A começar da véspera, o luto obscurecia o esplendor das igrejas. A pirâmide ardente do altar-mor em dias de festa havia desaparecido, e a fisionomia consternada dos templos, em que luzes isoladas bruxuleavam fúnebres, convidava os fiéis à penitência e à contrição.

Em épocas que a nossa lembrança descobre, a quinta-feira santa era um dos maiores dias do povo; dia exclusivamente consagrado à expiação das faltas, aos sacrifícios propiciatórios.

Durante a semana, os templos transbordavam de devotos que iam desobrigar-se [i]; a voz eloqüente do orador sagrado retumbava nas naves como um paroxismo profético da eternidade; e os santos, nos seus nichos dourados, ocultavam-se por trás das cortinas roxas, apenas o sacerdote levantava a antífona das Trevas.

E quanto fervor! De quanta poesia a imaginação popular exornava esses atos, esses deveres!…

As superstições sucediam-se às práticas religiosas, o recolhimento da consciência serenava as paixões, e as Endoenças [ii] como que colocavam a população na presença de um Deus agonizante.

O que se passava na quinta e sexta-feira santa no seio das famílias era de uma simplicidade primitiva e tocante. “Porque Nosso Senhor estava doente”, a casa não se varria, os escravos não trabalhavam, os meninos não faziam bulha. Não se cantava, não se dançava, não se tocava. As correções corporais eram abolidas; falava-se baixinho, jejuava-se, rezava-se…

As donas-de-casa emprazavam para quando rompesse a Aleluia certo ajuste de contas com as escravas delinqüentes e os filhos traquinas.

Detalhe de tríptico da Última Ceia, de um pintor holandês anônimo.

No corpo das igrejas e nos corredores, nas sacristias e nos claustros, gente de toda a classe buscava os confessionários, desde o sábio e o alto funcionário público, até o homem obscuro e o cativo humilde, cuja metafísica limitava-se a crer e orar.

O jejum, não obstante ser obrigatório, sofria restrições: eram excluídos os doentes e enfermos, as senhoras grávidas e as crianças, os velhos e as mulheres que amamentavam.

A abstenção de toda a casta de jogos e divertimentos, e a continência, em qualquer condição, constituíam uma lei.

Durante a semana final comungava-se. O padre adiantava-se no silêncio glacial das igrejas, acompanhado dos acólitos; e, diante da toalha imaculada, os fiéis, de joelhos, recebiam a partícula sagrada.

E ao brilho do cibório magnífico e dos círios acesos, um cálix de prata repleto d’água circulava na destra de um irmão de confraria, bebendo um gole cada um dos penitentes, absolvidos dos erros dos dias implacáveis [iii].

O ofício da Paixão, na Capela Imperial e no Carmo, era concorrido não só pela multidão anônima, porém ainda pelo que havia de mais elevado e distinto entre a nobreza e o povo.

Especialmente na primeira destas igrejas o pontifical do bispo, o comparecimento do Imperador e dos seus ministros, do mundo oficial enfim, adquiriam mais deslumbramento ao faiscar das gemas brilhantes sobre o reflexo negro dos veludos e sedas das ricas damas que, das tribunas e do interior das grades laterais, aguardavam, piedosas e belas, a cerimônia da Paixão e do Lava-Pés.

Depois da missa, da sagração dos óleos místicos e de desnudados os altares, arriavam-se os sinos, a hóstia era depositada no cofre ou túmulo; a música a vozes executava arrebatadoras composições de José Maurício e de outros mestres, seguindo-se após as Lamentações — tudo o que há de mais inspirado na poética sonora do cristianismo [iv].

Às notas repassadas de imprecações e angústias do doloroso e patético drama das Lamentações, a multidão como que via, na série de plangentes antífonas, os profetas da antiga lei ressurgirem nas suas proporções incomensuráveis, mas, no meio das apóstrofes, entornando a segurança e a fé nos corações desolados.

E o coro, respondendo às argüições soleníssimas, parecia ao eco de uma ruína que desabava.

A estética daquele tempo tinha como forma de arte a beatitude d’alma e a cristalização eucarística das lágrimas!

Absorvida no lutuoso motivo, a reunião dos fiéis tornava-se respeitosa e sentida. E aos reflexos lívidos do santuário, aquela espécie de viajantes das terras austrais descobria o aspecto calmo e sereno do céu.

E a matraca, que desde a véspera substituíra nas Trevas o sino, atroava a sacristia…

A arquibancada para o Lava-Pés aí estava sobre o mármore sagrado da igreja, para o mandato comemorativo [v].

O Lava-Pés, por Jacopo Palma, o Jovem.

O bispo, na majestade do seu porte, avultava com os seus sacerdotes e comitiva; e doze padres, alinhando-se, sentados nos lugares determinados, indicavam o complemento do rito, quanto aos oficiantes.

