O Matrimônio é uma criação de Deus, e a Igreja deve estar disposta a se sacrificar por isso. Essa foi a mensagem que o Cardeal Angelo Comastri, vigário papal da Cidade do Vaticano, dirigiu aos participantes do Congresso de Renovamento no Espírito Santo, realizado no Estádio Olímpico de Roma, a 4 de julho de 2015.

Recordando uma conversa com o falecido Cardeal Francis George, Comastri exortou os fiéis a permanecerem firmes na fé, ainda que o mundo se levante contra eles. “Deus criou a família, não fomos nós! E quem pode saber mais do que Deus? Quem pode se colocar no lugar de Deus?”, questionou o prelado. O discurso pode ser visto no vídeo abaixo.

A doutrina moral católica sobre o Matrimônio já rendeu muitas controvérsias para a Igreja, especialmente nos últimos anos. Apesar de o Concílio Vaticano II ter declarado que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (Gaudium et Spes, n. 1), o mundo moderno não tem demonstrado muita simpatia por virtudes como a castidade e a fidelidade conjugal.

Sua Santidade, o Papa Paulo VI.

Pense-se, por exemplo, na encíclica Humanae Vitae, publicada pelo Papa Paulo VI meio século atrás. Talvez seja o documento mais odiado da Igreja até hoje. E a razão desse ódio é que, para os laicistas, a religião não deveria emitir juízos sobre assuntos da esfera privada, porque tal intervenção constituiria um ataque à liberdade de consciência. No fundo, o mundo moderno não quer aprender do Papa o que um casal de namorados pode ou não fazer entre quatro paredes. Ao contrário, os casais querem viver sua sexualidade o mais livre possível: livres de compromisso, de filhos, da biologia, de tudo.

Mas a Igreja, atenção, não tem uma palavra sua sobre Matrimônio e outros temas ligados à família. O que ela diz, recordava Bento XVI, “não são verdades de fé mesmo se recebem ulterior luz e confirmação da fé”, mas princípios que “estão inscritos na natureza humana e [que], portanto, são comuns a toda a humanidade” (Discurso aos participantes do congresso promovido pelo Partido Popular Europeu, 30 de março de 2006). O fato de que somente um homem e uma mulher podem gerar um filho não é um dogma cristão definido ex cathedra por um Papa, nem a perniciosidade das orgias e do aborto foi inventada por um Concílio Ecumênico. Basta o mínimo de bom senso para perceber a natureza de cada uma dessas realidades.

A dificuldade do mundo atual é que lhe falta justamente isto: o bom senso. Depois de anos de doutrinação laicista e incentivo à imoralidade, o homem moderno não consegue mais distinguir o certo do errado. O vício, vale lembrar, incapacita o homem para perceber os bens concretos que estão em jogão no seu agir moral. E, como ensina Santo Tomás, a lei natural pode tornar-se obscura ao homem, “seja por más persuasões, como se dão erros relativos às conclusões necessárias na ordem especulativa, seja por maus costumes e hábitos corruptos, assim como se deu com alguns que não consideravam pecado os roubos ou os vícios contra a natureza” (S. Th. I-II, q. 94, a. 6).

Para combater essa tendência, a Igreja precisa estar disposta a defender os “valores inegociáveis” de que falava Bento XVI, em 2006, aos congressistas do Partido Popular Europeu, ou seja:

  • Tutela da vida em todas as suas fases, desde o primeiro momento da concepção até à morte natural;
  • Reconhecimento e promoção da estrutura natural da família, como união entre um homem e uma mulher baseada no matrimônio, e a sua defesa das tentativas de a tornar juridicamente equivalente a formas de uniões que, na realidade, a danificam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu caráter particular e o seu papel social insubstituível;
  • Tutela do direito dos pais de educar os próprios filhos.

Todos esses valores inegociáveis dizem respeito à estrutura fundamental da família. No plano puramente biológico, a comunhão entre os corpos masculino e feminino revela uma disposição natural a que ambos se relacionem intimamente. Trata-se de uma interação tão perfeita que o próprio São Paulo a reconheceu como símbolo da união entre Cristo e a Igreja no Céu (cf. Ef 5, 25). Na união sexual, os corpos da mulher e do homem são, de fato, “uma só carne”, ao passo que nas relações entre pessoas do mesmo sexo não existe qualquer união efetiva, razão pela qual o Apóstolo as declara “contrárias à natureza” (cf. Rm 1, 26).

