No dia 12 de julho de 1929, uma sexta-feira, foi publicada a seguinte reportagem no The Times de Londres: 

Nosso correspondente em Paris informa via telégrafo que faleceu em Thuilieres, no departamento de Vosgos, a srt.ª Ève Lavallière, outrora uma eminente atriz. Ela havia se aposentado há doze anos, após ter subitamente decidido, em 1917, levar uma vida de isolamento consagrada à religião. 

E por que uma das atrizes mais célebres do mundo rejeitou tudo o que ele tinha a oferecer? O mundo não sabia que essa atriz cômica, sagaz e contadora de histórias, sensação dos palcos de Paris e de outros lugares, amante e mãe, uma das mulheres mais ricas e belas de sua época, não vivia em paz. A mulher por trás da máscara de atriz fora atormentada por uma impenetrável tristeza, sendo vítima de depressões, do desespero e de pensamentos suicidas

Em 1916, no auge da fama, e para auxiliar o trabalho de guerra, Ève Lavallière realizou uma série de apresentações em Londres. Depois de uma dessas apresentações, ela deixou o palco enquanto o público, de pé, a aplaudia. Aonde ela teria ido? 

Nada menos que à margem do Rio Tâmisa, para afogar-se.  

Porém, enquanto observava o reflexo das luzes da cidade brincando no curso do rio escuro, que sempre segue adiante, ela desistiu (por pouco). Infelizmente, não foi a primeira vez que tais pensamentos a levaram à beira da aniquilação; no entanto, curiosamente, seria a última. Menos de um ano depois, ocorreu um episódio que viria a mudar a vida dela para sempre.

Ève Lavallière.

Eugénie Marie Pascaline Fenoglio nasceu em Toulon num Domingo de Páscoa, em 1.º de abril de 1866. Seu pai era mau humorado e depressivo. Ève, seu irmão mais velho e sua mãe viviam sob medo e tensão constantes. A situação atingiu seu ponto crítico no dia 6 de março de 1884, um domingo.

Após dias de ofensas ininterruptas contra a mãe de Ève, ouviu-se um disparo de pistola. Então, as crianças viram a mãe deitada no chão: ela estava ferida mortalmente. Ève olhava, incrédula; mas, em seguida, viu que a mesma pistola estava apontada para ela. Um tiro foi disparado, mas ricocheteou na parede, porque o alvo abaixara para se proteger. Em seguida, disparou-se outro tiro. Dessa vez, ele atingiu o alvo, e o pai de Ève caiu morto. Então, as duas crianças fugiram de casa. Separaram-se e nunca mais se encontraram

Ève passou a sobreviver com uma série de trabalhos insignificantes em meio a uma obscuridade provincial. Essa situação alimentou uma ardente ambição: escapar. A partir daquele momento, ela passou a combinar um rosto atraente e uma vivacidade cada vez maior com uma vontade de ferro; assim, conseguiu escapar para os palcos de Paris, tomando no caminho o nome artístico de “Ève Lavallière”. Daí em diante, como num conto de fadas, todos os seus desejos tornaram-se realidade. Mas desejos não são orações, e a realização de seus sonhos gradualmente se transformaria num pesadelo vivo.

Ève atuava diante de grandes plateias que a adoravam e contavam inclusive com monarcas; o mundo parecia estar a seus pés. Ninguém sabia, no entanto, como as sombras que cercavam a atriz ficavam cada vez mais densas. Quando as luzes dos palcos se apagavam, a escuridão ficava povoada apenas por demônios que a atormentavam sem cessar.

Tudo isso acabaria em maio de 1917. Ève Lavallière, então com 51 anos de idade, assinou um contrato para fazer uma turnê pelos Estados Unidos, a qual era acompanhada por uma promessa de uma fama ainda maior. Antes de partir, ela sentiu a necessidade de descansar no campo. Retirou-se ao rústico remanso de Touraine.

