Neste dia 1.º de novembro, o Papa Leão XIV proclama São John Henry Newman como o 38.º Doutor da Igreja. Primeiro como presbítero anglicano, depois como cardeal católico, as suas corajosas contendas públicas com os filósofos e teólogos mais influentes da era vitoriana fizeram de Newman uma das figuras mais fascinantes do cristianismo moderno. Após a sua entrada na Igreja de Roma, atormentado, mas lúcido e coerente, defendendo a consciência com a única ajuda da “luz suave” da verdade, o oratoriano londrino soube, de fato, exaltar a relação entre fé e razão como poucos outros.
Angelo Bottone, professor de Filosofia na University College Dublin e na Dublin Business School, tradutor de Newman e autor de ensaios originais sobre o novo Doctor Ecclesiae, explica ao portal Tempi a visão refinada do mundo e da Igreja daquele que o monsenhor católico George Talbot apontava como “o homem mais perigoso da Inglaterra”.
Professor, qual é o significado do título de Doutor da Igreja atribuído a John Henry Newman pelo Papa Leão XIV?
Trata-se de um reconhecimento que a Igreja reserva a figuras excepcionais, cujo ensinamento se distingue pela universalidade e profundidade teológica. Antes dos méritos doutrinários de Newman, se me permitem, gostaria de me concentrar num aspecto menos central do ponto de vista estritamente teológico, mas rico em implicações pastorais: o linguístico.
Por favor.
É significativo o fato de Newman ser o primeiro Doutor da Igreja a ter escrito em inglês, a mesma língua materna do Papa Leão XIV. Esse elemento tem um valor que não é secundário: Newman fala diretamente às regiões do mundo em que o inglês é a língua oficial ou dominante, incluindo muitos países africanos e asiáticos anglófonos, onde hoje o catolicismo está em expansão. Naturalmente, somam-se a esses lugares o Reino Unido, os Estados Unidos, a Irlanda e outros países de matriz anglófona. O pensamento de Newman, principalmente a parte que trata sobre a consciência, o dinamismo do desenvolvimento doutrinário e a relação entre fé e razão, oferece instrumentos preciosos para a vivência da fé cristã em ambientes de pluralismo religioso ou culturalmente complexos, nos quais o catolicismo não tem uma posição historicamente dominante. O próprio Newman viveu e pensou como cristão pertencente a uma minoria: foi um apologista moderno, capaz de defender e propor com rigor e sutileza intelectual a fé católica, num contexto muitas vezes hostil ou indiferente a ela, como o da Inglaterra vitoriana. Precisamente por isso, sua voz é hoje ainda mais atual. Neste sentido, a proclamação dele como Doutor da Igreja adquire um alcance verdadeiramente universal.
Também à luz daquela “felicidade ininterrupta” que Newman disse ter encontrado no catolicismo, há quem defenda que a proclamação dele como Doutor da Igreja poderá ter repercussões culturais e espirituais também sobre os fiéis da Igreja Anglicana. Qual a sua opinião sobre esse assunto?
A proclamação de Newman como Doutor da Igreja é, sem dúvida, um acontecimento importante não só para os católicos, mas também para o mundo anglicano. Newman é uma figura que, apesar de ter alcançado a plena comunhão com Roma, deixou uma profunda marca na tradição intelectual e espiritual anglicana, e sua estatura moral e teológica é reconhecida também por muitos fora da Igreja Católica. Dito isso, não espero repercussões imediatas ou clamorosas em termos eclesiais. As relações entre a Igreja Católica e a Anglicana hoje são marcadas pelo diálogo e pela estima mútua, e nesse contexto Newman nunca foi visto como uma figura divisiva. Pelo contrário, ele é cada vez mais lido e apreciado também no âmbito anglicano por sua integridade, sua profundidade e seu amor pela verdade. Aquela “felicidade ininterrupta” que ele declarava ter encontrado no catolicismo tem, sem dúvida, um forte valor simbólico, mas trata-se de uma felicidade enraizada na fidelidade à própria consciência e na certeza de ter respondido a um chamado pessoal.
