E se nesta Quaresma você resolvesse oferecer a Deus uma mortificação pelas vítimas de abuso sexual na Igreja? A ideia parece ousada, mas foi exatamente o que fez o padre John Hollowell, da diocese de Indianápolis, nos Estados Unidos.

Os escândalos de pedofilia, que causaram tanto sofrimento dentro e fora da Igreja nos últimos anos, também perturbaram a alma sacerdotal do padre Hollowell. Em 2001, quando ele ingressou no seminário, faltava pouco tempo para a primeira bomba estourar. Depois de a reportagem de The Boston Globe sobre a rede de abusos sexuais praticados por padres católicos vir a público, outros casos semelhantes apareceram em todo o mundo, como uma epidemia. E o jovem seminarista Hollowell assistiu àquilo tudo atônito, como se estivesse dentro de um prédio em chamas prestes a ruir.

O pe. John Hollowell, da diocese de Indianápolis (EUA).

Ainda assim, ele decidiu seguir em frente com a sua vocação. Em 2005, quando se encontrava em Roma para completar os estudos teológicos, Hollowell teve a chance de ouvir umas palavras de um sacerdote mais velho que residia no mesmo seminário, durante um “ano sabático”. Esse sacerdote lhe disse: “Quando entrei no seminário, eu era respeitado por minha família e todos estavam felizes por minha decisão. A Igreja dos Estados Unidos vivia a sua melhor época. Mas agora ela está na sua pior crise, e mesmo assim você escolheu ser padre. Obrigado”.

Hollowell foi então ordenado sacerdote com a convicção de que entraria num campo de batalha, onde a Igreja já não desfrutava do mesmo prestígio de antes. Em 2018, o escândalo de pedofilia envolvendo o ex-cardeal Theodore McCarrick voltou a assombrá-lo. Hollowell pôde testemunhar a dor de algumas vítimas de abuso, que lhe diziam: “Quando você for rezar por mim, por favor, reze também pelo padre que abusou de mim. Ele precisa de orações mais do que eu”. Cada história afetou-o profundamente, de modo que Hollowell decidiu pedir a Deus uma forma de expiar todo aquele sofrimento. Ele queria assumir uma parte da cruz pelas vítimas dos abusos sexuais praticados por sacerdotes.

E então veio a notícia: “Amigos, fui diagnosticado com um tumor cerebral. O prognóstico é muito bom”, comunicou recentemente o sacerdote em sua rede social, pegando todos de surpresa. Para padre Hollowell, a doença seria a oportunidade que havia pedido a Deus de sofrer pelas vítimas de pedofilia na Igreja. Em entrevista ao dr. Taylor Marshall, ele afirmou que viveria cada parte do tratamento (cirurgia, rádio e quimioterapia) como um ato de expiação pelos pecados dos padres contra tantos inocentes. “Eu adoraria ter uma lista de vítimas de abuso por padres para que pudesse rezar todo dia. E gostaria, se possível, de escrever-lhes uma nota para que saibam que estou rezando por eles”, acrescentou.

A “expiação vicária” de Cristo

A atitude heroica do padre John Hollowell recorda uma prática muito presente na história da Igreja, mas que acabou esquecida nas décadas mais recentes, por influência de uma teologia mais liberal. Trata-se da expiação vicária, pela qual Nosso Senhor assumiu nossos pecados e pagou o preço de seu sangue (cf. 1Pd 1, 18) pela libertação da humanidade. Do mesmo modo, os membros da Igreja, Corpo Místico de Cristo, são convidados a repetir esse gesto, oferecendo-se como sacrifício pela salvação dos pecadores. Foi o que fizeram grandes santos como Teresinha do Menino Jesus, Bernadette Soubirous, Pio de Pietrelcina, Verônica Giuliani, os pastorinhos Francisco e Jacinta Marto e, mais recentemente, o jovem Carlo Acutis. Todos completaram na própria carne, como diz São Paulo, o que faltava “aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24).

Os teólogos da Igreja procuraram desenvolver esse tema de vários modos, mas sempre preservando a realidade da cruz e do sofrimento assumido por Cristo como uma oferta de amor pela redenção dos homens, os quais deveriam seguir o mesmo caminho para a própria santificação. A partir da Reforma Protestante, todavia, a interpretação que Lutero deu à justificação cristã aboliu toda possibilidade de os fiéis participarem ativamente no mistério da Redenção. A eles estaria reservado apenas o acolhimento do sacrifício pela fé, sem a necessidade de qualquer esforço ou penitência pela santificação e salvação das almas. Em outras palavras, o homem poderia pecar tanto quanto quisesse, desde que tivesse uma fé ainda mais intensa em Cristo.