Coincidentemente, o proprietário da casa que ela alugara era o pároco local. Pe. Chesteigner, um bom sacerdote, perguntou por que Ève não comparecera à Missa dominical. Daí em diante, ela passou a assistir à Missa todos os domingos, mais por respeito humano que por reverência. Não obstante, o sacerdote e sua nova paroquiana começaram a conversar. Ela lhe revelou, entre outras coisas, como se aventurara pelo oculto. O sacerdote, chocado, fez um alerta sobre o grave erro de tais flertes. Ela ficou perturbada com a reação do padre. Tanto, que naquela mesma noite, mais tarde, ela caiu em si como numa espécie de insight, que apareceu sob a forma de uma pergunta: se o demônio existe, por que não Deus? 

Naquela noite, essa pergunta a deixou perplexa e a levou a fazer outras sobre a vida que havia levado e o estilo de vida que ainda mantinha.

No dia seguinte, apresentou-se humilhada ao sacerdote e, para o espanto dele, sentou-se e disse que só tinha uma intenção: ser instruída na fé católica.

Ao longo das semanas seguintes, ela leu sobre a vida da santa com a qual mais se identificaria posteriormente: Maria Madalena. O sacerdote lhe emprestou um volume que narrava a vida da santa e sugeriu que o lesse. Ève estava desesperada. Ela o fez e, logo em seguida, vieram o arrependimento e a confissão.

A Madalena, de Murillo.

Até hoje podemos ver na matriz da paróquia de Chanceaux as seguintes palavras gravadas na pedra: “Nesta igreja, Ève Lavallière se converteu e recebeu a comunhão no dia 19 de junho de 1917, após ter se reaproximado de Deus por meio do Pe. Chesteigner”.

Depois de sua conversão, Ève se transformou numa alma penitente, recorrendo à oração e à mortificação para reparar os erros da vida passada. Ela tentou encontrar um lar espiritual (um convento ou um mosteiro), mas não foi bem-sucedida. Vagou de um lugar para outro antes de se recolher em Lourdes. Lá era possível avistá-la fazendo a Via Sacra, descalça mesmo em meio à chuva torrencial.  

Ela se sentia cada vez mais sozinha depois de ter-se retirado definitivamente a uma vida discreta. No final da vida, como no caso da santa que tomava por modelo, a única coisa que lhe restava era a cruz: seu único refúgio das tempestades que então começavam a assaltá-la.   

Durante aquele período, sua filha ilegítima se vangloriava do estilo de vida imoral que levava, algo que fazia Ève chorar bastante, talvez mais do que qualquer outra coisa. Sem demonstrar remorso algum, sua filha tinha um cruel prazer de tomar da mãe tudo o que podia, ao mesmo tempo que não lhe dava nada em troca, a não ser uma fria indiferença.

Em seus últimos dias de vida, a saúde de Ève (que já era frágil) entrou em colapso, pois ela trilhou seu caminho penitencial com a mesma intensidade com que trilhara o do mal. A doença e a enfermidade fizeram do corpo dela sua própria cruz. Finalmente, por razões médicas, suas pálpebras tiveram de ser costuradas. Nessa operação, realizada sem anestesia nem queixas, ela ofereceu uma dor quase insuportável em expiação, dizendo simplesmente que havia pecado com a visão.

Na madrugada de 10 de julho de 1929, chegou ao fim a longa vigília de Ève ao pé da cruz. Ela foi enterrada num túmulo simples em Thuillières, onde foram escritas as seguintes palavras:

DEIXEI TUDO POR DEUS. SÓ ELE ME BASTA.

A breve reportagem jornalística sobre sua morte diferia totalmente das colunas publicadas décadas antes, na época em que ela não tinha concorrente nos palcos europeus. Porém, poucos anos depois de sua morte, foram publicados livros sobre sua vida e conversão, e surgiu em torno de sua memória — com certa cautela — um culto diferente daquele que ela conhecera no ápice da fama. 

Despontando enfim num palco muito diferente, Ève Lavallière começou a desempenhar seu derradeiro e mais importante papel.

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