Além disso, a união sexual está ordenada à reprodução da espécie, o que é uma inclinação natural de todo ser vivo sexuado. Macho e fêmea se reproduzem. No caso da espécie humana, porém, a fragilidade da prole e da mulher supõe uma força que os defenda dos riscos externos. O bezerro não precisa de muito tempo ao lado do boi e da vaca para aprender a andar. Em pouco tempo, esse animal já está correndo e caçando outras fêmeas para se reproduzir. O bebê humano, por outro lado, é profundamente diverso; o seu desenvolvimento é lento e exige tanto a presença do pai quanto da mãe, cujo tempo de gestação e repouso pós-parto também é delicado.

Na Grécia Antiga e também em Roma, os escravos eram obrigados a se relacionar com qualquer mulher para que os filhos dessas relações servissem às próximas gerações de governantes. Como não tinham família nem conheciam seus pais, as crianças e as mulheres ficavam vulneráveis ao poder do Estado. Foi apenas com o advento do cristianismo que mulher e crianças passaram a ser valorizadas como pessoas humanas. Daí se nota o quanto a propaganda feminista contra a família está equivocada, como nota o sociólogo Rodney Stark (2006, p. 111):

Em meio às denúncias atuais de que o cristianismo é patriarcal e sexista, facilmente se esquece de que a Igreja primitiva era tão particularmente atraente para as mulheres que no ano 370 o imperador Valentiano emitiu uma ordem escrita ao papa Dâmaso I requerendo que os missionários cristãos parassem de visitar as casas de mulheres pagãs. Embora alguns autores clássicos afirmem que as mulheres eram presa fácil para qualquer “superstição forânea”, muitos reconhecem que o cristianismo era extraordinariamente atraente porque no interior da subcultura cristã as mulheres tinham um status mais elevado do que no mundo greco-romano em geral.

Notem que o cristianismo não inventou nada. A Igreja apenas iluminou a realidade natural da sexualidade, a fim de que estruturas pecaminosas não mais abusassem da dignidade da pessoa humana, como ocorria nos tempos romanos. O juízo cristão sobre a família não diminuiu a liberdade das pessoas, como acusam os laicistas, mas, antes, deu-lhes verdadeira liberdade. A fé serviu para conscientizar o homem de que ele não é só corpo, não é só biologia. Ele também é alma, e é chamado a amar.

Por isso, o Matrimônio não pode ser compreendido apenas como uma sociedade civil. Isso condenaria a família a ser, na expressão de Kingsley Davis, uma instituição secundária, isto é, uma empresa onde tudo é descartável. Mas a própria natureza transcendente da família supõe uma resposta de amor definitivo e abnegado, como condição para a liberdade humana.

Com efeito, a instituição do Matrimônio precisa ser protegida de todo e qualquer ataque, seja ideológico, seja político. Um discernimento razoável sobre os frutos negativos da desconstrução da família leva-nos a crer que estamos voltando exatamente para a mesma situação da Grécia Antiga e de Roma. Os homens não querem saber de ser pais, as mulheres aceitam ser tratadas como objeto, e os filhos, coitados, terminam nas mãos da pátria educadora.

É por essa razão que a Igreja não vai se calar. “O preceito da hora presente”, como dizia Pio XII, “não é lamento, mas ação”, e a defesa da família “pertence aos membros melhores e mais escolhidos da cristandade, penetrados por um entusiasmo de cruzados, ao grito de ‘Deus o quer’, prontos a servir, a sacrificar-se, como os antigos cruzados” (Radiomensagem de Natal, n. 29) Se no passado os cruzados deram a vida pela Terra Santa, hoje devemos estar dispostos a “uma nova travessia, superando o mar dos erros do dia e do tempo, para libertar a terra santa espiritual”, isto é, as nossas santas famílias.

Referências

  • Rodney Stark, O crescimento do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2006.

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