Se você é católico há pelo menos alguns anos, conhece uma tradição celebrada na Sexta-feira Santa em igrejas ao redor do mundo: a adoração da Cruz. Mas como essa tradição começou e o que ela significa para nós, cristãos?
Antes de mergulhar na história e na tradição desta importante parte da liturgia da Sexta-feira Santa, é importante notar que muitos lugares se referem a este ritual como veneração da Santa Cruz, ao invés de adoração da Santa Cruz. Este texto usa a terminologia tradicional do Missal Romano [i]: adoração. Além disso, aqui, quando se faz referência à Cruz, está implícita também a ideia de crucifixo. [N.T.: Para entender melhor por que prestamos culto de latria à Cruz de Cristo, e aos crucifixos que o representam, cf. STh III 25.]
A busca de uma santa pela Vera Cruz
O rito de adoração da Santa Cruz remonta a Santa Helena [ii], que, no início do século IV, viajou de Constantinopla a Jerusalém à procura dos lugares da Paixão de Cristo, especialmente da Cruz usada na crucificação. Os lugares em que Jesus foi julgado, sentenciado e crucificado foram soterrados pelos romanos, debaixo até mesmo de estruturas pagãs. Na busca pelo lugar exato em que Cristo pendeu do madeiro, Helena consultou muitos moradores. Disseram-lhe que a chave para encontrar a Cruz era encontrar primeiro a sepultura de Cristo, porque os judeus costumavam cavar nas proximidades e enterrar tudo o que pertencia ao criminoso, inclusive o instrumento de execução. Com essa indicação, Helena mandou escavar muitos sítios, dos quais se removeram estátuas e edifícios pagãos.
Foram achadas três cruzes. Para identificar qual delas era a verdadeira, levaram-nas a uma santa mulher, doente e à beira da morte. Primeiro, rezaram por ela, depois a tocaram com parte de cada uma das cruzes. O toque de somente uma delas restituiu-lhe a saúde. Era a Vera Cruz. Helena enviou parte dela para Constantinopla e deixou a outra em Jerusalém. Mais tarde, levaria pedaços da Cruz também para Roma, onde foi consagrada uma igreja conhecida como Basilica di Santa Croce in Gerusalemme (“Basílica da Santa Cruz em Jerusalém”).
Pouco depois de a Cruz ser descoberta, os cristãos começaram a adorá-la. Em peregrinação à Terra Santa, no século IV, uma mulher chamada Egéria descreveu como nossos antepassados cristãos adoravam a Vera Cruz na Sexta-feira Santa:
E assim, põe-se uma cadeira para o bispo no Gólgota, atrás da Cruz, que agora está fixada; o bispo senta-se na cadeira; é posta diante dele uma mesa coberta com pano de linho; os diáconos ficam em pé em volta da mesa, e é trazido um relicário de prata dourado, no qual está o santo lenho da cruz, o relicário é aberto e exposto, e põe-se na mesa tanto o lenho da cruz quanto a inscrição.
Depois de ter sido colocado na mesa, o bispo, sentado, aperta com as suas mãos as extremidades do santo lenho; por sua vez, os diáconos que estão de pé ao redor o vigiam. De fato, este é assim vigiado porque é costume que vindo um a um, todo o povo, tanto os fiéis quanto os catecúmenos, inclinem-se à mesa, beijem o santo lenho e sigam adiante. E porque se diz alguém ter cravado, não sei quando, uma mordida, e ter roubado um pedaço do santo lenho, por isso agora ele é guardado pelos diáconos, os quais ficam em pé à volta, para que ninguém, ao chegar perto, ouse novamente proceder assim.
E assim, pois, todo o povo passa, um por um, todos se inclinando, primeiro tocando com a testa e depois com os olhos, a cruz e a inscrição, e assim beijando a cruz, passam adiante, porém ninguém põe a mão para tocá-la. Mas, quando tiverem beijado a cruz e tiverem passado adiante, um diácono fica em pé, segura o anel de Salomão e aquela âmbula a partir da qual os reis eram ungidos. Não só beijam a âmbula, mas também veneram o anel [iii].
