É um costume cristão universal chegar à Páscoa gradualmente, primeiro numa pré-Quaresma, seguida de uma Quaresma própria, e depois com a Semana Santa, dentro da qual o Tríduo Pascal forma uma seção à parte.

A Quarta-feira de Cinzas marca o início da Quaresma.

Tradicionalmente, no período de nove semanas que vai da Septuagésima à Páscoa, o rito romano possui uma série de transições sutis que lhe é única, ainda que em alguns aspectos ele tenha sido imitado por outros ritos ocidentais [i]. A Quarta-feira de Cinzas é uma invenção romana, instituída um pouco mais tarde que a Quaresma; o Ofício Divino deste dia, junto com o dos três dias “depois das Cinzas”, é diferente dos textos próprios da Quaresma. O Tempo da Paixão também é um desenvolvimento exclusivamente romano, com costumes rituais como o velamento das imagens, e variantes textuais como a omissão da doxologia da Missa, que não faz parte das quatro primeiras semanas da Quaresma [ii]. Mais notável ainda é o caráter particular do Tríduo, durante o qual o Ofício e a Missa são bastante desnudados, antes que todas as coisas tenham seu esplendor restaurado na Páscoa.

Na reforma pós-conciliar, esta série de transições foi amplamente removida, e os elementos que acentuavam as diferenças entre elas tornaram-se opcionais. A Septuagésima foi suprimida, enquanto os dias “depois das Cinzas” e o Tempo da Paixão foram em grande parte assimilados ao restante da Quaresma. Algumas das características mais tradicionais desses períodos, como a omissão completa da doxologia [i.e., do “Glória ao Pai”] durante o Tríduo, também foram suprimidas. Entre as características que se tornaram opcionais, podemos notar o velamento de imagens e esculturas (que felizmente está voltando com força) e o uso dos hinos do Tempo da Paixão nesta que é agora a 5.ª semana da Quaresma.

Ao mesmo tempo, no entanto, uma série de transições bem parecidas com o que era tradicionalmente observado antes da Páscoa foram instituídas para as semanas que antecedem o Natal.

Esta série recém-criada começa com a festa de Cristo Rei, transferida de seu lugar original no domingo antes de Todos os Santos (Cabeça mística antes do Corpo místico) para o último domingo do ano litúrgico. Não é segredo para ninguém que seus textos foram reformulados para remover quase todas as referências ao propósito com o qual o Papa Pio XI criou a festa em 1925, ou seja, reafirmar e celebrar a doutrina do reinado social de Cristo. Como muitas coisas católicas, também esta se tornou repentina e misteriosamente fora de moda nos anos inebriantes que se seguiram ao mais recente concílio ecumênico da Igreja.

“Deus Onipotente”: detalhe do Retábulo de Gante, de Jan van Eyck.

A nova versão da festa enfatiza o reino escatológico de Cristo no fim do mundo. A Coleta, por exemplo, foi alterada e retiraram-se as seguintes palavras em itálico. “Senhor onipotente, que vos dignastes constituir todas as coisas na pessoa do vosso amado Filho, Rei do universo, conceda-nos, por vossa misericórdia, que as nações divididas pela ferida do pecado, se agreguem sob o seu império santíssimo”. No novo Missal se lê o seguinte: “Deus eterno e todo-poderoso que dispusestes restaurar todas as coisas no vosso amado Filho, Rei do universo, fazei que todas as criaturas, libertas da escravidão e servindo à vossa majestade, vos glorifiquem eternamente”.

No rito romano tradicional, a Coleta do último domingo do ano forma com o Advento um trait d’union. Como quatro das Coletas do Advento (as do 1.º, 2.º e 3.º domingos, mais a Sexta das Têmporas), ela começa com a palavra Excita, “Despertai”. Ao contrário das do Advento, no entanto, ela é dirigida a Deus Pai. “Excitai, Senhor, a vontade dos vossos fiéis, para que, procurando com maior fervor o fruto das boas obras, alcancem maiores remédios da vossa misericórdia” [iii]. O novo rito retém essa Coleta sem alterações para os dias de semana seguintes à festa de Cristo Rei. (Tradicionalmente, a maior parte das Coletas do Advento, e só deste tempo litúrgico, dirige-se a Deus Filho, para simbolizar como o mundo ansiava por sua vinda; aqui, o novo rito obscureceu a transição mudando as orações para que se dirigissem ao Pai.)

