Mesmo entre os aficionados por literatura fantástica para quem Tolkien é o pai desse novo gênero literário, muitos ignoram que, nas palavras do próprio autor, O Senhor do Anéis é, “fundamentalmente, uma obra religiosa e católica”. É provável que isso seja uma surpresa também para boa parte dos católicos.

Os leitores de O Senhor dos Anéis dificilmente encontrarão uma “Terra Média católica” procurando, aqui e ali, referências ocultas ao Evangelho ou a símbolos cristãos. Tolkien mesmo se opôs a esse tipo de análise. Poderão descobri-la, no entanto, se olharem para as motivações de Tolkien enquanto escritor.

Os passatempos de um professor universitário

Visto de fora, Tolkien encarnava a típica e curiosa figura de um professor de Oxford: vivaz, jovial, de contornos um tanto arredondados, sempre trajando, sob uma grande casaca, ora um suéter, ora um colete. Embora fosse amável e acessível, tanto os estudantes como os que passeavam pelo campus diziam entendê-lo com muita dificuldade, já que as palavras lhe saíam resmungadas do cachimbo onipresente que ele trazia pendurado à boca. Tolkien representava de muitas maneiras os hobbits de sua história, que preferiam o conforto do lar às grandes aventuras.

Como muitos professores de Oxford, Tolkien preferia levar uma vida acadêmica tranquila, enriquecida com algum hobby peculiar. Ele amava desde pequeno criar histórias e línguas imaginárias; foi justamente o seu interesse por línguas e mitologia que o levou a seguir carreira acadêmica. Tolkien tornou-se professor de literatura inglesa na Universidade de Leeds e, pouco depois, em Oxford. Mas, mesmo como professor em tempo integral, ele sempre conseguiu dedicar tempo às suas “línguas élficas”.

A história da Terra Média brotou de sua fértil imaginação à medida que ele criava essas línguas fictícias. Ao longo da vida, Tolkien escreveu, reescreveu e poliu uma série de episódios centrais da história, mas nunca se sentiu satisfeito. As obrigações do dia-a-dia e a quantidade de trabalho que lhe pesavam os ombros impediam-no de concluir o quadro. Escritos difusos como O Silmarillion, por exemplo, publicados postumamente por seu filho, Christopher, compõem o pano de fundo narrativo da Terra Média. Entre essas subtramas conta-se a saga O Anel, que dá a quem o possui a capacidade de controlar as mais sombrias criaturas da Terra Média. É a história da criação e destruição deste anel que constitui a base do que se consideram hoje os dois maiores trabalhos de Tolkien: O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

Quando os dois primeiros volumes de O Senhor dos Anéis vieram à luz em 1954, dezessete anos após o grande sucesso de O Hobbit, Tolkien era professor em Oxford havia já trinta anos e estava a apenas quatro da aposentadoria. A fama que até então se lhe vinha escapando finalmente o arrebatou em 1960, quandos seus livros começaram a ser considerados verdadeiras obras-primas, inspirando um novo tipo de literatura: a literatura fantástica. No entanto, nem o sucesso popular nem o reconhecimento de seus pares foram a motivação principal de seu trabalho; o que sempre inspirou a Tolkien foi a sua fé católica.

A fé de uma mãe

Humphrey Carpenter, sua biógrafa autorizada, caracteriza a devoção de Tolkien à fé católica como “total”. Os amigos reconheciam-no como um católico engajado, abertamente apostólico (Tolkien teve um papel decisivo na conversão de C. S. Lewis ao cristianismo) e privadamente piedoso.

Ao longo de toda a sua vida, Tolkien encontrou na Eucaristia um consolo incomparável durante as crises de tristeza e desespero que vez por outra o abatiam. As consolações que ele experimentava ao comungar foram especialmente importantes durante o período desnorteador em que as reformas do Vaticano II começaram a ser implementadas. Tolkien confessava-se com frequência, embora seu caráter reflexivo parecesse, antes, um sintoma de escrúpulos. Quando não podia ir ao confessionário, ele se sentia espiritualmente ansioso, sobretudo por não poder se aproximar da Eucaristia.