Além do fato não negligenciável de o “Papa dos protestantes” ter sido convertido por um passionista de Viterbo que se mudou para a Inglaterra, todos os estudiosos de Newman salientam a enorme dívida dele com a cultura italiana. A que se deve esse encantamento que levou o oratoriano a tentar bater até mesmo à porta de Manzoni?
Newman foi educado nos clássicos gregos e latinos, o que o tornava naturalmente atraído pela cultura italiana.
Quando jovem, durante uma viagem pelo Mediterrâneo, visitou a Itália e, precisamente aqui, na Sicília, adoeceu gravemente com tifo. Foi um momento dramático, do qual saiu milagrosamente ileso: precisamente naqueles dias compôs um dos seus poemas mais conhecidos, Lead, Kindly Light (“Guia-me, luz gentil”), que demonstra sua profunda confiança na orientação providencial de Deus. Após a conversão ao catolicismo, foi enviado a Roma para estudar teologia. Aqui aprofundou seu conhecimento sobre São Felipe Néri, figura fundamental para sua espiritualidade, a ponto de decidir entrar na Congregação do Oratório e depois “exportá-la” para a Inglaterra, por recomendação de Pio IX. Em suma, os laços de Newman com a Itália eram profundos e contínuos: tanto espirituais como culturais. Além de Manzoni, Newman também se interessou por Rosmini. Já em vida, ele foi lido, traduzido e apreciado em nosso país. Portanto, um diálogo que nunca foi interrompido.
É um fato que a conversão de Newman provocou um choque na Inglaterra daquela época. O que pode ensinar ao mundo contemporâneo a sua mudança de visão do Papa como “anticristo”, como pensava a Igreja Anglicana da época, para a canonização e depois até mesmo a proclamação como Doutor da própria Igreja Católica?
Não há dúvida de que a conversão de Newman foi um choque. Ele era um intelectual de renome, estimado por sua profundidade teológica, e sua decisão foi vista como uma espécie de “traição” pelo mundo anglicano. Mas é precisamente neste ponto que está a lição para a nossa época: Newman não se converteu por reação, decepção ou espírito polêmico. Ele se converteu por fidelidade à verdade. Sua transição de uma visão fortemente anticatólica do papado para a plena comunhão com Roma é o fruto de uma longa e árdua busca interior, realizada na oração e no estudo. Numa época marcada pela desconfiança em relação a qualquer forma de autoridade, o percurso de Newman mostra que a autoridade autêntica, como a do Papa, pode ser reconhecida e acolhida não como imposição, mas como garantia da verdade recebida e transmitida na Igreja.
Com o Movimento de Oxford, procurando trazer a Igreja da Inglaterra de volta aos trilhos de uma tradição cristã mais autêntica, Newman desenvolveu a teoria da “via média”. Sua busca incansável pela verdade, porém, fez com que o então pastor anglicano tivesse de admitir gradualmente a inconsistência desse conceito, pois “a verdade nem sempre se encontra no meio”. Na época de católicos que se dizem católicos, mas reivindicam o direito de pensar diferente da Igreja, principalmente em matérias morais,[1] não lhe parece que a conclusão a que chegou o santo oratoriano ainda é pouco difundida, mesmo no seio da Igreja Católica?
A experiência da via média é um dos momentos mais significativos da vida intelectual e espiritual de Newman. Inicialmente, no contexto do Movimento de Oxford, ele pensava que a Igreja Anglicana poderia manter uma espécie de equilíbrio entre o protestantismo e o catolicismo. Mas com o tempo, particularmente graças ao estudo dos Padres da Igreja, à reflexão teológica e à honestidade interior, ele percebeu que a verdade não tem nada a ver com concessões ou equilíbrios. Essa intuição ainda é muito atual. Newman nos lembra que a consciência deve obedecer à verdade, não à conveniência. É claro que a verdade deve ser buscada com cuidado e estar acompanhada de misericórdia, mas nunca deve ser negociada a baixo preço. A conversão de Newman, aliás, é o exemplo de alguém que escolheu a verdade mesmo à custa da fama, das amizades e da posição social. Uma lição incômoda, mas necessária. Dito isso, é bom ser cauteloso ao abordar debates de alta teologia com problemas de natureza política que são, em sua essência, marcados por concessões, mediações e avaliações práticas. O rigor doutrinário nem sempre se traduz numa posição política unívoca.