Um estudo da Comissão Teológica Internacional apresenta um resumo bem elaborado das consequências da teologia de Lutero para a doutrina da Redenção. O documento mostra que, para Lutero, a Encarnação seria como uma assimilação do pecado em si mesmo, pelo que Jesus se tornou o pior de todos os adúlteros, ladrões, blasfemadores e assassinos. Nesse sentido, a crucificação nada mais foi que um castigo divino. Os reformadores protestantes seguiram com a mesma ideia, embora com perspectivas diferentes. Em todo caso, esse tipo de teologia acabou apresentando uma face de Deus bem pouco misericordiosa e atraente. Afinal de contas, que tipo de pai derramaria uma ira tão violenta sobre o próprio filho?

Para desfazer essa imagem cruel de Deus Pai, os teólogos modernos desviaram o olhar da cruz para a ressurreição. Tal virada teológica pode ser observada, hoje, nas arquiteturas das igrejas pós-conciliares, que retiraram os crucifixos e, no lugar, puseram imagens do Cristo Ressuscitado ou do Bom Pastor. A reforma litúrgica também foi influenciada por esse movimento, na medida em que já não exige o crucifixo no centro do altar. Entre os teólogos que contribuíram para essa mudança de perspectiva está Karl Rahner, que em seu Curso Fundamental da Fé considera o “sacrifício expiatório” de Cristo como uma ideia válida para a Igreja primitiva, mas que “não oferece muita ajuda hoje para a compreensão daquilo que estamos procurando” [1].

Atualmente, chega-se ao ponto de negar a íntima relação entre a crucificação de Cristo e o sacrifício pascal. É o que advoga a teóloga Elizabeth Johnson, para quem a doutrina da satisfação seria apenas um exagero de Santo Anselmo, que teria interpretado a morte de Cristo a partir de seu contexto medieval. “Ninguém precisava morrer pelos nossos pecados”, afirma. Desse modo, ela faz sua própria contextualização do Evangelho, a fim de ampliar a redenção de Cristo para além do evento da cruz: trocando em miúdos, a cruz seria algo periférico, mera consequência de uma vida inteira que serviu para a redenção dos homens oprimidos e de toda a Criação. Com isso, Elizabeth Johnson põe abaixo a doutrina da satisfação e da expiação vicária.

Mas o resultado prático dessas teologias modernas, por mais bem intencionadas que sejam, é a covardia diante do sofrimento e a negação da gravidade do pecado. Porque se Deus não pode ser ofendido por nossas faltas, nem precisa de nossa reparação, então estão abertas as portas a todo tipo de malícias e blasfêmias. O aumento significativo dos ultrajes à religião, à imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo e à Virgem Maria não é algo fortuito. Trata-se de uma consequência lógica da forma como os próprios cristãos lidam com os princípios do depósito da fé. Se eles mesmos não se importam com a honra pública de Deus — porque, segundo dizem, “Deus não precisa de advogado” —, o que podemos esperar das almas incrédulas?

Por conta dessa teologia que nega a necessidade da cruz, a doutrina dos méritos e da satisfação, muitos católicos deixaram de crer no Purgatório, de oferecer Missas pelos fiéis defuntos e de reparar suas próprias ofensas contra Deus.

O que precisa ser reparado

É verdade que o homem não pode ferir essencialmente a glória divina. Todavia, o pecado ataca a glória exterior de Deus, a sua influência e reino sobre nós, como explica o padre Garrigou-Lagrange. Em outras palavras, a imagem e semelhança de Deus em nós é desfigurada e, por isso, precisa ser reconstituída a partir da graça. E uma vez que o homem não pode, por si mesmo, restituir a vida trinitária em sua alma, então ele precisa de um Redentor, alguém capaz de fazer a mediação entre o Céu e a terra, um vigário para lutar em seu lugar contra as consequências do pecado.

É nesta dinâmica que a cruz se torna fundamental. Ela não é necessária em termos absolutos (simpliciter), porque Deus tem poder para salvar o homem com o estalar dos dedos. Mas diante da condição pós-lapsária da humanidade, que foi tomada pelo vírus do ódio a Deus, a cruz é necessária para revelar o supremo amor do Pai pelos seus filhos. A Paixão de Cristo é o supremo gesto de empatia, de solidariedade por aqueles que sofrem. Por isso, Jesus sempre deixou claro “que precisava ir a Jerusalém, sofrer muito da parte dos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, e ser morto; e, ao terceiro dia, ressuscitar” (Mt 16, 21). E quando Pedro quis repreendê-lo, Jesus respondeu-lhe com palavras duríssimas: “Vá para trás de mim, satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, pois não pensas de acordo com Deus, mas de acordo com os homens” (Mt 16, 23).

