As reações à nossa matéria sobre o padre que ofereceu o próprio câncer em expiação pelos pecados de pedofilia na Igreja foram bem interessantes, para dizer o mínimo. Da parte dos católicos, naturalmente, a notícia serviu para confirmar a doutrina da Igreja acerca do sofrimento redentor de Cristo, ao qual podemos nos unir os batizados com nossos próprios sofrimentos. Entre o público geral (aqui incluindo católicos mal catequizados), todavia, o gesto corajoso do padre John Hollowell foi visto com desconfiança e repulsa.

Entre os que não leram o texto (e ainda assim se sentiram no direito de julgar o padre, como se ele tivesse cometido algum crime) e os que o leram (mas não entenderam nada), houve, por exemplo, quem se perguntasse sobre a necessidade de toda aquela exposição. “Ele não poderia sofrer em silêncio?”, perguntou um leitor. Outros, mais incrédulos, questionaram como tal oferta serviria para apagar as cicatrizes de quem viveu o crime de pedofilia. “Isso é uma bobeira e um voto de tolo”, afirmou outro comentarista, dizendo que Deus “não recebe esse tipo de oração”.

O pe. John Hollowell, da diocese de Indianápolis (EUA).

Ao fim e ao cabo, a maior parte dos que se escandalizaram parecia ter a opinião comum (e protestante) de que ninguém precisa oferecer sacrifícios pelos outros porque, de fato, Jesus já ofereceu um sacrifício definitivo por nós na Cruz. No texto anterior, chegamos a comentar, ainda que brevemente, como essa visão unilateral sobre a Paixão de Cristo levou a uma revolução teológica que culminou na própria negação da necessidade da Cruz. Se tivessem se dado ao trabalho de ler o artigo com atenção, talvez esses leitores não nos teriam brindado com tantos comentários estabanados e grosseiros. 

Seja como for, o imbróglio nos dá a chance de voltarmos ao assunto com mais rigor e profundidade. O tema é de suma importância, sobretudo agora nos tempos de coronavírus, quando necessitamos de tantas almas dispostas ao sacrifício heroico pela salvação dos irmãos.

O caráter definitivo do sacrifício de Jesus

De que o sacrifício de Jesus na Cruz foi definitivo e suficiente para a salvação do gênero humano não há dúvida alguma. Apenas Nosso Senhor poderia expiar os pecados da humanidade, porque, pela união hipostática, somente Ele é o pontífice que une o céu e a terra, a natureza humana e a divina. “De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16), afirma São João em seu Evangelho. Por isso, toda a vida de Jesus, mas especialmente a sua crucificação, serviram para redimir e dar um novo significado aos sofrimentos dos homens. Com a Cruz, explica São João Paulo II na carta apostólica Salvifici Doloris, “Cristo aproximou-se do mundo do sofrimento humano, sobretudo pelo fato de ter ele próprio assumido sobre si este sofrimento” (n. 16).

Acontece, porém, que o sofrimento não foi erradicado do mundo após a crucificação de Jesus. Ele permanece aqui, no meio de nós, e afeta crentes e não crentes, homens e mulheres, adultos e crianças, como se fosse uma condição da natureza. Aquela “vida nova” que Jesus nos deu com a sua Paixão, diz o Catecismo da Igreja Católica, nós a trazemos “em vasos de barro”, porque “vivemos ainda na ‘nossa morada terrena’, sujeita ao sofrimento à doença e à morte” (n. 1420). Sim, continuamos a sofrer na nossa carne. Jesus morreu e, aparentemente, permanecemos na mesma: ainda há homicídios, guerras, doenças, depressão, histeria e outros tipos de dores, sejam físicas ou morais. Jesus ressuscitou, mas seguimos enterrando nossos familiares e amigos. Ele venceu o pecado, mas ainda existem Judas no meio do clero.

Notem que as mesmíssimas questões levantadas contra o padre John Hollowell podem também ser feitas a Jesus. Aliás, elas já são feitas por muitas pessoas que relativizam a atividade espiritual da Igreja, julgando-a uma alienação incapaz de erradicar a dor dos pobres, dos doentes e dos famintos. Com isso, nega-se o valor da oração e dos sacramentos. O certo, para esses senhores, seria a luta pela igualdade absoluta, de modo que todos os homens pudessem desfrutar dos bens materiais em idênticas condições. Infelizmente, esse pensamento ideológico e mentiroso também contaminou muitos dentro da Igreja, como foi o caso dos padres operários e teólogos da libertação.

Mas em que consistiu, então, a Paixão de Cristo?

