O homicídio é proibido. Por quê? Somente porque a Constituição assegura a "inviolabilidade do direito à vida" (art. 5º, caput)? Somente porque o Código Penal enumera o homicídio entre os crimes contra a vida (art. 121)? Se não houvesse nenhuma lei escrita proibindo o homicídio, os homens estariam livres para se matarem uns aos outros? Segundo a doutrina do positivismo jurídico, sim. Para o papa desta teoria, o austríaco Hans Kelsen (1881-1973), o direito nada tem a ver com valores absolutos, intrínsecos à natureza e reconhecíveis pela razão. O direito é puramente positivo, ou seja, vale pelo simples desígnio do Estado em promulgar a lei e obrigar pela força o seu cumprimento.

Para Kelsen, defensor da "teoria pura do direito", não há valores absolutos:

Efetivamente, não haverá esperança para a causa democrática se partirmos da ideia de que é possível o conhecimento da verdade absoluta, a compreensão de valores absolutos. [1]

Quem considera inacessíveis ao conhecimento humano a verdade absoluta e os valores absolutos não deve considerar possível apenas a própria opinião, mas também a opinião alheia. Por isso, o relativismo é a concepção do mundo suposta pela ideia democrática. [2]

A tolerância, os direitos das minorias, a liberdade de expressão e de pensamento, componentes tão característicos de uma democracia, não têm lugar em um sistema político baseado na crença em valores absolutos. [3]

No entanto, Kelsen se contradiz ao defender como absolutos "a tolerância, os direitos das minorias, a liberdade de expressão e de pensamento". Seu relativismo é autodestrutivo. Quando diz "a verdade é relativa", está considerando absoluta tal afirmação.

No caso particular desse jurista, "o feitiço virou contra o feiticeiro". Sendo judeu, quando os nazistas tomaram o poder, foi obrigado a deixar a Universidade de Colônia e fugir para a Genebra, em 1933. Com o início da Segunda Guerra Mundial, fugiu para os Estados Unidos em 1940. De acordo com sua teoria, não pôde negar a legitimidade do Estado nazista:

Então, a tentativa de legitimar o Estado como Estado 'de Direito' revela-se inteiramente infrutífera, porque – como já foi acentuado – todo o Estado tem de ser um Estado de Direito no sentido de que todo o Estado é uma ordem jurídica. [...] Do ponto de vista de um positivismo jurídico coerente, o Direito, precisamente como o Estado, não pode ser concebido senão como uma ordem coercitiva de conduta humana — com o que nada se afirma sobre o seu valor moral ou de Justiça. E, então, o Estado pode ser juridicamente apreendido como sendo o próprio Direito — nada mais, nada menos. [4]

De fato, Kelsen reconheceu o direito nazista como verdadeiro direito:

Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados. [5]

Erroneamente costuma-se afirmar que as conclusões da Física Moderna favorecem a tese da exclusão do absoluto. Leiamos as palavras de Max Planck, pai da Física Quântica:

Todas as constantes universais, como a massa ou a carga de um elétron ou de um próton ou o quantum elementar de ação são grandezas absolutas, são as pedras constitutivas, fixas e imutáveis, da doutrina atômica. Verdade é que não poucas vezes uma grandeza antes considerada como absoluta revelou-se depois relativa, mas isso aconteceu porque ela foi reconduzida a uma outra grandeza absoluta mais profunda. Sem o pressuposto de grandezas absolutas não se pode definir um conceito e não se pode construir uma teoria. [6]

Analogamente, sem valores absolutos é impossível construir uma teoria do Direito. O direito do inocente à vida é anterior a qualquer norma escrita. Cabe a nós não criar tal direito, que é natural, mas simplesmente reconhecê-lo. E não cabe a nós destruir tal direito, por exemplo, promulgando uma lei que permita o aborto diretamente provocado. Pois, conforme ensina S. Tomás de Aquino,

toda lei humanamente imposta tem tanto razão de lei quanto deriva da lei da natureza. Se, contudo, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção da lei. [7]

Ao contrário do que pensa Kelsen, a existência do direito natural não impede que haja um direito positivo. Ao contrário, é no direito natural que o direito positivo busca sua força. Exemplificando: o direito natural proíbe o homicídio. Porém, não afirma que pena se deve aplicar ao homicida. Determinar tal pena, de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes, é tarefa do legislador positivo. Embora todo Estado deva proibir o homicídio, nenhum Estado está obrigado a aplicar a pena de morte ou a prisão perpétua ao homicida. O Estado brasileiro optou por não ultrapassar a pena de trinta anos de reclusão.

Sem ferir o direito natural, o legislador humano positivo goza de uma ampla autonomia. É o que explica S. Tomás de Aquino, baseando-se em Aristóteles:

A vontade humana, por uma convenção comum, pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham à justiça natural. Tal é o lugar do direito positivo. Daí o que diz o Filósofo: 'O justo legal é aquilo que, antes, não importava ser de um ou outro modo; porém, importa, sim, depois de estabelecido'. [8]

Exemplificando: para o direito natural, é indiferente que as normas de trânsito estabeleçam que a ultrapassagem de veículos deve ser feita pela esquerda ou pela direita. Uma vez, porém, estabelecido (como fez o Brasil) que a ultrapassagem deve ser feita pela esquerda, torna-se injusto ultrapassar pela direita. No entanto, a vontade humana não pode legislar contra o direito natural. É o que explica em seguida o mesmo Santo Tomás:

Mas, se algo, de si mesmo, se opõe ao direito natural, não se pode tornar justo por disposição da vontade humana. Se, por exemplo, se decretasse que é lícito roubar ou cometer adultério. [9]

Logo, o fundamento último da proibição de qualquer aborto diretamente provocado não é a Constituição Federal nem algum tratado internacional (como o Pacto de São José da Costa Rica). É o direito natural, acima de tudo, que protege a vida da criança por nascer.

Referências

  1. Hans KELSEN, A Democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 104.
  2. Ibid., p. 105.
  3. Ibid., p. 202.
  4. Hans KELSEN. Teoria pura do direito. 5. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p. 424.
  5. Ibid., p. 69. Os grifos são nossos.
  6. M. Planck, La conoscenza del mondo físico, tr. it., Turim: 1949, p. 286 apud Filippo SELVAGGI. Filosofia do mundo: cosmologia filosófica. São Paulo: Loyola, 1988 (Coleção Filosofia, 9), p. 340.
  7. S. TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica, Iª-IIae, questão 95, artigo 2, corpo.
  8. S. TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, IIae, IIae, questão 57, artigo 2, solução 2.
  9. Ibidem.

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