Se você tivesse de contar a história de Jesus hoje, como o faria?

Há dois mil anos, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo é narrada de diferentes maneiras: pela pregação, pela música, pela iconografia, pela liturgia e, de modo particular, pelos livros. São Lucas mesmo, em sua versão do Evangelho, diz que “muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós” (1, 1), embora apenas quatro sejam os Evangelhos canônicos. Os chamados apócrifos, por sua vez, apesar de não respeitarem a pregação apostólica, acrescentando relatos fictícios à vida de Cristo, não deixam de contar histórias que a Tradição da Igreja acolheu como verdadeiras (por exemplo, o nome dos pais de Nossa Senhora, a apresentação da Virgem no Templo etc.).

As primeiras redações sobre a vida de Nosso Senhor surgiram vários anos após a sua Ascensão aos céus. O Evangelho segundo São Mateus, considerado o mais antigo dos quatro, data dos anos 60–70. Antes disso, afirma Daniel-Rops, “é absolutamente certo que o ensinamento cristão mais antigo desprezava o texto escrito e era rigorosamente oral”. O historiador francês recorda que, naquela época, “os discípulos de um mestre escutavam-no e retinham ‘de cor’ as suas palavras, graças a um treinamento especial que era imposto às crianças desde os seus primeiros estudos” [i]. De fato, Jesus não deixou nenhum ensinamento por escrito. Os primeiros cristãos, conclui Daniel-Rops, apenas conservaram coletâneas de aforismos e sentenças da pregação de Jesus que, mais tarde, quando os discípulos quiseram contar a história do Senhor, serviram-lhes de base para os Evangelhos.

“Os quatro evangelistas”, por Peter Paul Rubens.

Os quatro Evangelhos, portanto, são os registros mais seguros para quem deseja conhecer os fatos cruciais da história de Nosso Senhor neste mundo. Por isso, o Concílio Vaticano II declarou que “o estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia” (Dei Verbum, 24). Inspirados pelo Espírito Santo, os evangelistas acharam conveniente, como diz São Lucas, contar de modo ordenado a vida de Jesus Cristo, “após acurada investigação de tudo desde o princípio” (1, 3). Nesse sentido, ignorar as Escrituras é ignorar o próprio Cristo, nas palavras de São Jerônimo [ii].

Por outro lado, os Evangelhos canônicos não são biografias em sentido científico. Não foram escritos para contar minuciosamente toda a história de Cristo. Em vez disso, os evangelistas pretendiam levar os leitores a crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, a fim de que, crendo, tivessem a vida em seu nome (cf. Jo 20, 31). Por isso mesmo, podem-se estranhar algumas passagens mais ou menos truncadas e informações discrepantes entre uma e outra versão do Evangelho. Afinal, se tudo o que fez Nosso Senhor fosse escrito, “o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam” (Jo 21, 25).

“A Crucifixão”, por Fra Angelico.

Ora, os Evangelhos foram escritos e acolhidos dentro de uma comunidade viva, a Igreja Católica. Por isso Santo Agostinho afirmou de forma contundente: “Eu não creria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja Católica” [iii]. Quem, portanto, quiser compreender corretamente as narrações a respeito de Jesus, deverá inserir-se nessa comunidade, acolhendo a sua Tradição e a profissão de fé naquele que, segundo São Paulo, “me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 20). Foi assim que, ao longo dos primeiros séculos, os cristãos souberam distinguir entre os textos canônicos do Novo Testamento e os inúmeros apócrifos que descreviam uma versão um tanto mágica do Senhor.

A identidade de Jesus, conforme a fé católica, articula-se em torno de três pontos essenciais: a sua Pessoa, que é divina, e as suas duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja Católica definiu isso como dogma, porque reconheceu na Tradição e no Novo Testamento — especialmente nos Evangelhos — aquilo que São Pedro professou por graça do Espírito Santo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16, 16). Com essa clareza, o Magistério sempre cuidou para que toda representação de Nosso Senhor expressasse piedosamente quem Ele é: nem um mito como Hércules, nem um filósofo como Sócrates. Muito mais do que isso: “É Deus mesmo que veio compartilhar a existência de cada um de nós” [iv].

