição?

As reverenciadas luzes da razão tornam-se um perigo quando os que as invocam não estão dispostos a questionar sua vida e sua honestidade.

Agora, é certo que devemos questionar a própria honestidade, ter maior coerência interna, tornarmo-nos, enfim, mais autoconscientes. No entanto, esse processo não precisa ser massacrante. Precisamos ser bons pais educadores de nós mesmos. Há que haver uma pedagogia que se aplica lenta e amorosamente. Aliás, é bem a esse modo, como esse espírito, que estamos conduzindo esse Studiositas.

De qualquer modo, precisamos nos esforçar. Precisamos abandonar essa imagem ideal que temos de nós mesmos; precisamos nos livrar dessas arapucas mentais, desse fingimento, desse autoengano. Procuremos mais coerência; procuremos realmente buscar a verdade e amá-la, ainda que seja dolorosa.

Um pensamento para justificar a vida

Descartes narra que a inspiração para a dúvida metódica nasceu de três sonhos seguidos que ele teve no dia 10 de novembro de 1619, aos 23 anos. Ocorre que, como de costume, ele parece ter os interpretado ao contrário.

O primeiro sonho começa com o pensador caminhando. Como seu lado direito está muito fraco, ele prossegue com grande esforço, inclinado para o lado esquerdo e mancando. A certa altura, avista uma igreja, decide rezar e um vento forte como que o empurra até lá.

A interpretação de Descartes? O vento são os espíritos malignos.

Ora, como espíritos malignos o estariam levando à igreja?

Então, quando está entrando no templo, ainda enfrentando o vendaval, lembra-se de que, no caminho, alguém o havia cumprimentado e ele não respondera. Por polidez, decide voltar e corrigir a desfeita.

Ora, não seria apenas o pecado do respeito humano? Não estaria ele mais interessado em agradar uma pessoa do que a Deus?

Seguindo o sonho: após ir até aquela pessoa e cumprimentá-la, ele volta à igreja, mas alguém o chama. Ao se virar, percebe que o outro quer presentear-lhe com um melão (Descartes vem de uma região da França que produzia bons melões). Novamente, ele sai da igreja.

Há, claramente, no sonho, um conflito interior entre a decisão de ir para a igreja e rezar ou buscar, fora, coisas prazerosas e agradáveis.

Descartes inverte a interpretação do sonho, revelando sua consciência perturbada, própria de quem deseja, através de uma suposta lógica matemática, encontrar um arrazoado que pacificaria seu “ego”.

Ele, para ficar em paz, precisa justificar o afastamento do caminho católico. Vê-se igualmente, nos filósofos modernos — não um detalhe, mas uma regra —, que todos eles constroem seu pensamento de forma a justificar a vida que levam. Isso vai no sentido oposto daquilo que era proposto pelos filósofos antigos: um pensamento capaz de questionar a vida e, se preciso, modificá-la. É essa a Metanoia, a mudança de mentalidade da qual Jesus nos fala. É assim que podemos domar a “máquina de enganar” que temos dentro de nós.

Tomar essa decisão de amar a verdade, com todos os seus custos, pode nos levar à incerteza e insegurança. Mas tenhamos coragem! Não precisamos ter certeza geométrica de tudo; basta saber que alguém que sabe: é Deus! Não podemos saber tudo, mas saberemos de algo — dominaremos essa parte da verdade que nos será confiada e isso fará parte da nossa responsabilidade, da missão que recebemos.

A Filosofia moderna parte da pretensão de que o homem ocupe um lugar que não é seu, mas de Deus, e por isso levou a humanidade aos desastres dos últimos séculos.

Como saber que não estamos trapaceando?

Primeiro, devemos entender como funciona a inteligência humana. Vamos, mais uma vez, partir daquela primeira frase das Meditações de Descartes: “Faz alguns anos, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras, e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí.”

Seria essa experiência verdadeira? Use, aluno, sua experiência de vida, o seu repertório — os romances que leu, as vidas dos santos, outros livros, etc — e comece a imaginar.

Isso é um exercício filosófico. No entanto, a maior parte das pessoas lê a frase, entende o que foi dito, mas não dá esse passo seguinte, de se questionar: isso corresponde a alguma experiência real? Não seria uma descrição muito incompleta e caricaturada? Fui realmente enganado a vida inteira?

Primeiro: não existe a mínima possibilidade de um ser humano chegar à vida adulta tendo sido enganado o tempo todo. Segundo: a dúvida metódica, como seu próprio artífice demonstra, é um empreendimento inviável, pois a vida humana só se desenvolve baseada na confiança. A criança que recebe a mamadeira da mãe não duvida, pensando que ali possa haver veneno. Quando o pai estende as mãos e pede que a criança se jogue, ela o faz, certa de que o pai não a deixará cair no chão. Sem essa confiança fundamental a humanidade simplesmente não vingaria.