É preciso entender, em primeiro lugar, que a Encarnação de Cristo e a sua Paixão não tinham o objetivo de inaugurar um “mundo melhor”, entendido como um paraíso utópico aqui na terra, onde todas as dores e contrariedades seriam sanadas. Nunca é o bastante lembrar destas palavras do Senhor: “Pobres sempre tereis entre vós” (Jo 12, 8). Antes de tudo, Jesus veio para nos revelar a face amorosa de Deus, e apenas um coração muito duro, adverte o Papa Bento XVI, pode achar isso pouco [1].

“Ele nos trouxe Deus: agora conhecemos o seu rosto, agora podemos chamar por Ele. Agora conhecemos o caminho que como homens devemos percorrer neste mundo”, insiste o Papa [2]. E é a partir dessa boa nova de Jesus que o sofrimento humano tem outra conotação. O nosso fardo se converte no fardo de Cristo: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11, 29-30).

Os sofrimentos do Corpo místico de Cristo

A pergunta que geralmente nos fazemos quando experimentamos alguma provação mais ou menos pesada, quando as coisas saem fora dos trilhos e não correspondem ao planejado, é: por quê? Por meio da Revelação, sabemos que a raiz do mal no mundo se deve ao pecado original. Por outro lado, a história de Jó mostrou também que o sofrimento não é simplesmente um castigo, mas uma situação da qual nem sequer os justos podem se furtar. E o profeta Isaías expôs o mesmo drama com toda clareza nos versos sobre o Servo sofredor, que “tomou sobre si nossas enfermidades” e “carregou-se com as nossas dores” (42, 2-6). Tratava-se de um homem inocente a quem, no entanto, não era estranho o sofrimento. Em razão disso, a Igreja jamais pretendeu dar uma resposta, em sentido estrito, à questão do sofrimento, que é um mistério dos desígnios de Deus para cada ser humano.

A Paixão de Jesus, consequentemente, não significou tanto uma resposta ao porquê do sofrimento quanto um para quê. O Filho do Homem veio para servir e fazer a vontade do Pai; Ele veio para assumir a natureza humana e torná-la participante da vida divina. Com isso, explica São João Paulo II, Jesus “não só realizou a Redenção através do sofrimento, mas também o próprio sofrimento humano foi redimido” (Salvifici Doloris, n. 19). A partir daí, todo membro do Corpo místico de Cristo pode, por meio da graça batismal, participar da obra da Redenção, oferecendo suas próprias dores para a salvação do gênero humano. Tal atitude não implica uma negação do sacrifício definitivo de Jesus, mas a aplicação desse mesmo sacrifício ao longo da história, em virtude da união mística de todo batizado à cabeça da Igreja, que é Jesus.

Assim se entende por que Nosso Senhor fez esta exigência a nós: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16, 24). Ele não aboliu a cruz dos outros com a própria crucificação, mas permitiu que sofrêssemos ao seu lado pela redenção de todos os homens. O sofrimento pessoal, que antes era causa de angústia, tornou-se, com a Paixão de Jesus, causa meritória: podemos merecer a salvação de nossos irmãos, reparando seus pecados com a nossa oferta de amor. Por isso São Paulo exortava os cidadãos de Roma a oferecerem seus corpos “como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. “É este o culto espiritual que lhe deveis prestar” (Rm 12, 1), insistia São Paulo; uma crença abstrata não é o bastante.

“A ajuda do padre” (Venezuela, 1962), fotografia de Hector Rondón Lovera.

Os textos do Novo Testamento estão repletos de versículos sobre a expiação vicária que os cristãos devem fazer como membros do Corpo místico de Cristo. Na Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios, lemos que “por toda a parte levamos sempre no corpo os sofrimentos de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo” (4, 8-11.14). Em outra passagem, o mesmo Apóstolo escreve acerca do conhecimento de Cristo: “Poderei conhecê-lo, a ele e à força da sua Ressurreição, e ser integrado na participação dos seus sofrimentos, transformado numa imagem da sua morte, com a esperança de chegar à ressurreição dos mortos” (Fl 3, 10-11). E o mesmo ensina São Pedro aos seus fiéis: “Alegrai-vos, antes, na medida em que participais nos sofrimentos de Cristo, para que também vos alegreis e rejubileis na sua gloriosa aparição” (1Pe 4, 13).