Ninguém exerceu maior influência sobre o crescimento de sua fé e inteligência do que a mãe, Mabel. De fato, Tolkien dizia ter aprendido da fé católica tudo o que sabia e que essa mesma fé, ele a devia à sua mãe, a qual, nas palavras do filho, “agarrara-se à própria conversão e morrera jovem, devido em boa parte às privações de uma vida pobre e austera”.

Mabel, com efeito, dedicou-se literalmente à exaustão, a fim de garantir o sustento da família depois da morte do marido na África do Sul, causada por uma febre reumática quando Tolkien contava apenas quatro anos. Ela criou sozinha os dois filhos em um subúrbio de Birmingham, Inglaterra. Durante esses anos de prova, Mabel tomou duas decisões que mudariam para sempre a vida de Tolkien: ela decidiu criar os filhos na fé católica e fazer todo o possível para que eles recebessem uma educação que os capacitasse para os estudos universitários.

Ela cumpriu o primeiro propósito com a ajuda dos padres do Oratório de Birmingham. Fundado em 1859 por John Henry Newman, o Oratório convertera a cidade de Birmingham, tradicionalmente presbiteriana, em um polo de renovada fé católica, e isso em pleno século XIX inglês. Mabel crescera como unitarista e passara vários anos na Igreja Anglicana. Após muitos anos à procura da verdade, enfim, ela e os filhos foram recebidos na Igreja Católica em 1900, na igreja de St. Anne.

Sem o auxílio econômico do pai, no entanto, o propósito de educar os filhos exigia pôr a mão na massa, já que os melhores colégios eram pagos. Além do que a decisão de tornar-se católica fez com que a família dela se afastasse e lhe negasse qualquer ajuda financeira. Por isso, Mabel fez o que toda mãe criativa e razoavelmente educada faria em semelhante situação: educou os filhos em casa até que eles pudessem ser aprovados em algum exame de admissão e receber uma bolsa de um bom colégio particular.

Sob a batuta de Mabel, Tolkien aprendeu a ler aos quatro anos e, aos sete, já sabia latim, francês e alemão. Ele se dedicou às línguas com tanto zelo e interesse que, em questão de tempo, acabou recebendo uma bolsa para estudar em uma das melhores escolas privadas da Inglaterra. Sua futura carreira acadêmica estará definitivamente a salvo quando, em 1909, o aceitarem como estudante do Exeter College, em Oxford.

Infelizmente, Mabel não viveu o suficiente para colher os frutos do próprio suor. Em 1904, quando Tolkien tinha somente doze anos, Mabel morreu de diabetes, uma doença incurável à época. Antes de morrer, porém, ela assegurou que os filhos continuariam a ser educados como católicos: constituiu a um antigo amigo do Oratório, pe. Francis Morgan, guardião legal dos meninos e fez com que seus familiares protestantes prometessem não tentar nunca convertê-los da fé católica.

A fé de Tolkien deveria, pois, manter-se de pé na ausência da mãe. Pe. Morgan, com seus próprios recursos, sustentou materialmente os garotos até atingirem a maioridade. Embora tenham sido anos magros e de fome para os dois irmãos, eles sempre teriam uma profunda afeição ao severo, mas atencioso pe. Morgan. Enquanto estiveram sob os seus cuidados, nunca lhes faltou ajuda, nem espiritual nem intelectual.

Pe. Morgan não tirava os olhos dos dois, que viviam numa pensão à pouca distância do Oratório. Os irmãos acolitavam-no todos os dias na Missa de manhã e depois tomavam café juntos no refeitório.

Aos dezesseis anos de idade, Tolkien se apaixonou por Edith Bratt, uma amiga próxima. Pe. Morgan descobriu o “amor clandestino” ao dar-se conta de que as notas do rapaz estavam despencando. Edith, além de ser protestante, era três anos mais velha do que Tolkien, de maneira que pe. Morgan não podia senão desencorajar aquele relacionamento; oito anos mais tarde, porém, presidiria o casamento dos dois.