Descartes só chegou aos 23 anos, teve seus famosos sonhos e, a partir deles, as intuições que originaram seu livro, porque antes ele confiou nas pessoas. Na prática, ele havia recebido muito mais coisas corretas do que erradas.

Eis o teste fundamental: quando estudamos, devemos sempre imaginar como seria a aplicação daquelas ideias numa experiência real. Se não fizermos assim, repito: podemos criar somente “cultura filosófica”, mas jamais seremos verdadeiramente filósofos.

Hoje em dia, muitos que se denominam assim apenas vivem da fama dos verdadeiros filósofos: o sujeito ingressa na universidade e decide fazer uma tese sobre Descartes; sente, porém, que não pode criticar o autor, afinal, está falando do fundador da Filosofia moderna. Criticá-lo poderia valer ao estudante o rótulo, e sua carreira estaria arruinada. Então esse estudante aprende a “manusear” os textos de Descartes de “forma adequada”. Infelizmente, é isso que estão fazendo nas universidades.

Quantos, depois de ler, meditam e perguntam-se: “O que o autor está dizendo corresponde a algo no mundo real?”

O livro Visões de Descartes, do Olavo de Carvalho, faz exatamente esse processo. Diz ele que não estudou todo o pensamento cartesiano, mas que, a partir de alguns livros do francês, começou a meditar e verificar se as experiências ali descritas eram reais. Olavo então demonstra, ponto a ponto, por que aquelas experiências descritas por Descartes não poderiam ter acontecido, pelo menos não daquela forma.

Quando se lê um autor, precisamos procurar a experiência fundante presente em sua obra. É a partir daí que podemos nos perguntar: “Isso corresponde à minha vida?” É claro que, quando lemos Santo Tomás de Aquino — um grande santo, que escreve com grande clareza e está apoiado na doutrina católica —, a tarefa é muito mais fácil. Com Descartes, cheio dessas ambiguidades e inconsistência que temos apresentado, o processo é mais empenhativo, sobretudo para quem não está acostumado.

De qualquer forma, independente do autor, conforme você for lendo, pare e pergunte: “E quanto a mim? Essa experiência é possível?”

Percebo com frequência que muitas pessoas, por não fazerem esse exercício, leem, por exemplo, os livros dos santos, aprendem a ver as “coisas como elas deveriam ser”, introjetam tudo aquilo, criam uma “cultura católica”, mas, na prática, não se tornam pessoas melhores!

Há muita gente preocupada em ler vários livros. Pois bem, este é o caminho para não se chegar a lugar algum. Quantidade jamais deve ser a preocupação. O que importa é ler e refletir, como temos proposto. Sem isso, de que vale ler muito? De que vale se empanturrar de informações? Para que essa gula intelectual?

É essencial essa formação interior, trabalharmos a nossa capacidade de dizer a nós mesmos: “Isso aqui está errado na minha vida.”

Por exemplo: sei que na internet há muitas críticas a mim. E é natural, eu sou mesmo criticável. No entanto, o que muitos críticos não se dão conta é de que eu também estou num caminho. Coisas que eu disse há vinte anos, creio, hoje, que poderiam ser melhoradas. Mas se eu disse, é por estar, na época, convicto de que elas correspondiam à verdade.

Temos aquela “clássica” história: fui formado na Gregoriana, em Roma, e nunca tinha lido uma página de Garrigou-Lagrange; só tinha lido e estudado autores como de Lubac, Rahner e toda essa turma. Quando, anos atrás, falei sobre o conflito entre as linhas teológicas no Concílio Vaticano II, eu tinha uma visão muito negativa do Garrigou-Lagrange e dos tomistas. Pensava que era uma posição completamente inadequada para o mundo atual — porque foi isso que aprendi —, e que era melhor a posição inclinada aos Padres da Igreja, a abordagem de retorno às “fontes”. Isso faz anos. Mas há, ainda hoje, críticos com dedo em riste bradando que sou modernista. Não, eu não era modernista. Simplesmente tinha uma visão esquemática daqueles assuntos. Além disso, ora, também tenho o direito de mudar, de me converter, de corrigir meus erros! Mesmo assim, vociferam os críticos: “O Padre Paulo é um modernista disfarçado!”

Por fim, aconselho: não tenham muita pressa nesse caminho formativo. Tenham paciência. Queiram realmente se aprofundar nas coisas, apliquem as verdades que encontrarem e mudem a própria vida.

Junte-se a nós!