“Visão de Santo Tomás de Aquino”, por Santi di Tito.

Do período patrístico até a Idade Média, Concílios e teólogos protegeram firmemente a identidade do Filho de Deus de interpretações descabidas e mesmo heréticas. Desse modo, surgiram grandes tratados de cristologia que ainda hoje contribuem para a ciência teológica, como as lições de Santo Agostinho, de São Boaventura e especialmente de Santo Tomás de Aquino, a quem Jesus mesmo teria dito, numa aparição: “Escreveste bem a meu respeito, Tomás. Qual será, pois, a tua recompensa?” [v]. Todo esse arcabouço teológico, no fim das contas, gerou um dos maiores clássicos da literatura religiosa, que é a Imitação de Cristo, livro ainda hoje referência para quem procura ser verdadeiramente cristão.

A partir do século XVI, no entanto, o cenário mudou. A revolução causada por Martinho Lutero não provocou desconfiança apenas contra o Magistério da Igreja, mas contra o próprio Cristo. O livre e imprudente exame das Escrituras levou ao desenvolvimento de um chamado método histórico-crítico que põe em xeque toda a cristologia e a Sagrada Escritura. Explica Scott Hahn que “os reformadores rejeitaram a dupla autoridade da Traditio da Igreja e das Escrituras e passaram a atribuir autoridade exclusiva às Escrituras”. Com isso, acrescenta ele, chegou-se “à monumental dificuldade de estabelecer a interpretação oficial das Escrituras a partir das próprias Escrituras enquanto texto, ajudando a lançar a matriz sobre a qual o moderno estudo bíblico se ergueria” [vi].

O resultado não poderia ter sido pior. Ano após ano, a figura de Nosso Senhor Jesus foi mergulhada num pântano profundo, a ponto de não se saber mais quais seriam suas ipsissima verba, suas próprias palavras. Estabeleceram-se as premissas para criar uma cisão entre o “Cristo da fé” e o “Jesus histórico”. Os historiadores começaram a reconstruir a vida de Nosso Senhor segundo os critérios secularistas do método histórico-crítico, apartando-se totalmente do dogma e da Tradição. O marco desse movimento foi justamente a Vida de Jesus, de Ernest Renan, que nega qualquer possibilidade de uma pessoa ou natureza divina no “Jesus histórico”. Não por menos o Papa Pio IX o chamou de “blasfemo da Europa” [vii]. Mais tarde, São Pio X teve a árdua missão de combater os frutos desse livro infame, com a Encíclica Pascendi Dominici Gregis

Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audácia sacrílega, rebaixam à craveira de um puro e simples homem.

Hoje, as narrações sobre a vida de Cristo variam bastante: do lado católico, temos textos excelentes como a Vida de Cristo de Fulton Sheen, Jesus em seu tempo, de Daniel-Rops ou, mais recentemente, Jesus de Nazaré, do Papa Bento XVI. Por outro lado, não faltam as interpretações progressistas, à moda de Ernest Renan, que retratam o Senhor como um homem qualquer. Nesse contexto, o Papa Bento XVI descreve em seu livro uma situação preocupante:

Mas o que pode significar a fé em Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo, se o homem Jesus foi totalmente diferente daquele que os evangelistas representam e daquele que a Igreja, partindo dos Evangelhos, anuncia? Os progressos da pesquisa histórico-crítica conduziram a distinções sempre mais refinadas entre camadas de tradição, por trás das quais a figura de Jesus, à qual precisamente a fé se refere, tornou-se sempre menos clara, perdeu sempre mais contornos. Mas, ao mesmo tempo, as reconstruções de Jesus, que deviam ser procuradas por trás das tradições dos evangelistas e das suas fontes, tornaram-se cada vez mais contrastantes: desde o revolucionário antirromano, que trabalha pela queda dos poderes constituídos e fracassa, até o manso moralista, que tudo aprova e que assim, de um modo inconcebível, acaba Ele mesmo por moralmente se afundar. Quem lê várias destas reconstruções, umas ao lado das outras, pode rapidamente verificar que elas são muito mais fotografias dos autores e dos seus ideais do que reposição de um ícone, entretanto tornado confuso. Por isso, foi crescendo a desconfiança a respeito destas imagens de Jesus; mas a Sua figura foi progressivamente se afastando cada vez mais de nós [viii].