Nos mesmos dias de semana na Liturgia das Horas, o Dies Iræ é apresentado como um hino, dividido em três partes para Ofício das Leituras, Laudes e Vésperas. Em seu livro Te decet laus [iv], o beneditino Dom Anselmo Lentini, chefe da comissão que revisou os hinos do Ofício, não esconde seu desacordo quanto à remoção da sequência da Missa de Requiem, descrevendo-a como algo que os fiéis conheciam muito bem e cantavam com entusiasmo [v]. Sua comissão decidiu dar um lugar ao texto no Ofício, para que ele não se perdesse por completo da liturgia, já que os revisores da Missa tinham decidido que a morte deveria ser tratada, a partir de então, como uma coisa mais animada. Ainda que seu uso seja opcional, sua presença na teoria continua o novo tema escatológico de Cristo Rei ao longo do resto da semana.

Esse tema é enfatizado mais ainda pela escolha das leituras da Missa para o mesmo período. No ano ímpar, elas são tiradas do Livro de Daniel, culminando com sua visão do “Ancião de muitos dias” e de uma luta entre os reinos do mundo, representados por animais selvagens (Dn 7). No ano par, as leituras do Apocalipse (devidamente censuradas para evitar algumas ideias ou imagens potencialmente desagradáveis) começam na 33.ª semana e continuam depois de Cristo Rei. Na sexta-feira da última semana, a visão de “um grande trono branco e aquele que estava sentado nele”, com “o céu e a terra” fugindo “da sua presença” (Ap 20, 11), forma um paralelo inteligente com a leitura da sexta-feira do ano ímpar.

As leituras do Evangelho da semana, que são as mesmas em ambos os anos, concluem a lectio continua (“leitura contínua”) de São Lucas com o capítulo 21 (exceto seus dois últimos versículos): a oferta da viúva (vv. 1-4); a predição de Nosso Senhor quanto à destruição de Jerusalém e do Templo (vv. 5-24); e os sinais de sua vinda no fim do mundo (vv. 25-36). As duas últimas seções são o paralelo de Lucas com o Evangelho tradicional do último domingo do ano (Mt 24, 15-35) e o Evangelho tradicional do 1.º Domingo do Advento (Lc 21, 25-33), mantido parcialmente no Ano C [vi].

Representação de Apocalipse 4 na Catedral de la Purísima Concepción, em Tepic, no México.

Tendo criado então um tempo preparatório especial exatamente antes do Advento, análogo à Septuagésima, o novo rito também intensifica uma distinção tradicional dentro do Advento entre sua primeira e segunda partes, análoga à distinção entre a Quaresma e o Tempo da Paixão. Tradicionalmente, essa distinção era marcada pelo canto das Antífonas do Ó nas Vésperas, e das antífonas especiais que as acompanham nas Laudes e nas horas menores. No novo rito, essas características do Ofício para os últimos dias do Advento foram todas mantidas, na medida do possível, dentro de sua nova estrutura. Além disso, hinos especiais jamais usados previamente no Breviário Romano foram acrescentados a esse período, assim como o Tempo da Paixão se distingue da Quaresma muito particularmente por seus hinos.

Os Evangelhos do tempo são tradicionalmente divididos em dois grupos, um antes e outro depois das Têmporas. Os três primeiros vão lá atrás, desde o fim do mundo (1.º Domingo, Lc 21, 25), passando por São João Batista na prisão (2.º Domingo, Mt 11, 2-10) até o início de seu ministério (3.º Domingo, Jo 1, 19-28). Com o Evangelho da Anunciação na Quarta-feira de Têmporas, e o da Visitação na Sexta de Têmporas, a Igreja começa de novo a olhar adiante, para a manifestação da Encarnação de Cristo no dia de Natal.

A Anunciação por Leonardo da Vinci.