O venerando imitador do Cristo, identificado com o seu papel, patenteava toda a humildade do Divino Mestre quando, interrompendo a ceia, lavara os pés aos seus discípulos, pressentindo já na face pálida como as nuvens do inverno o beijo frio e viscoso da traição de Judas.

Durante a loção, o coro da Capela entoava umas harmonias de José Maurício, tão inspiradas, que enlaçavam em sua sublimidade maravilhosa o grandioso, o mistério, o amor e a prece!

Quando esta cerimônia findava, celebravam-se as Trevas [vi].

O altar do sacramento, guardado por sentinelas com as armas em funeral, ficava iluminado como uma montanha de fogo; e, dividindo os quartos da noite, os irmãos velavam a hóstia consagrada.

Ali estava a luz; — no resto da igreja rolavam as trevas.

O efeito conveniente dos acessórios destacava todo o Intermédio de tristeza que ia desempenhar-se. No santuário, ocupava o centro um candeeiro triangular, com quinze velas de cera amarela, que queimavam crepitando e fundiam-se em grossos fios.

E o conto das visões proféticas, os lamentos e as orações, ecoavam lugubremente no recinto e nos altares despidos dos adereços de outrora.

O simbolismo é o transcendente dos cultos. O candeeiro das trevas tinha essa expressão e esse caráter.

À medida que findavam os salmos, a modo que a morte, aninhada em algum turbante de sombras, alongava a asa por sobre uma daquelas luzes… um acólito as apagava.

Adiantando-se o Ofício, mais se adiantava a negridão que peneirava-se no templo, até que o círio do ápice do referido triângulo ficava único como um pensamento que não morre, como um santelmo de náufrago aos frêmitos da tempestade.

Um corista, porém, o retirava, e, levando-o para trás do altar-mor, aí o escondia.

Entre Deus e o Sol há um ponto de contato: não é necessário que eles se mostrem, para que sua luz ilumine os horizontes e o mundo.

— Aquela vela simbolizava o Cristo morto, rasgando com ondas de esplendores o ar noturno do sepulcro!

E os padres, como uma legião de sombras resvalando no caos, murmuravam o Miserere [vii].

Então, o círio misterioso reaparecia, o silêncio era substituído pelo alvoroço, pelo bater de livros nos bancos e o estalar ensurdecedor das matracas.

Enquanto a Capela Imperial retinia dos últimos rumores das Trevas, no Paço o Imperador humilhava a sua fronte coroada diante de onze pobres e um sacerdote, na cerimônia do Lava-Pés.

Semelhando à Vítima divina, e a exemplo dos papas, dos reis, dos mais imperadores, dos arcebispos e bispos, dos abades e provinciais, Sua Majestade mantinha esses estilos, empanados presentemente por hálitos heréticos.

Este ato era concluído pelas esmolas de moedas de ouro aos pobres, e a oferta de um ramo de flores ao padre que os acompanhava.

Desde o meio-dia o exército cingia de crepe as bandeiras, as músicas calavam-se, as armas ficavam em funeral.

À tarde, as consoadas nos conventos e domicílios privados [viii]…

Na quinta-feira santa, a partir de seis horas, a população, vestida de luto, comprava amêndoas e visitava as igrejas.

*

Candelabro do Ofício de Trevas.

Da multidão silenciosa ouvia-se nas ruas o burburinho confuso e cadenciado.

O farfalhar das sedas, o ruído da turba em caminho, palavras ao acaso, condensavam-se em certa altura, numa ondulação única, mas larga e igual.

A visitação, depois da desobriga, tornava-se como que um respiradouro àquela gente, enlevada no misticismo dos crepúsculos cristãos.

As igrejas soturnas atraíam nessa noite todas as classes populares; por isso que os painéis da Paixão ou os Passos, e a exposição do Senhor Morto, se haviam preparado e disposto segundo a letra da tradição.

Ao transpor-se o limiar de um templo, deparava-se, ao olhar, o santuário quase ermo de luzes e coberto de panejamentos negros.

Habituando-se à escuridão, quem se aproximasse descortinava a cena mortuária preparada no fundo, cena comovente e destinada a impressionar os espíritos piedosos.

Na Lampadosa [ix], por exemplo, armavam com folhagens um Horto verdadeiramente tétrico, esclarecido com escassez, no meio do qual a imagem do Cristo morto, envolvido no lençol do jazigo, era guardada por irmãos do Santíssimo, com tochas acesas, de opa vermelha, tendo a um lado uma grande salva de prata, onde cada visitante depunha o seu óbolo.

Na generalidade, os Passos do Rosário e os Hortos eram pouco comuns.

Simplificando o aparato, a exposição na pluralidade das igrejas resumia-se em colocar o Senhor Morto embaixo do altar-mor, do qual retiravam a face esculpida, ficando sobre o altar a Virgem das Dores, nas solidões intermináveis de sua agonia sem termo.