O cinema trouxe mais um elemento desconcertante para este contexto: a cultura pop. Com atores expressivos e encenações repletas de efeitos cinematográficos — luzes, enquadramentos, músicas —, não há quem não associe Nosso Senhor a pelo menos um destes atores: Robert Powell, da versão de Franco Zeffirelli, em Jesus de Nazaré, de 1977; ou Jim Caviezel, em A Paixão de Cristo, lançado por Mel Gibson em 2004. E ninguém ousaria deixar de fora da lista o Cristo da série The Chosen, interpretado por Jonathan Roumie. Todos esses “rostos” de Jesus povoam hoje o imaginário tanto de católicos como de não católicos, apresentando uma versão mais ou menos próxima dos Evangelhos, segundo os critérios adotados por seus diretores.

Mas em quais dessas inúmeras versões você se apoiaria para contar às próximas gerações a história de Nosso Senhor? 

Sem dúvida, um bom católico deve sempre ter como referência as Sagradas Escrituras, a Tradição, o Magistério e a cristologia dos grandes santos e Doutores da Igreja. A partir disso, ele saberá reconhecer o que há de aproveitável ou descartável nas encenações modernas, como a Igreja soube distinguir nos livros apócrifos o que era verdadeiro e o que era falso.

A fórmula correta para contar a vida de Jesus, no entanto, é esta: vivê-la. E só se vive a vida de Cristo como membro de seu Corpo místico, a Igreja Católica, nutrindo-se dos sacramentos e dando frutos de caridade. Os santos contaram bem a história de Jesus, porque foram outros Cristos na terra para cada época e circunstância. Em nossa época, mais do que de grandes obras de literatura ou filmes, precisamos de homens e mulheres que encarnem, por assim dizer, o próprio Verbo, revelando a vida de Jesus como algo divino e humano, reservado a quem entendeu que a razão de ser da nossa existência é conhecer a Deus, amá-lo, fazer sua vontade e, um dia, ir para o Céu. 

Só assim os leitores do Evangelho verão que não se trata de só mais um texto nem de “letra morta”, mas, sim, palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68).

Referências

  1. Henri Daniel-Rops, Jesus em seu tempo. Cultor de Livros: São Paulo, 2022, p. 28.
  2. Commentarii in Isaiam, Prologus (PL 24, 17; CCL 73, 1); cf. Catecismo da Igreja Católica, § 133.
  3. Contra Epistulam Manichaei quam vocant fundamenti, 5, 6 (PL 42, 176); cf. Catecismo da Igreja Católica, § 119.
  4. Papa João Paulo II, Discurso aos jovens chilenos, 2 de abril de 1987.
  5. Jean-Pierre Torrell, Tommaso d’Aquino. L’uomo e il teologo. Casale Monf., 1994, p. 320. Em latim: Bene scripsisti de me, Thoma, quam ergo mercedem accipies?
  6. Scott Hahn, Politização da Bíblia. Ecclesiae: Campinas, 2018, p. 214.
  7. Discurso aos habitantes de Monti, 27 out. 1872 (Il Divin Salvatore, Ano 9, n. IX [30 out. 1872] 132b, transcrito em La Civiltà Cattolica, Ano 23, n. VIII, 8.ª Série [Florença 1872] 463, e traduzido ao francês em Discours de Notre Très Saint-Père le Pape Pie IX, 2 [Paris 1875] 90). Cf. Pio IX, Alocução consistorial “Maxima quidem laetitia”, 9 jun. 1862 (Pii IX Pontificis Maximi Acta, 1/III [Roma 1864] 453s).
  8. Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré. Minha Biblioteca Católica: Dois Irmãos, 2021, p. 99.

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