Por volta do século VII, na Sexta-feira Santa, a adoração do madeiro da verdadeira Cruz tinha lugar em Roma. O Papa e outros caminhavam em procissão de São João de Latrão até a igreja da Santa Cruz e depois, com grande humildade, sem cobertura nem sapatos, adoravam o madeiro da Cruz.
À medida que a Igreja crescia, e como só em algumas paróquias havia fragmentos da Vera Cruz, usava-se uma cruz vazia [sem Cristo] ou um crucifixo a ser adorado pelos fiéis na Sexta-feira Santa. Hoje, uma cruz sem a imagem de Jesus crucificado não é mais comum em nossas igrejas. De fato, a Instrução Geral do Missal Romano diz:
Deve haver também uma cruz, com a figura de Cristo crucificado sobre ela, onde seja claramente visível para a congregação reunida. Convém que tal cruz, que lembra aos fiéis a Paixão salvadora do Senhor, permaneça junto ao altar mesmo fora das celebrações litúrgicas (n. 308).
A sombria sacralidade de adorar a Santa Cruz na Sexta-feira Santa evoca decerto a Paixão salvadora do Senhor.
Na Idade Média, tornou-se popular por algum tempo o costume de “rastejar” de joelhos até a Cruz. Diz-se que o venerando São Luís IX, Rei de França (1226–1270), foi de joelhos até a Cruz na Sexta-feira Santa, descalço, sem coroa, vestido de cilício, e seus filhos fizeram o mesmo. Na Inglaterra do século XVI, o Rei Henrique VIII (1509–1547) fez uma proclamação que incluía a veneração da Cruz: “Rastejando até a cruz e nos humilhando diante de Cristo na Sexta-feira Santa, ali nos oferecemos a Cristo, beijando-o em memória de nossa redenção, realizada por Ele na cruz”. A prática foi repetida várias vezes até o reinado de Elizabeth I (1558–1603), quando então foi suprimida.
O ato litúrgico da Sexta-feira Santa hoje
A Sexta-feira Santa é o único dia do ano em que a Igreja não celebra o santo sacrifício da Missa. Neste dia, os fiéis devemos concentrar-nos na Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o dia mais triste conhecido pelo homem, dia em que o nosso Salvador morreu por nós na Cruz. Mais de dois mil anos depois, os cristãos ainda se reúnem toda Sexta-feira da Paixão à tarde, por volta das 15h, para lembrar de maneira especial o que aconteceu no Calvário séculos atrás — Cristo, sofredor e inocente, foi executado pendurado num madeiro.
Embora as igrejas costumem lotar, a Sexta-feira Santa não é dia santo de guarda. É um culto divino conhecido como Celebração da Paixão do Senhor, composto de três partes. Na primeira, ouvimos o relato da Paixão do Evangelho segundo São João e participamos de intercessões especiais e solenes. Em seguida, adoramos a Cruz. Finalmente, recebemos a Sagrada Comunhão. A parte mais dramática é a adoração da Cruz.
Feita a leitura da Paixão e das dez intercessões, o rito de adoração começa com a apresentação da Cruz. Há duas formas de apresentá-la. Uma cruz velada pode ser trazida em procissão através da igreja até o altar, onde o padre retira o véu em três etapas, cantando entre elas: “Eis o lenho da Cruz, do qual pendeu a salvação do mundo”. Os fiéis reunidos respondem: “Vinde, adoremos”, depois se ajoelham e adoram em silêncio. Repete-se isso três vezes. Uma vez descoberta, a Cruz é levada para um local visível e acessível a todos, normalmente na entrada do presbitério. Ela pode ser sustentada por dois ministros. A adoração começa com cada pessoa se aproximando e adorando a Cruz, por genuflexão ou outro gesto apropriado conforme os costumes locais. Uma forma comum de adoração é fazer uma genuflexão e depois beijar o crucifixo. A genuflexão — anota a Instrução Geral do Missal Romano — é “reservada ao Santíssimo Sacramento e à Santa Cruz desde a solene adoração na ação litúrgica da Sexta-feira da Paixão do Senhor, até o início da Vigília pascal” (n. 274).