Os irmãos da confraria — e mais ortodoxamente os do Santíssimo Sacramento — velavam alternativamente com tochas ardentes o simulacro de túmulo do cadáver de um Deus.

Os fiéis, que deviam visitar, pelo menos, sete igrejas, dobravam o joelho no topo dos degraus, inclinavam o corpo, abaixavam a fronte, beijando de preferência os dedos do pé ou o dorso da mão ensangüentada, da imagem estendida. E, erguendo-se compungidos, sacudindo a poeira dos vestidos, deixavam na salva a esmola espontânea, saindo em seguida.

Entre as famílias, entre as pessoas mais chegadas, entre o povo finalmente, a frase: — “me perdoe alguns agravos” —, era própria do dia.

E este dizer tão simples, que autenticava a desobriga da quaresma, abrangia os derradeiros temores de uma alma purificada pela religião e pela penitência.

A exposição das baixelas de prata e de ouro, do Paço da cidade, disputava a concorrência com as mais esplêndidas igrejas.

Até à meia-noite, que durava a visitação, magotes de povo empreteciam as ruas.

O comércio de amêndoas estava no seu auge, as confeitarias repletas de compradores, e o luxo ofuscava.

Ninguém havia que resistisse à tentação de comprar um presente de festas, um objeto qualquer para uma oferta.

Os estabelecimentos especiais, como as confeitarias do Deroche, Castelões, João Guimarães, Carceler, Castanino, do Felipe do Largo da Carioca, e do Neves do Largo do Capim, ostentavam-se caprichosos, com as suas cortinas de cassa nas portas da entrada, com suas galerias feitas em colunas e forradas de seda, e com seus candelabros e arandelas de gosto e preço.

O povo formigava nessas casas, escolhendo à vontade caixinhas e cartuchos de amêndoas, deliciosas empadas, cestinhas com asas, enfeitadas com fitas e papéis, confeitos de amêndoas, cravo, canela, etc.

Por entre as soberbas jarras com flores das escadarias, a classe fina da sociedade, as famílias importantes e ricas chegavam aos salões luxuosos do João Guimarães, em que os gelados, os doces saborosíssimos e os sorvetes eram servidos por empregados luzidos e atenciosos.

Ao movimento generalizado e incessante presidia a boa ordem das nossas festas populares.

Felizes tempos aqueles em que o povo tinha crenças e expansões íntimas!

Mas esses tempos passaram!…

Notas

  1. Desobrigar, como verbo pronominal, significa, segundo o antigo Aulete (de que nos servimos também nas demais notas), “desempenhar a obrigação”, “isentar-se da obrigação”, “cumprir o preceito quaresmal”. (Nota da Equipe CNP.)
  2. Endoenças, sempre no plural, são “as solenidades de quinta-feira santa”. No singular, significa simplesmente “dor, paixão”, derivando do latim dolentia. (Nota da Equipe CNP.)
  3. Certamente este parágrafo faz referência ao piedoso hábito antigo de se beber um copo d’água antes de tomar qualquer alimento após receber a Comunhão. Embora seja uma louvável expressão de reverência para com o Santíssimo (a ideia é que não se deveria simplesmente mastigar outros alimentos vulgares sem antes se “purificar” a boca com um pouco de água), esse ato e outros tantos constituem matéria de costume, não de legislação. (Nota da Equipe CNP.)
  4. José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) foi um padre católico, professor de música, maestro e compositor brasileiro (considerado o mais importante de sua época). Lamentações, ou Impropérios, são uma série de antífonas e responsórios expressando o desgosto de Jesus com o seu povo, por tê-lo condenado à morte e crucificado. Cantam-se na Sexta-feira Santa, durante a Adoração da Santa Cruz. (Nota da Equipe CNP.)
  5. Mandato: assim se chamava antigamente ao lava-pés, “cerimônia religiosa que se celebra na quinta-feira de Endoenças, lavando-se os pés a doze pobres”. A palavra advém da antífona prevista ainda hoje para a cerimônia: Mandatum novum do vobis: ut diligatis invicem, sicut dilexi vos, “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (cf. Jo 13, 34). Daí também o inglês Maundy Thursday, usado para denominar a Quinta-feira Santa. (Nota da Equipe CNP.)
  6. Trevas: “os três dias da Semana Santa anteriores” à Vigília Pascal, “em que nas igrejas se não deixa entrar a luz do dia; os ofícios celebrados pela Igreja nesses dias”. (Nota da Equipe CNP.)
  7. Trata-se do Salmo 50. Chamava-se assim por começar justamente com a frase Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam, “Tende piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia”. (Nota da Equipe CNP.)
  8. Consoada: “pequena refeição que nos dias de jejum se pode tomar à noite”. (Nota da Equipe CNP.)
  9. Trata-se da Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, localizada na Avenida Passos, no Centro do Rio de Janeiro. (Nota da Equipe CNP.)

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