Devido às diferenças religiosas entre eles, o casamento poderia ter sido uma tragédia, mas a família Tolkien soube lidar bem com a situação. Embora Edith tenha concordado em se converter ao catolicismo como condição para o casamento, ela o fez de muito má vontade. Com o passar do tempo, o desgosto que sentia em ter de se confessar amargou-se ainda mais, até que ela finalmente decidiu parar de ir à Missa de vez e se opôs a que o marido levasse os filhos consigo à igreja.

Já que as divergências religiosas entre eles eram irreconciliáveis, ambos concordaram que Edith voltaria a frequentar os ofícios anglicanos. Ao fim e ao cabo, a hostilidade da esposa à fé do marido e dos filhos acabou desaparecendo. Apesar de todas as dificuldades, a devoção de ambos à família os manteve unidos por 55 anos, e foi comum a alegria da casa quando John, o primeiro filho, ordenou-se padre.

Eucatástrofe e Mitopoiese

A amizade de Tolkien com C. S. Lewis foi, sem dúvida nenhuma, a mais impactante do ponto de vista do seu amadurecimento intelectual. Esses dois homens aguçaram a inteligência um do outro durante seus longos passeios pelo interior da Inglaterra; os frutos dessa longa amizade são, de fato, incontáveis. Em meio às conversas que teve com Lewis, Tolkien descobriu como fazer sua fé católica e sua vocação literária darem as mãos.

Quando Tolkien e Lewis se conheceram em 1926 — eram então dois jovens professores de Oxford —, sentiram-se unidos por uma paixão em comum: a mitologia nórdica. Eles e alguns outros amigos costumavam reunir-se em frente à lareira no Coalbiter’s Club para ler poesia nórdica; foi aqui que teve início o grêmio literário Inklings. As reuniões deste pequeno grupo de amigos seriam a fonte de inspiração tanto de As Crônicas de Nárnia, de Lewis, quanto de O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

Foram, porém, os debates sobre as relações entre literatura e religião o que deu liga à amizade entre os dois literatos, amizade que esteve no centro, aliás, da conversão de Lewis do agnosticismo. Paciente e persistente, Tolkien logrou conquistar o amigo para o teísmo filosófico; sua definitiva conversão ao cristianismo, contudo, deveu-se a um argumento de Tolkien que apelava para as inclinações mitológicas de Lewis. Trata-se de um argumento que revela, além disso, o modo como Tolkien entendia sua própria vocação artística.

Tolkien se deu conta de que um aspecto comum a toda a humanidade ao longo da história é a tendência à criação de mitos como veículos para transmitir as crenças mais fundamentais. Ora, argumentou Tolkien, é razoável supor que, se Deus existisse, ele se revelaria através de um mito, ainda que fosse um mito, neste caso, verdadeiro. Pois bem, o cristianismo é o melhor candidato ao papel de “mito perfeito”, já que é uma religião em que estão presentes todos os grandes elementos comuns às melhores narrativas mitológicas.

O Evangelho, com efeito, é uma “eucatástrofe”, como Tolkien e Lewis o alcunharam; é a mais feliz das tragédias, na medida em que satisfaz as mais profundas aspirações do coração humano, inclusive o desejo de uma mitologia épica. Trata-se de um mito, porém, com a vantagem de ser, ao mesmo tempo, um fato histórico, interpretado à luz de um texto literário e de um tradição poética.

Essa intuição fundamental revelou aos dois amigos o horizonte de uma nova filosofia literária, a “mitopoiese” (quer dizer, a criação de mitos), uma fonte de inspiração para criar novas mitologias para o nosso tempo. Tolkien e Lewis dedicariam o resto da vida a discutir como essa intepretação de mito, religião e literatura poderia aplicar-se à arte de escrever.

Aos olhos desses dois poetas frustrados, ganhando o pão de cada dia como professores universitários, havia ao menos uma consequência óbvia da teoria da mitopoese: urgia escrever ficção popular. Com efeito, se Deus se serve de narrativas para comunicar sua revelação ao homem, feito à sua imagem e semelhança, que vocação mais nobre poderia haver do que criar “mundos secundários” por meio da literatura?