Em seu livro A Sense of the Sacred: Roman Catholic Worship in The Middle Ages [“Sentido do Sagrado: Culto Católico Romano na Idade Média”, sem tradução portuguesa], James Monti faz referência a Guilherme Durando, um bispo francês do século XIII, para quem a Cruz é desvelada em três etapas a fim de representar as três vezes que Cristo foi ridicularizado — durante o julgamento, na sentença e na crucificação:
Na primeira revelação, descobre-se um braço da cruz mas mantém-se o rosto do crucifixo velado, símbolo da zombaria e dos golpes que Cristo recebeu de olhos vendados no pátio do sumo sacerdote. Na segunda, revela-se o rosto do Crucificado, para representar a coroação de espinhos no pretório. Na terceira e última, descobre-se completamente o crucifixo, símbolo dos escárnios dos transeuntes que, balançando a cabeça, blasfemaram-no, enquanto Ele pendia despido na Cruz.
Outra forma de apresentar a Cruz é o sacerdote ou diácono dirigir-se à porta da igreja, receber a Cruz desvelada e levá-la em procissão até o presbitério. À porta, no meio da igreja e no presbitério, o sacerdote ou diácono levanta a Cruz, cantando: “Eis o lenho da Cruz”, e a comunidade responde com: “Vinde, adoremos”. Quando se ergue a Cruz, todos ajoelham-se e adoram-na. Então, a Cruz é posta na entrada do presbitério para a adoração dos fiéis.
Todos os presentes na Sexta-feira Santa têm a oportunidade de adorar a Cruz. Em carta emitida pela Congregação do Culto Divino em 1988, diz-se que “a adoração pessoal da cruz é um elemento muito importante desta celebração” (Paschalis Sollemnitatis, n. 69). O mesmo documento afirma: “A cruz a ser apresentada ao povo seja suficientemente grande e artística. […] Este rito deve ser feito com um esplendor digno da glória do mistério da nossa salvação” (Id., n. 68). Embora sejamos encorajados a adorar individualmente, em alguns lugares usa-se uma Cruz maior para ser adorada por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. O Missal Romano ainda permite ao sacerdote, no caso de ser grande o número de adoradores, colocar-se em frente ao altar e levantar a Cruz, dando a todos a oportunidade de adorá-la em silêncio [iv].
Poucas coisas são mais tocantes para um católico do que reunir-se com centenas de fiéis e, em procissão, adorar nosso Jesus crucificado, ver as pessoas se ajoelhando e beijando os pés de Cristo, e observar como os pais levantam os filhos para fazer o mesmo. Apesar da dor, sabemos que, sem a crucificação, instrumento de nossa salvação, não haveria ressurreição, o que significa que não haveria vida eterna para nós. Cada bênção, cada graça, cada sacramento que temos é fruto do sacrifício de Cristo no Calvário.
De fato, nós nos apresentamos humildemente em adoração diante daquele que se entregou por nós. Ficamos de pé onde Maria estava de pé, vemos as feridas, os pregos e a dor de seu Filho, e trememos ao beijar-lhe os pés, procurando uma forma de exprimir o nosso amor. Vêm-nos à mente as tristes palavras do Stabat Mater: Tui Nati vulnerati, / Tam dignati pro me pati, / Poenas mecum divide. — “Do teu Filho que por mim / entrega-se à morte assim, / divide as penas comigo”.
A celebração da Sexta-feira Santa, que começa com a leitura da Paixão de Cristo, termina com a Sagrada Comunhão. A Eucaristia distribuída na Sexta-feira Santa é consagrada na noite anterior, durante a liturgia de Quinta-feira Santa, e depois transferida para o altar da reposição. Na Sexta-feira Santa, após a adoração da Cruz, as hóstias consagradas são buscadas para a Sagrada Comunhão. Após a Comunhão, o Santíssimo é retirado com reverência da igreja para um local adequado, onde permanece até a Vigília Pascal. O padre profere a oração de bênção; todos os presentes se ajoelham diante da Cruz e retiram-se em silêncio, prometendo nunca mais causar tanta dor a Jesus. A Cruz permanece, mas o altar é desnudado e toda a igreja assume a austeridade que notamos no início do ato litúrgico.
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