O novo Lecionário da Missa expande bem consideravelmente o corpus de leituras, e ainda que os dias de Têmporas tenham sido removidos, a distinção entre as duas partes do Advento permanece. Até 16 de dezembro, os Evangelhos dominicais se ligam aos temas tradicionais, centrados no fim do mundo e em São João Batista (embora mude a ordem em que eles são apresentados), e os Evangelhos feriais se concentram em milagres e sermões. Deve-se dizer que, em conjunto, os textos passam a impressão de que a comissão teve dificuldades em encontrar passagens que se adequassem ao tempo litúrgico [vii].

Quando chega o dia 17 de dezembro, no entanto, o tema muda para os eventos que antecedem o nascimento de Cristo, nos primeiros capítulos de Mateus e Lucas. Do primeiro se leem a genealogia de Cristo e a aparição do anjo a São José (vv. 1-17; 18-24); e do segundo, a aparição do anjo a Zacarias e a concepção de João Batista (vv. 5-25), a Anunciação (vv. 26-38), a Visitação (vv. 39-45), o Magnificat (vv. 46-56), o nascimento de João Batista (vv. 57-66) e o Benedictus (vv. 67-79). Três desses Evangelhos são lidos no 4.º Domingo do Advento, que sempre cai entre 17 e 24 de dezembro (no Ano A, Mt 1, 18-24; no Ano B, a Anunciação; no Ano C, a Visitação).

Temos, portanto, no ciclo de Natal do rito pós-conciliar: o paralelo com a Septuagésima na festa redesenhada de Cristo Rei e nos dias seguintes a ela; o paralelo com a Quaresma na primeira parte do Advento; e o paralelo com o Tempo da Paixão na segunda parte do Advento.

Notas

  1. O Tempo da Septuagésima, que existiu até a reforma litúrgica pós-conciliar, é o que explica o nome do famoso Sermão da Sexagésima, do Pe. António Vieira (que tantos aprendemos na escola). Além dos dois, há também o Domingo da Quinquagésima. Os nomes, relativos a 70, 60 e 50 dias, têm como referência a Páscoa, marcando mais ou menos essa distância da principal festa dos cristãos. Esses domingos, imediatamente anteriores ao tempo da “Quadragésima” (ou seja, da Quaresma propriamente dita), funcionavam na liturgia antiga como uma espécie de “pré-Quaresma”, avisando os fiéis da proximidade desse tempo penitencial. (N.T.)
  2. O Tempo da Paixão é uma outra aproximação gradual da Páscoa que infelizmente se perdeu. Mas a força do costume é tão forte que ainda hoje as pessoas chamam a semana anterior à Semana Santa (hoje, 5.ª semana da Quaresma) de “Semana das Dores”, em uma clara referência à unidade das duas semanas que precedem a Páscoa. (N.T.)
  3. Na tradução litúrgica oficial, a oração Coleta da 34.ª semana do Tempo Comum reza assim: “Levantai, ó Deus, o ânimo dos vossos filhos e filhas, para que, aproveitando melhor as vossas graças, obtenham de vossa paternal bondade mais poderosos auxílios”. (N.T.)
  4. Numa pesquisa rápida na internet, encontramos do beneditino Dom Anselmo Lentini a obra Te Decet Hymnus: L’Innario della “Liturgia Horarum” [“Te Decet Hymnus: o Hinário da Liturgia das Horas”] — ao invés de Te Decet Laus. De todo modo, o livro encontra-se esgotado. (N.T.)
  5. Assim como as festas de Páscoa, Pentecostes e Corpus Christi, a Missa de Requiem, pelos fiéis defuntos, também tinha uma sequência própria: o hino Dies Iræ. (N.T.)
  6. Nunca é demais lembrar: no rito antigo, todos os domingos do ano tinham sempre as mesmas leituras. Não havia o ciclo de três anos do Lecionário atual. (N.T.)
  7. O trabalho da comissão foi difícil porque, no rito romano tradicional, o único tempo do ano litúrgico com textos litúrgicos próprios para todos os dias era a Quaresma. Ou seja, eles praticamente tiveram de confeccionar todo o Tempo do Advento ex nihilo. (N.T.)

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