“O liberalismo no campo religioso é a doutrina segundo a qual não existe nenhuma verdade positiva na religião e uma crença vale tanto quanto outra… Ele ensina que todas devem ser toleradas, porque para todas se trata de uma questão de opiniões. A religião revelada não é uma verdade, mas um sentimento e uma preferência pessoal; não é um fato objetivo ou milagroso.” Como conciliar a crítica de Newman ao liberalismo religioso, tão claramente exposta nessa citação, com o indispensável diálogo inter-religioso?
Newman realmente falava de um “desenvolvimento da doutrina”, mas num sentido bem preciso: não como mudança, mas como amadurecimento orgânico de uma verdade já presente na Revelação. Nesse sentido, é falacioso usar Newman para justificar mudanças doutrinais arbitrárias ou rupturas com a tradição. Quem o leu com seriedade sabe que Newman era profundamente ortodoxo e era tudo menos relativista. Quanto à crítica ao liberalismo religioso, ela deve ser compreendida no contexto da época, mas permanece surpreendentemente atual. Newman temia que a religião fosse reduzida a um sentimento individual, sem referência a uma verdade objetiva. E, nesse ponto, encontramos uma forte afinidade com o que Bento XVI chamou de “ditadura do relativismo” e com o “indiferentismo” denunciado pelo Papa Francisco. Dito isso, dialogar não significa relativizar. Newman não era contra o diálogo com outros crentes, mas estava convencido de que o diálogo autêntico parte da própria identidade, não do seu enfraquecimento. Só quem realmente acredita no que professa pode dirigir-se ao outro com respeito, mas também com clareza. Em outras palavras, Newman ajuda-nos a ver que o pluralismo não se baseia no esvaziamento da verdade, mas na coexistência entre pessoas que estão em uma busca segundo a sua consciência.
O Cardeal Newman, a pedido da Santa Sé, foi o promotor e primeiro reitor da Universidade Católica de Dublin, com ideias que marcaram grande parte do desenvolvimento das universidades católicas nas décadas seguintes. Retomando o título da obra de Newman que o senhor traduziu, em que se baseia a ideia de universidade do Doutor da Igreja oratoriano?
Ela se baseia em alguns princípios fundamentais, ainda hoje extraordinariamente atuais. Em primeiro lugar, a rejeição à separação entre fé e razão. Para Newman, a universidade católica deve ser um lugar em que todas as disciplinas podem ser ensinadas em diálogo com a visão cristã do mundo, porque todo o conhecimento é unitário e tem origem em Deus. Não se trata de impor a teologia em todos os lugares, mas de evitar que o conhecimento se torne fragmentado ou ideológico. Em segundo lugar, Newman insiste na formação integral da pessoa. A universidade não é apenas um lugar de transmissão de competências, mas de amadurecimento da consciência, do espírito crítico, da responsabilidade moral. Por fim, Newman dá grande atenção à liberdade da inteligência. Não uma liberdade anárquica, mas uma liberdade ordenada à verdade, onde o estudante é acompanhado na busca, com rigor e abertura, por aquilo que tem valor permanente. Nesse sentido, Newman não pensou numa universidade clerical ou “confessional” no sentido mais restrito do termo, mas numa instituição católica no sentido pleno e universal do termo: capaz de falar a todos e de formar pessoas capazes de pensar com profundidade e viver com retidão.