Uma mitologia para a Inglaterra

Embora O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia representem o fruto maduro desse acordo quanto à mitopoiese, Tolkien e Lewis discordavam quanto a seus propósitos religiosos, o que explica, naturalmente, por que os estilos literários empregados na criação de Nárnia e da Terra Média são tão diferentes.

Lewis, uma vez anglicano, esperava que suas histórias aproximassem o leitor da verdade contida no Evangelho. É por isso que, no fim das contas, As Crônicas de Nárnia estão repletas de claras alusões a símbolos e alegorias cristãs, além de apresentarem vários momentos de óbvia instrução moral e religiosa. Lewis queria, numa palavra, que a sua história evangelizasse.

Para o católico Tolkien, ao contrário, o mais importante era que a Terra Média fosse uma “sub-criação” bem elaborada. Lançando mão de seus vastos talentos literários, linguísticos e históricos, Tolkien criou a Terra Média como um ato de louvor a Deus: quanto mais parecida ela fosse com um lugar de verdade, mais puro e sincero seria esse louvor, já que se aproximaria mais do próprio ato divino da criação.

Diferentemente de Lewis, Tolkien não tinha a intenção de modelar o seu mundo fictício de acordo com um plano pedagógico. Ele acreditava que, a partir do momento em que o leitor se dá conta das relações entre o mundo real e o “mundo secundário” da ficção, a magia literária deixa de surtir efeito; é como se os leitores, emergindo do mundo literário, percebessem que tudo não passou de um sonho. Tolkien queria, ao contrário, que os leitores acreditassem que a Terra Média realmente existia e não era um simples instrumento de evangelização.

Poucos leitores de O Senhor dos Anéis o sabem, mas Tolkien tinha a esperança de que a Terra Média se tornasse, eventualmente, a mitologia típica da Inglaterra. Ele pensava que as lendas do Rei Arthur eram fracas em comparação com a épica de Homero e as lendas nórdicas. A Terra Média, com seus feitos heróicos e inspiradores e suas advertências contra os perigos de ânsia por poder, foi criada com o fim de preservar da infecção dos erros modernos a herança cultural do povo inglês.

Com isso em mente, podemos entender melhor por que na Terra Média parece haver tanto espaço para a magia e o paganismo. O pano de fundo histórico sobre o qual trabalhava a imaginação de Tolkien era a Inglaterra pré-cristã — as dispersas e desconexas lendas nórdicas e anglo-saxônicas, com seus contos de valor heróico e misticismo pagão. Tolkien situou a Terra Média propositadamente antes do advento do cristianismo por medo de que ela acabasse se tornando uma espécie de alegoria sem vida e sentido.

Solapando a “geologia” moral

Apesar de se opor ao uso narrativo de alusões religiosas explícitas, Tolkien sempre afirmou que as suas obras, além de conter bons ensinamentos morais, incentivavam os leitores a se tornarem católicos; o que ele simplesmente se negava a aceitar era que isto se convertesse na finalidade primária de um criador de mitos. Seja como for, Tolkien defendia que toda “sub-criação” de sucesso veiculava, necessariamente, alguma verdade moral, já que as únicas boas histórias são justamente aquelas que refletem, de modo preciso, a estrutura metafísica do mundo em que vivemos e das escolhas morais que devemos fazer.

Assim, embora Tolkien não tivesse a pretensão de ensinar teologia moral católica, os “estratos tectônicos” da Terra Média são caracteristicamente católicos. Quem quer que leia alguma de suas cartas publicadas, ainda que escolhidas a esmo, notará sua consistência e rigor teológicos. Nelas, Tolkien confessa que, ao criar a Terra Média, construiu com todo o cuidado um mundo que tivesse os mesmos contornos morais que o nosso, um mundo criado por um deus com a mesma natureza do nosso Criador.

Por exemplo, Tolkien evita cuidadosamente retratar o conflito entre as raças livres da Terra Média e os súditos de Sauron como uma simples batalha do tipo “bem contra o mal”. A abordagem de Tolkien é, na verdade, de caráter profundamente agostiniano: os personagens da Terra Média se distinguem, mais do que tudo, por aquilo que amam, e não tanto pelo lugar que habitam. Nas fortalezas de Minas Tirith e Edora, por exemplo, encontram-se tanto corruptos como nobres. Qualquer personagem pode degradar-se por causa do orgulho, e até o mais incorrigível encontra abertas as portas da redenção.

