“Achamos que religião não se deve discutir. Abram-se as portas dos templos, preguem-se as verdades das Escrituras e do Evangelho, e o povo que decida de acordo com os seus sentimentos. Defendemos a liberdade de cada um crer do seu modo e cultuar Deus segundo a sua maneira de crer.”
Será que o autor destas linhas cogitou com seriedade no que a pena escrevia? Terá ele refletido nas consequências de semelhante princípio?
Pois temos aí a forma mais extrema do subjetivismo sentimental; temos o relativismo levado ao absurdo; temos a negação em princípio de todas as verdades absolutas; temos a capitulação definitiva da razão em favor do puro sentimento; temos o liberalismo religioso em sua formulação mais crassa e nua; temos a contestação radical dos valores eternos do Evangelho.
Imaginemos Cristo pregando sobre as Três Pessoas em Deus, sobre a necessidade de perdoar aos inimigos, sobre a recompensa ou punição na outra vida, sobre a necessidade de crer em suas palavras, sobre a obrigação de se fazer batizar e de comer a sua carne e beber o seu sangue etc. E de repente aparece aí o nosso espírita para aplicar o seu princípio: — Alto lá! Liberdade! Isso assim não! Cada um vá para casa e “decida de acordo com os seus sentimentos”!…
E lá se vão os atentos ouvintes. Um deles “sente” que isso de Três Pessoas em Deus não é verdade; outro “sente” que não precisa perdoar aos inimigos; mais um terceiro “sente” que vai reencarnar; fulano “sente” que não tem nenhuma necessidade de batismo; sicrano “sente” que aquilo do inferno é puríssima alegoria; beltrano “sente” que não, que deve ser assim mesmo; mais outro “sente” que vai logo direitinho para o céu, sem mais formalidades; e assim por diante, cada qual decidindo “de acordo com os seus sentimentos”…
Que tal? E Jesus, satisfeitíssimo com o estrondoso efeito de seus ensinamentos…
E o nosso espírita continua: “Paulo determinou que cada um examinasse as Escrituras e escolhesse o que lhe parecesse bom.” Infelizmente, seguindo aliás um costume muito geral entre os espíritas, nosso improvisado exegeta deixou de indicar o lugar exato em que o grande Apóstolo teria dito tão grande disparate. E garantimos, pelo único botão do nosso burel, que esta frase é puríssima invenção e não se encontra em parte nenhuma das epístolas paulinas.
Depois dessa falsa citação, segue a triunfante conclusão: “Cada um escolha de acordo com a sua compreensão, e não de acordo com a compreensão alheia.” Para então rematar com mais esta calúnia: “Entretanto, as Escrituras foram por muito tempo guardadas e sonegadas ao exame, como a luz debaixo do alqueire, até que a Reforma viesse levantar o pesado alqueire e abrir as Escrituras.”
Também Allan Kardec proclama energicamente esta mesma “liberdade”, declarando que o “direito de examinar pertence a todos e as Escrituras não são mais a arca santa na qual ninguém se atreverá a tocar com a ponta do dedo sem correr o risco de ser fulminado” [1].
Os espíritas querem, no dizer de León Denis, “por si mesmos, achar a solução dos grandes problemas e a fórmula do seu Credo” [2]. Toda essa atitude é uma herança da revolta de Lutero e chama-se “teoria da livre interpretação”.
O próprio Lutero bem depressa verificou dolorosamente que o resultado de tudo isso é que, segundo uma expressão dele mesmo, “há tantos credos quantas cabeças”. É inevitável. É o que estamos vendo entre os protestantes.
Com o princípio da livre interpretação a Bíblia tornou-se um dos livros mais perniciosos da humanidade. Cada um encontra um texto para os seus desejos e caprichos — e pronto: é um perfeito “cristão”!
Lutero descobre na Escritura um texto que autoriza o landgrave de Hesse a tomar segunda mulher; Henrique VIII não encontra dificuldades para interpretar favoravelmente as passagens que se referem ao divórcio; Carlstadt sustenta com a Bíblia em mão que a poligamia pode ser lícita; Allan Kardec “descobre” aí a doutrina da reencarnação; outro encontra que Jesus foi fazer uma “sessão espírita” no monte Tabor…
É uma consequência lógica daquele princípio protestante, sustentado e propagado também pelos espíritas: que cada um tem o direito de interpretar a Bíblia a seu modo e segundo o seu talante. A isso chegaremos infalivelmente enquanto sustentarmos que qualquer alfaiate ou negociante da esquina, sem maiores estudos e conhecimentos, tem o direito e liberdade de fazer exegese e decidir de acordo com os seus próprios sentimentos ou a sua compreensão.
Mas essa mesma confusão prova que o princípio da livre interpretação não pode estar certo. Se a Bíblia vem de Deus, e não temos dúvida a esse respeito, então deve ter o seu valor objetivo, igualmente válido para todos, quer queiram quer não.
Se Jesus disse, por exemplo, “quem crer e for batizado, será salvo; quem não crer será condenado”, então estas palavras devem ter um certo e determinado sentido, intencionado por Cristo, e todo o mundo deverá ou aceitar este sentido ou renegar a Cristo e assumir as consequências desta sua atitude.
Já São Pedro verificou o efeito desastroso da exegese feita por sapateiros e alfaiates: “Nosso caríssimo irmão Paulo vos escreveu segundo a sabedoria que lhe foi dada, como também faz em todas as suas epístolas, nas quais há algumas coisas difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras” (2Pd 3, 16). Isso também está na Bíblia!
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