Essas mesmas palavras de Cristo bem se aplicariam a algumas teologias modernas que pensam mais de acordo com os homens do que com Deus. Elas simplesmente ignoraram o fato de que “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13). São João Paulo II explica magistralmente o significado da satisfação de Cristo por nós nesta passagem de uma de suas catequeses:

O sacrifício expiatório da Cruz faz-nos compreender a gravidade do pecado. Aos olhos de Deus o pecado não é nunca um fato sem importância. O Pai ama os homens e é profundamente ofendido pelas suas transgressões ou rebeliões. Embora estando disposto a perdoar, Ele, para o bem e a honra do homem mesmo, pede uma reparação. Mas é precisamente aqui que a generosidade divina se mostra do modo mais surpreendente. O Pai dá à humanidade o próprio Filho, para que ofereça esta reparação. Com isto mostra toda a gravidade abissal do pecado, pois requer a reparação mais alta possível, a que vem do seu próprio Filho. Ao mesmo tempo revela a grandeza infinita do seu amor, porque é o primeiro, com o dom do Filho, a trazer o peso da reparação.

Então Deus castiga o Filho inocente? Não há nisto manifesta violação da justiça? Procuremos compreender. É verdade que Cristo se substitui, de certo modo, à humanidade pecadora: Ele, de fato, toma sobre si as consequências do pecado, que são o sofrimento e a morte. Mas o que seria castigo, se este sofrimento e esta morte tivessem sido infligidos aos culpados, reveste um significado diverso quando são livremente assumidos pelo Filho de Deus: tornam-se oferta expiatória pelos pecados do mundo. Cristo assume, inocente, o lugar dos culpados. O olhar, que o Pai lhe dirige quando sofre na Cruz, não é um olhar colérico, nem de justiça punitiva; é um olhar de total complacência, que acolhe o seu sacrifício heroico (grifos nossos).

A redenção objetiva de Jesus precisa, por outro lado, ser acolhida pessoalmente, como livre disposição e oferta a Deus. Por isso, a Comissão Teológica Internacional explica que “o processo de redenção continua até o fim dos tempos, com novos indivíduos sendo, por assim dizer, ‘enxertados’ no Corpo de Cristo” (Algumas questões sobre a teologia da redenção, n. 40). Esses membros do Corpo de Cristo devem assumir a vida do Senhor, tornando-se vítimas de amor pela salvação da humanidade, ou seja, “os fiéis não devem fugir do sofrimento, mas encontrar nele um meio eficiente de união com a cruz de Cristo” (Id.). 

Para os sacerdotes, a identificação com o Cordeiro Imolado é um “imperativo categórico”. Eles, mais do que qualquer fiel, devem ser vítimas de amor. Até porque, como indica o padre Hollowell em sua entrevista ao dr. Taylor Marshall, foi justamente o afrouxamento na disciplina, a fuga das penitências e mortificações, por um medo freudiano de formar padres recalcados, que fez a Igreja mergulhar nos escândalos de pedofilia, com sacerdotes doentes de narcisismo, que se serviram da Ordem de Cristo para abusar de crianças. 

Em 1846, Nossa Senhora apareceu na cidade de La Salette, na França, para chorar sobre os crimes dos sacerdotes, pela falta de almas generosas que oferecessem um justo sacrifício pela eterna salvação das almas. Nas aparições seguintes, tanto em Lourdes como em Fátima, ela procurou por essas almas, pedindo aos pobres videntes — todos crianças — que oferecessem seus sacrifícios em reparação das ofensas contra o Coração de Jesus. Se, por um lado, essas aparições pertencem ao gênero das revelações privadas, elas têm, por outro, o imprimatur da Igreja, que as considera idôneas justamente por repetirem aquilo que é a mais tradicional expressão da fé católica. 

Aproveitemos, pois, o tempo oportuno da Quaresma para reparar tantas ofensas contra o Sagrado Coração de Jesus. A Igreja é um prédio em chamas, falava o padre John Hollowell numa homilia, e nós não podemos esperar que esse incêndio se apague sem a nossa ajuda. Todo membro do Corpo de Nosso Senhor pode contribuir para a restauração desse edifício se seguir o caminho de Jesus e acolher com amor a cruz de cada dia.

Referências

  1. Karl Rahner. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 1989, p. 334.

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