Já repassamos os recursos e os numerosos meios que a divina misericórdia colocou em nossas mãos a fim de darmos alívio às almas do Purgatório. Mas que almas se encontram nessas chamas expiatórias e a quais delas devemos prestar nossa assistência? Por que almas devemos rezar e oferecer sufrágios a Deus?
A tais questões é preciso responder o seguinte: o nosso dever é rezar pelas almas de todos os fiéis falecidos, omnium fidelium defunctorum, de acordo com a expressão da Igreja. Ainda que a piedade filial nos imponha deveres especiais com relação a nossos pais e familiares, a caridade cristã manda-nos rezar pelos fiéis falecidos em geral, porque todos eles são nossos irmãos em Cristo Jesus, todos eles são nosso próximo, que devemos amar como a nós mesmos. Por estas palavras, “fiéis falecidos”, a Igreja se refere a todos que se encontram no Purgatório, ou seja, os que não estão no Inferno, mas também não se tornaram dignos ainda de ser admitidos à glória do Paraíso.
Mas quem são essas almas? Acaso podemos conhecê-las? Deus reservou esse conhecimento a si mesmo e, a menos que Ele no-lo deseje revelar, é preciso que permaneçamos em ignorância completa a respeito do estado das almas na outra vida. É raro, de fato, que Ele nos dê a conhecer se uma alma está no Purgatório ou na glória do Céu, e mais raro ainda que Ele revele o destino de um réprobo. Por conta dessa incerteza, nós devemos rezar em geral, como faz a Igreja, por todos os falecidos, sem prejuízo das almas a que queremos prestar auxílio de modo particular.
Evidentemente, seria preciso restringir a intenção de nossas orações aos mortos que ainda se encontram em necessidade de nossa assistência, se Deus nos concedesse o privilégio dado a Santo André Avelino, de conhecer a condição das almas na outra vida. Quando com angélico fervor esse santo religioso da Ordem dos Teatinos rezava pelos falecidos, de acordo com seu piedoso costume, algumas vezes acontecia de ele experimentar em seu interior uma espécie de resistência, um sentimento de repulsa invencível, enquanto noutras vezes, pelo contrário, ele achava grande consolação e sentia uma particular inclinação à oração.
Logo ele compreendeu o significado dessas diferentes impressões: a primeira queria dizer que sua oração seria inútil, porquanto a alma que ele desejava assistir era indigna da misericórdia de Deus e tinha se condenado ao fogo eterno; a segunda indicava que sua oração era eficaz para o alívio da alma no Purgatório. O mesmo se passava quando ele queria oferecer o Santo Sacrifício por alguém que morrera. Ele sentia, ao deixar a sacristia, como se fosse retido por uma mão irresistível, com o que entendia que aquela alma estava no Inferno; mas quando era inundado de alegria, iluminação e devoção, ele podia ficar certo de que contribuiria para a libertação de uma alma.
Esse generoso santo rezava, portanto, com o maior dos fervores pelos mortos que ele sabia estarem sofrendo, e não cessava de oferecer seus sufrágios até que as almas lhe viessem agradecer, dando-lhe a certeza de sua libertação.
O que nos cabe, a nós que não possuímos essas luzes sobrenaturais, é rezar por todos os falecidos, até mesmo pelo maior dos pecadores e pelo mais virtuoso dos cristãos. Santo Agostinho conhecia a grande virtude de sua mãe, Santa Mônica e, no entanto, não satisfeito por oferecer seus próprios sufrágios por ela a Deus, pedia a seus leitores que não deixassem de recomendar a alma dela à divina misericórdia.
No que diz respeito a grandes pecadores, que morrem sem se reconciliarem externamente com Deus, nós não devemos excluí-los de nossos sufrágios, porque não temos segurança de sua impenitência interior. A fé nos ensina que todos os homens que morrem em estado de pecado mortal incorrem na danação eterna; mas quem são de fato os que morrem nesse estado? Só Deus o sabe, Ele que reserva a si o julgamento dos vivos e dos mortos. Quanto a nós, só o que podemos fazer é tirar uma conclusão hipotética a partir de circunstâncias exteriores, mas mesmo disso nós devemos nos abster.
É preciso admitir, contudo, que há muito o que temer por aqueles que morreram despreparados para a morte; e, para os que se recusam a receber os sacramentos, então, parece que se esvai toda esperança, dado terem deixado essa vida com sinais externos de réprobos. Apesar de tudo, devemos deixar o julgamento a Deus, pois é a Ele que pertence o juízo: Dei iudicium est (Dt 1, 17).
Mais esperança existe para os que não foram positivamente hostis à religião, que foram benevolentes para com os pobres, que conservaram algumas práticas da piedade cristã ou que pelos menos aprovavam e favoreciam a piedade; há mais esperança para tais pessoas, eu digo, quando acontece de morrerem de repente, sem terem tido tempo de receber os últimos sacramentos da Igreja.
São Francisco de Sales não nos permite desesperar da conversão dos pecadores até o seu último suspiro, e mesmo depois da morte nos proíbe de julgar mal aqueles que levaram uma má vida. Com exceção daqueles pecadores cuja condenação é tornada manifesta pela Sagrada Escritura, nós não devemos concluir, ele diz, que uma pessoa se condenou; ao contrário, é preciso que respeitemos o segredo de Deus.
A principal razão disso é que, assim como a primeira graça não se pode merecer, é gratuita, assim também é a graça da perseverança final, ou da boa morte. É por isso que devemos ter esperança por todos os falecidos, por mais lamentável que tenha sido sua morte, porque nossas conjecturas podem basear-se tão-somente no exterior, com base em que até mesmo os mais espertos podem se enganar.
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