Alguém poderia afirmar, porém, que essa participação na Cruz de Cristo nada tem a ver com oferecimento de sacrifícios uns pelos outros. Mas as palavras de São Paulo, mais uma vez, não deixam dúvida: “Carregai os fardos uns dos outros; assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6, 2). O Apóstolo chega a ser ainda mais ousado, afirmando que completa na própria carne “o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24). Ele, obviamente, não nega a completude da Redenção, mas sabe que ela não se encerra com o evento histórico do Gólgota, mas deve se perpetuar misticamente em cada membro do Corpo místico. É o que diz São João Paulo II:

Isto significa apenas que a Redenção, operada por virtude do amor satisfatório, permanece constantemente aberta a todo o amor que se exprime no sofrimento humano. Nesta dimensão — na dimensão do amor — a Redenção, já realizada totalmente, realiza-se em certo sentido constantemente. Cristo operou a Redenção completa e cabalmente; ao mesmo tempo, porém, não a fechou: no sofrimento redentor, mediante o qual se operou a Redenção do mundo, Cristo abriu-se desde o princípio, e continua a abrir-se constantemente, a todo o sofrimento humano. Sim, é algo que parece fazer parte da própria essência do sofrimento redentor de Cristo: o fato de ele solicitar a ser incessantemente completado (grifos nossos) (Id., n. 24).

Os efeitos da expiação vicária

No horizonte da Redenção está a transformação do gênero humano pelo amor. Jesus veio para cumprir a profecia do profeta Ezequiel: “Tirarei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei em vós o meu espírito e farei com que andeis segundo minhas leis e cuideis de observar os meus preceitos” (36, 26). Os preceitos divinos se resumem a dois: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E é apenas pela graça batismal que o homem pode receber esse novo coração e mergulhar na Paixão redentora de Jesus para andar na sua lei e observar os seus preceitos.

A graça que recebemos no Batismo deve crescer conforme a nossa generosidade, dispondo-nos a amar Jesus no serviço aos nossos irmãos. Isso precisa gerar em nós a virtude da caridade, sem a qual é impossível agradar a Deus. Porque “se eu gastasse todos os meus bens no sustento dos pobres”, explica São Paulo, “e até entregasse meu corpo para me gloriar, mas não tivesse amor, de nada me aproveitaria” (1Cor 13, 3). O que importa na dinâmica do sofrimento, portanto, é a configuração a Cristo, que acontece por meio da aceitação de nossas dores pela salvação dos irmãos. Afinal de contas, “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13).

Diante das dificuldades e injustiças que sofremos, nosso coração é frequentemente tentado a vacilar, escolhendo como resposta ora a vingança, ora a trapaça. Queremos ordenar as coisas à nossa medida, a partir de nossas ideias e paixões. Jesus, entretanto, mostrou-nos outro caminho e nos associou à sua Paixão para que pudéssemos dar testemunho da sua Cruz, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1, 23). Ele nos fez entender que, diante de uma cruz inevitável, devemos abraçá-la amorosamente até o dia final, quando teremos nossa ressurreição.

O testemunho da cruz é sempre um remédio para os males do mundo e um conforto aos corações despedaçados. Por isso, toda pessoa que padece pode sentir-se amada novamente quando encontra alguém disposto a experimentar um pouco da dor alheia. É assim com doentes em fase terminal, é assim com pessoas depressivas, é assim com vítimas de alguma violência. Por mais que nossas mortificações não apaguem de fato a experiência dolorosa dos nossos irmãos, elas ao menos servem para nos conectar a eles, proporcionando-lhes alegria, amizade, compaixão e cuidado. Não se trata de julgar nossa dor como igual, maior ou menor que a deles, até porque não é uma competição. Trata-se de amar o outro e colocar-se em seu lugar como um amigo. Hoje chamam isso de empatia. Mas os católicos sempre o viveram como a Paixão de Cristo.

O oferecimento do padre John Hollowell é, portanto, a verdadeira oração que Deus recebe, o testemunho público do amor de Jesus e um gesto concreto de solidariedade por quem sofre. Certamente ele não substitui as medidas judiciais e assistenciais que devem ser tomadas contra os crimes que ocorreram. Mas, como outro Simão Cirineu, esse sacerdote se aproxima do Coração do próprio Cristo crucificado, que se ofereceu como vítima inocente pelos pecados de todos os homens.

É próprio da fé católica, especialmente entre os sacerdotes, a disposição a assumir uma cruz em benefício dos outros, como fizeram tantos padres e religiosos durante a peste negra; como fez São Maximiliano Kolbe, que se ofereceu aos nazistas no lugar de um judeu; como fez o padre Armindo Maria de Oliveira, que durante o surto de gripe espanhola em Cuiabá (MT) ofereceu-se a Deus como vítima para que nenhum de seus fiéis morresse pela enfermidade etc. Ao fazerem isso, esses homens não negaram o único sacrifício de Cristo, mas se uniram a ele pelo bem dos filhos de Deus.

E nada disso, nenhum desses exemplos é tolice. Isso se chama amor.

Referências

  1. Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta, 2007, p. 54.
  2. Id., ibid.

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