Se é verdade que, nos debates públicos muitas vezes acalorados, os “adversários” de Newman eram pensadores como Locke, Hume, Gibbon, Bentham e John Stuart Mill, não deveríamos admitir que, após os casos de Charlie Gard, Alfie Evans e Indy Gregory, mortos pelas leis e pelo sistema de saúde inglês, a mentalidade “utilitarista”, com os seus corolários eugênicos, acabou prevalecendo na Inglaterra de Newman?
Newman abordou com extraordinária lucidez as raízes filosóficas da modernidade, opondo-se abertamente ao pensamento de autores como Locke, Hume, Bentham e Mill, os grandes representantes do empirismo e do utilitarismo britânico. Ele contestava sobretudo a ideia de que a bondade de uma ação só poderia ser medida por suas consequências, como defende a ética utilitarista. Para Newman, o bem está ligado à verdade, não à eficiência ou ao resultado. A essa visão, ele opôs uma concepção moral centrada na consciência reta e no dever objetivo, onde a dignidade da pessoa não pode ser reduzida a um cálculo de custos e benefícios. “A consciência tem direitos porque tem deveres”, escreve ele na Carta ao Duque de Norfolk (1875). A consciência não é uma autonomia subjetiva e arbitrária, mas um dever interior para com a verdade: ouvi-la e segui-la significa responder a um apelo objetivo, não simplesmente reivindicar a liberdade individual. É evidente que a forma de sentir e raciocinar hoje dominante, também no âmbito da bioética, é herdeira precisamente dos princípios que Newman criticou. Penso, além do utilitarismo, no princípio da autonomia e da autodeterminação, que hoje é frequentemente considerado como absoluto, desvinculado de qualquer referência ao bem comum, à verdade ou à dependência relacional. Os casos dramáticos que você citou não são acidentes, mas frutos coerentes de uma visão antropológica que perdeu o sentido da pessoa como fim, não como meio. Nesse sentido, o pensamento de Newman é de extraordinária atualidade: ajuda-nos a ler criticamente a cultura contemporânea, a reconhecer as suas raízes filosóficas e a redescobrir o valor de uma consciência formada, capaz de dizer “não” mesmo quando o mundo diz “sim”.
“Não tenho vocação para ser santo, é triste dizer isso. Os santos não são literatos, não gostam dos clássicos, não escrevem romances”, dizia Newman sobre si mesmo, e continuava: “Basta-me engraxar os sapatos dos santos, se São Filipe, no Céu, precisar de graxa para sapatos”. Se é verdade que, até para James Joyce, Newman foi “o maior prosador inglês”, seria possível atrevermo-nos a sugerir que o cardeal inglês trilhou um caminho no mínimo incomum para a santidade?
Newman tinha uma concepção profunda e humilde da santidade. Não se considerava “dotado” para a vida dos santos canônicos, aqueles dos grandes gestos, dos milagres, da renúncia espetacular, mas sim para uma santidade oculta, quotidiana, intelectual, feita de fidelidade à consciência e amor à verdade. Nesse sentido, sim, podemos dizer que ele trilhou um caminho original para a santidade: o do pensador que crê, do homem que reflete, que duvida, que busca, mas que finalmente se rende à verdade com lucidez e coragem. A vida dele mostra que também a inteligência pode tornar-se terreno de santificação; que a literatura pode expressar a busca do divino; e que o estudo, se vivido como serviço, torna-se forma de caridade. É significativo o fato de um escritor como James Joyce, que se afastou da Igreja, ter reconhecido em Newman “o maior prosador inglês”. Isso mostra que seu estilo literário, expresso não apenas em tratados teológicos, mas também em romances e poemas, deixou uma marca também na cultura secular, não somente na eclesial. A frase que fala em engraxar os sapatos dos santos é emblemática: não é falsa modéstia, mas a ironia de quem sabe que a verdadeira santidade não precisa ser notória. Newman ensina-nos que também é possível ser santo nas bibliotecas, nos seminários, nos corredores das universidades. Uma santidade intelectual, mas não intelectualista.

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