A descrição mais aguda dessa tensão moral é a do malicioso e subserviente Gollum, sempre à procura do Anel e atormentado, ora pela cobiça lancinante de o possuir, ora por sua fidelidade aos hobbits. Tolkien o descreve, ao mesmo tempo, como um assassino traiçoeiro e uma pobre vítima da própria vontade, selvagemente distorcida. Até mesmo Sauron, o Satã da Terra Média, foi outrora um poderoso anjo guardião, antes de ser corrompido por seus maus desejos.

Tampouco estão livres de toda culpa os heróis de Tolkien, e podemos assistir às provas morais a que eles são submetidos. O mago Gandalf, por exemplo, e o grande príncipe Boromir são duramente tentados pelas promessas de glória com que os seduz o poder do Anel. Também os hobbits têm de resistir à tentação de fugir ao sofrimento e voltar para o conforto da terra natal, o Condado, ao invés de ir em frente e destruir o Anel na Montanha da Perdição.

Seguindo os ensinamentos de Santo Tomás de Aquino na Summa Contra Gentiles, Tolkien nunca cai na armadilha de descrever um personagem ou objeto como intrinsecamente bom ou mau. O mal, no fim das contas, não é mais do que uma ausência — a ausência do bem devido — e, por conseguinte, não pode estar encarnado como uma pessoa ou objeto.

Aliás, em nenhum momento o Anel, forjado pela arte mágica de Sauron, é caracterizado como algo mau em si mesmo. Ao contrário, o seu poder de controlar os Nazgûl e de tornar invisível a quem o possui é considerado, na verdade, uma tentação que o torna muito perigoso para ser utilizado como deveria. Os hobbits, por sua vez, só puderam resistir à tentação de pecar mortalmente porque, ao que parece, não tinham nenhum talento para a vanglória; no entanto, eles várias vezes se desgastaram, tanto física como espiritualmente, em virtude dos pecados veniais que o Anel lhes inspirava.

De fato, a ética e a metafísica que permeiam a história da Terra Média correspondem ao mundo que nós conhecemos: corrupção da vontade, ausência de um destino iniludível, mentiras no âmago de atos morais reprováveis etc. Os objetos mágicos, à semelhança da tecnologia que temos à disposição, só se tornam bons na medida em que são utilizados para fins igualmente bons. Do mesmo modo, estar disposto a sofrer com o outro é parte necessária de nossas responsabilidades morais.

Em todo o caso, esse “verniz” de moralidade católica faz mesmo da Terra Média um mundo católico ou apenas um mundo “moralista”? Essa pergunta exige um exame mais atento.

Alguns “acidentes” católicos

Tolkien repudiava qualquer tentativa de encontrar símbolos cristãos em suas obras justamente por detestar “alegorias em todas as suas formas”. De fato, não foram poucas as vezes que ele repreendeu Lewis por tentar vestir Cristo com as peles do leão Aslam, em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. Para Tolkien, buscar esse tipo de paralelismos não seria mais do que perder de vista a finalidade da Terra Média, criada para ser um mundo real, e não uma colcha de retalhos históricos e religiosos.

Não obstante, Tolkien não tinha dificuldades em reconhecer que a sua sensibilidade católica inspirou, ao menos inconscientemente, muitos dos personagens e objetos do seu mundo imaginário. Numa carta de 1952 endereçada a Robert Murray (amigo da família e neto do fundador do Oxford English Dictionary), Tolkien confessa abertamente que a figura da Virgem Maria estava na base de toda a sua “pequena percepção da beleza, tanto em grandeza como em simplicidade”. Não é de espantar, escreve ele, que o caráter de Galadriel — uma elfa de radiante beleza, de virtudes impecáveis e com poderes de cura — seja como um eco do caráter de nossa Mãe Santíssima.

Tolkien tampouco podia negar a presença da Sagrada Eucaristia em O Senhor dos Anéis sob a imagem do pão de viagem (lembas), que os hobbits receberam dos elfos como suprimento em sua jornada. Os lembas fortalecem a vontade dos hobbits e lhes proporcionam a força física necessária para atravessar as terras escuras e áridas que os separam da Montanha da Perdição. De acordo com o ensinamento da Igreja, embora a Eucaristia preserve as aparências de pão e de vinho, os nossos sentidos entram em contato com um mistério muito mais profundo: na Eucaristia estão presentes o Corpo e o Sangue de Cristo.

Do mesmo modo, em O Senhor dos Anéis a Virgem Maria e a Eucaristia estão figurados nos distintos e misteriosos elementos que compõem a Terra Média. A melhor maneira de entendê-lo é encarar esses exemplos de simbolismo católico como “acidentes” literários. Não levá-los em conta, de fato, diminuiria o valor da história; eles fazem parte do esforço de Tolkien por dar corpo e integridade ao seu próprio mundo, tornando-o verdadeiro para todas as épocas e lugares.

Na qualidade de autor, Tolkien acreditava que as suas histórias realizavam, de modo limitado e literário, o que fazem os sacerdotes no momento da consagração: elas são um ponto de encontro com Cristo e uma recapitulação da história toda da criação e da redenção através de elementos comuns do mundo — neste caso, a Terra Média —, atravessado de cima a baixo pela Verdade das verdades.

Uma árvore celeste

Mas talvez nenhum outro trabalho ilumine mais as intenções artísticas de Tolkien do que sua pequena e pouco conhecida história Folha, por Niggle. Trata-se de seu trabalho mais autobiográfico, no qual temos como uma porta de entrada para a sua alma.

Folha, por Niggle.

Niggle é um homem de meia-idade que, nas horas vagas, decidiu pintar uma árvore. O que começa com o desenho de uma pequenina folha cresce e dá origem a uma árvore inteira, e depois a uma enorme paisagem de fundo. Niggle, porém, tem medo de não conseguir terminar a pintura antes de partir numa longa viagem de trem da qual ele não voltará mais. Nesse ínterim, numerosas distrações e obrigações — famílias, amigos, vizinhos etc. — lhe deixam muito pouco tempo para pintar.

É claro que, ao fim e ao cabo, Niggle acaba partindo sem ter dado a última pincelada. Antes de o trem chegar ao destino, Niggle precisa parar, bem no meio do caminho, em uma estação purgativa de trabalhos “forçados”, e ele não pode continuar a jornada até que as “Duas Vozes” julguem toda a sua vida. No fim, Niggle tem a permissão de seguir em frente, não, como ele esperava, por ter pintado uma bela árvore, mas por ter-se dedicado ao mais chato de seus vizinhos, Parish (que muitos identificam com C. S. Lewis).

O trem de Niggle chega finalmente a uma terra encantada, em cujo centro está plantada uma árvore — a mesma árvore que ele começara a pintar em seu ateliê. Mas tanto a árvore quanto a paisagem em volta estão incompletas, e Niggle tem ali a oportunidade de concluir o quadro. Terminado este, Niggle pode, enfim, sair e explorar a terra que ele mesmo criou.

Nessa história está plasmado um dos mais importantes ensinamentos da fé católica: ser misericordioso com os outros é algo tão necessário em nossa vocação quanto a ocupação profissional com que buscamos servir a Deus. Tolkien, no entanto, também nos está contando aqui algo muito importante sobre as suas — e as nossas — aspirações celestiais: nossa vocação é parte essencial de nossa identidade. É por meio dela que continuaremos a servir e adorar a Deus por toda a eternidade.

Todos os leitores católicos de O Senhor dos Anéis compartilham um mesmo desejo celeste: todos esperamos viajar um dia, assim como Tolkien, pelos reinos de Gondor e Rohan até chegar ao Condado. Ali encontraremos Tolkien metido no chão, em seu buraco de hobbit; enquanto não chegarmos, ele estará muito atarefado. Sentaremos com ele à mesa, tomaremos um bom chá ou fumaremos um bom cachimbo, enquanto ouvimos as histórias da Terra Média que ele nunca teve tempo de contar nesta vida.

Recomendações

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